Um banquinho, uma canção

Um banquinho, uma canção

Francisco Quinteiro Pires, de Nova York

Ao escrever um livro de memórias, Cesar Camargo Mariano apresentou-se como coadjuvante da própria história. Ele tem alma de artista. Sente muita dor quando alguém critica sua obra, como se sua existência estivesse em questão. Ele soube, porém, abdicar do egocentrismo para narrar suas experiências.

Memórias, que está saindo pela editora LeYa, é um exercício de humildade. Sem os parceiros que encontrou em quase 68 anos de vida, Cesar Camargo Mariano pode dar a impressão ao leitor de que não é um dos músicos essenciais da MPB.

Desde 1994, vive na cidade de Chatham, em Nova Jersey, a uma hora e meia da Penn Station, em Manhattan. Ele montou um estúdio no porão da casa, onde recebeu a CULT.

“Não tenho nenhuma pretensão de ser escritor”, diz. “Ao contrário do vinil, da fita cassete e do CD, o livro é a maneira mais eficiente de eternizar uma obra.” Camargo Mariano não tem vontade de que os outros sigam seus conselhos. “Quero apenas incentivar os jovens a prestar a atenção que eu prestei para ser músico.” Ser atento, segundo o pianista, é ter respeito pelo poder da música.

O amigo Alf

Adolescente, aprendeu o comportamento íntegro em relação à arte com um dos precursores da bossa nova, Johnny Alf, que viveu na casa de seus pais por sete anos. “Ela existe dentro de mim, mas não se submete a mim”, diz. Aos 14 anos, assistiu a um show do pianista na boate Golden Ball.

Na casa dos pais de Camargo Mariano, em São Paulo, o instrumentista era o responsável por buscar as crianças na escola. O pianista não dava conselhos, mas sua presença foi suficiente para Camargo entender “os bastidores da arte, as dificuldades e dramas de ser músico”.

Kubrick e Hitchcock

Por dois anos, a família cuidou de Alf, debilitado por uma cirrose hepática. Beth, uma das irmãs, parou de trabalhar para acompanhar a saúde do músico acamado. A mãe de Camargo Mariano guardou em caixas, legadas para o filho, folhas amassadas e rasgadas em que o hóspede anotou composições.

Em vez de música, o jovem instrumentista conversava com o compositor carioca sobre cinema. “Ele me ensinou a ser um telespectador exigente.” Camargo Mariano sempre revê os filmes de Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock. Lembra ter descoberto por acaso o trabalho de Johnny Mandel, “o maior dos compositores de trilhas sonoras”.

Certo dia, andando à toa pelas ruas de São Paulo, ele e o violonista Théo de Barros entraram à 1 da tarde em uma sala que exibia Adeus às Ilusões (1965). “Esperava um dramalhão com péssima atuação da Elizabeth Taylor.”

Protagonizado pela atriz e por Richard Burton, o filme de Vincente Minnelli tinha “uma trilha sonora absurda”, criada por Mandel. Os dois assistiram várias vezes ao longa-metragem, chegando à última sessão, das 2 da madrugada.

Anos depois, no estúdio onde gravou o disco Elis & Tom, Camargo Mariano conheceu pessoalmente o compositor norte-americano, de quem se tornaria grande amigo. Na ocasião, Mandel confessou ser fã do instrumentista brasileiro.

O cinema é inspiração para a técnica musical de Camargo Mariano. Antes de se tornar compositor de trilhas sonoras para filmes, novelas e minisséries, ele entendia como cinematográfico o processo de compor e arranjar.

Trilhas para filmes

“A letra e a melodia servem como roteiros para construir uma unidade que expressa os sentimentos e sonhos de um músico”, diz. “Por isso, foi automático fazer trilhas.” Ele compôs para Eu Te Amo (1980), filme de Arnaldo Jabor; Mandala (1987-1988), novela da Rede Globo; e Avenida Paulista (1982), minissérie da mesma emissora.

A paixão pelo cinema conduziu-o ao amor por Elis Regina. A convite de Ronaldo Bôscoli, que estava se divorciando da Pimentinha, em 1971, Camargo Mariano cuidou dos arranjos e da direção musical de uma temporada de shows da cantora no Teatro da Praia.

Às segundas-feiras, dia de folga das apresentações, Elis reunia amigos em casa para uma sessão de cinema. Eles alugavam filmes e um projetor do Museu da Imagem e do Som. Elis convidou Camargo Mariano para assistir a Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman.

Durante uma pausa para a troca dos rolos do longa-metragem, a cantora colocou um bilhete no bolso da camisa do pianista. Disse para ler depois de terminada a exibição. Ele não aguentou, saiu da sala escura e se trancou no banheiro para ler a mensagem de amor. O namoro começou. Tiveram dois filhos, os cantores Pedro Mariano e Maria Rita.

A parceria profissional entre Elis Regina e Cesar Camargo Mariano foi uma das mais bem-sucedidas da música brasileira e atravessou os anos 1970. O pianista produziu e arranjou os discos Elis (1973), Elis & Tom (1974), Falso Brilhante (1976), Elis (1977), Transversal do Tempo (1978) Essa Mulher (1979), Saudades do Brasil (1980) e Trem Azul (1981).

Nos ensaios para a temporada no Teatro da Praia, Elis fez uma confissão. “Quando escuto essa música, na hora que chega esse trecho aqui, me dá uma dor por dentro, aqui ó”, disse, ao mesmo tempo em que pousava as mãos sobre o ventre.

Elis referia-se, diz Camargo Mariano, a um acorde criado por ele para valorizar a interpretação. “Desde criança, sinto essa dor também por causa de certos acordes. É algo pessoal, intransferível. Só não sabia que outras pessoas sentiam algo semelhante, e a sensação descrita por Elis me ajudou a identificar o que eu próprio sentia e sinto”, diz.

A insegurança de Tom

Clássico da MPB, Elis & Tom (1974) provocou um dos choques emocionais mais fortes que Camargo Mariano já sentira. “Por causa da gravação desse disco, Tom Jobim transformou-se de ídolo em ser humano.”

A tomada de consciência sobre a personalidade do compositor de “Águas de Março” ocorreu ao longo de 22 dias de convivência, três deles para as gravações no estúdio.

Elis e Camargo Mariano chegaram a Los Angeles sem avisar. Tom Jobim não sabia de nada, e o compositor Aloysio de Oliveira não conseguiu localizar o compositor por telefone. “Foi uma situação ímpar, além de dramática.”

Aos 31 anos, Camargo Mariano teve de superar as inseguranças de Tom Jobim, então com 47. Mesmo sendo uma estrela, Tom sofria com a possibilidade de o disco fracassar. Queria ter controle sobre todo o processo e dispensar os arranjos e a direção musical do jovem pianista. A resistência foi grande, a ponto de Camargo Mariano dizer-lhe, com educação, que o disco era de Elis – e Tom apenas um convidado. Ilustre, mas ainda assim um convidado.

Quando ele terminou a mixagem das gravações às 5 da madrugada, levou uma fita com o material para o compositor. O arranjador insistiu para que escutassem. Ao ouvir o trabalho pronto, Tom chorou compulsivamente.

No dia seguinte, pelo telefone, confessou ao parceiro mais novo: “Vocês tomam banho de chuveiro, com água fria e corrente, eu tomo de banheira, com água morna, que vai se ajustando à temperatura do meu corpo”, relembra Camargo Mariano, imitando a voz rouca do maestro. Era uma metáfora para a insegurança de Tom diante daqueles jovens atrevidos.

Pai professor

Desde cedo, Cesar Camargo Mariano chamou atenção por seus dotes musicais. Influenciado por Nat King Cole e Erroll Garner, ele aprendeu a tocar de ouvido. Autodidata, teve suas primeiras lições de teoria musical dadas pelo pai. Aos 13 anos, não entendia direito as definições teóricas, mas no piano era capaz de executar de modo comovente o que lhe era pedido.

Boa parte de Memórias aborda a importância das relações familiares. O livro relembra a emoção do primeiro piano, de cor amarela e dispensado pela antiga dona.

O talento natural de Camargo Mariano desenvolveu-se na convivência com músicos da São Paulo do início dos anos 1960. Ele recorda a atuação por dois anos na Baiuca, casa de shows na Praça Roosevelt, no centro da cidade.

Sambalanço

Nas apresentações, tocava habitualmente um repertório de jazz, mas um pedido foi fundamental para a formação de seu estilo. Certa noite, alguém da plateia lhe pediu um samba. Ao tentar tocá-lo no compasso jazzístico, não teve sucesso. Quando introduziu a cadência do samba, acentuando o ritmo no tempo fraco da composição, foi aplaudido.

Nos anos 1960, formou com Airto Moreira e Humberto Clayber o Sambalanço Trio. Tornou-se uma referência para a bossa nova com performances no João Sebastião Bar, o templo paulistano daquele gênero musical nascente.

Na mesma época, ajudou a criar com o coreógrafo norte-americano Lennie Dale e o diretor Solano Ribeiro um espetáculo para o Teatro Arena. Depois de São Paulo, as apresentações foram para o Rio, resultando no disco Lennie Dale & Sambalanço Trio no Zum-Zum (1965).

Camargo Mariano acredita nos ensaios. É bom conhecer minuciosamente as manhas musicais para lidar com o improviso. Foi o que ele aprendeu ao trabalhar como arranjador e diretor musical de Wilson Simonal em programas da Rede Record, na segunda metade dos anos 1960.

Era comum o pianista ensaiar à exaustão e, na última hora, ver o repertório mudar. “É necessário jogo de cintura nessa profissão.”

Tendo trabalhado com os músicos brasileiros mais importantes – “só faltam Roberto Carlos e Gilberto Gil” –, Camargo Mariano ainda nutre alguns desejos, como um duo com Tony Bennett. “Não tenho muitas vontade em relação à nova safra brasileira, que está bem difícil.”

Enquanto não realiza o sonho, passa os dias no estúdio, de onde se comunica via Skype com os parceiros musicais. Os instrumentos eletrônicos estão sempre à mão para registrar as novas ideias. Ele reclama que da cabeça para o papel muita coisa se perde. “A criação da música é um drama que revolve as vísceras”, diz. “Mas só sendo assim para trazer dignidade à arte.”

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