A elegia que nos cabe nestes eróticos trópicos

A elegia que nos cabe nestes eróticos trópicos
Cena de 'Mistérios gozósos' (Foto Bob Souza)

 

Quando Zé Celso Martinez Corrêa subiu ao palco do Teatro São Pedro em fevereiro deste ano para receber o Prêmio Governador do Estado Para a Cultura 2014, não somente pela encenação da Odisseia Cacildas, que o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona apresentou no ano passado, mas também pelo reconhecimento de sua longa trajetória no teatro brasileiro, e em seu discurso de agradecimento tratou, com a sensibilidade e a inteligência que lhe são peculiares, da crise hídrica que o Estado de São Paulo vem sofrendo, grande parte do público presente à cerimônia pensou provavelmente tratar-se apenas de uma provocação irônica, uma vez que, dentre as várias autoridades sentadas na plateia, estava o governador Geraldo Alckmin.

Somente agora, entretanto, é possível perceber a natureza da alusão e sua real contundência. Zé Celso e o Oficina estão ensaiando um novo espetáculo, previsto para estrear no dia 20 de novembro, no qual a oposição entre as imagens do seco e do úmido assume um valor metafórico dos mais potentes. Trata-se de Mistérios gozósos (que o diretor  faz questão de grafar desse modo), uma nova adaptação do poema dramático O santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade, convertido em uma espécie de elegia cênico-musical que exalta a força erótica da lama escura e mole que constitui o solo dos mangues tropicais de cuja escuridão podem emergir o amor e a libido, em oposição à radical secura que nos últimos tempos vem avançando contra o ecossistema do país, tornando igualmente ressequidos o convívio social, os afetos individuais e o exercício político. Consciente ou inconscientemente, ao falar há nove meses da falta d’água que preocupa as camadas mais pobres da população de São Paulo e dos rios fétidos que cortam a cidade, cuja presença no espaço urbano as elites econômicas ignoram solenemente, Zé Celso já pensava no projeto Oswaldianas – teato na cidade seca sobre rios, de que esses Mistérios gozósos fazem parte.

Escrito entre 1930 e 1950, O santeiro do Mangue é, nas palavras de Mário da Silva Brito – a quem Oswald confiou o original manuscrito da obra, registrado em um caderno escolar –, um “poema escatológico, brutal, veemente e duro”, “um canto de uma violência e de uma força como jamais ouvi ou li, em nossa literatura”. Há nele um misto de poesia e prosa ficcionais e de libelo político, temperados pela irrefreável veia satírica que nunca abandonou o autor modernista. “Recorde-se”, adverte Silva Brito, “que o poeta apresenta O santeiro do Mangue como um ‘mistério gozoso em forma de Ópera’ – um enxerto paródico dos mistérios sacros e didáticos com os dós de peito da cena lírica e, ainda, com quadros de chanchada e rápidos sketches do teatro de revista”.

Quase meio século depois do grande acontecimento cultural e político que representou a encenação de O rei da vela para o teatro brasileiro, o mais recente encontro de Zé Celso com Oswald de Andrade promete frutificar novamente uma forma teatral viva, pulsante e perturbadora, vislumbrada no ensaio a que a CULT teve acesso especial no último dia 15 de outubro. A despeito de Mistérios gozósos já haver sido encenada e ter se transformado em uma montagem muito importante dentro do repertório do Oficina, balizando boa parte de suas criações posteriores – além de as canções compostas por José Miguel Wisnik sobre os poemas olwaldianos (Coração do mar, Flores astrais e Noturno do mangue) terem virado clássicos absolutos, reaproveitadas, inclusive, em outras encenações, a cena em que Eduleia perde a virgindade, por exemplo, serviu de base para a união sexual de Zeus e Sêmele, que deu origem a Dioniso, nas Bacantes –, não se pode falar propriamente de uma remontagem da primeira versão da peça, que tomou as ruas do centro de São Paulo durante o Carnaval de 1994, e em seguida cumpriu uma bem-sucedida temporada no Teatro Oficina de dezembro de 1994 a maio de 1995. Mais correto seria chamá-la de “retranscriação criativa”, até mesmo para evocar o conceito defendido pelo poeta Haroldo de Campos, com cujo fascínio pela totalização crítica da experiência poética Zé Celso mantém uma afinidade ímpar. Vale lembrar, aliás, a sugestão que Campos fez por meio de carta dirigida a Mário da Silva Brito para que este cotejasse O santeiro do Mangue com o episódio de Circe no Ulisses de James Joyce, a fim de que fossem encontradas ressonâncias no espírito de ambas as obras e na visão pela qual cada uma delas trata de seus temas: “Palavrões, irreverências blasfemo-satíricas, situações joco-sérias, também ocorrem no episódio joyciano, que carece porém do endereço ideológico preciso do oswaldiano”, advertiu o poeta concretista.

Pois bem, a primeira coisa que chama logo a atenção no texto de Zé Celso é o caráter portentoso dos jogos de linguagem, que transitam entre a dimensão estética e seu inegável endereçamento ideológico, valorizando o tempo todo a permeabilidade das soluções poéticas e musicais da palavra. O aspecto gráfico-visual do texto escrito – próximo da geometria dos olhos dos atores, mas longe da visão da plateia – tende a ser satisfatoriamente compensado no plano acústico da encenação por meio da vocalização criativa que o diretor solicitava insistentemente, durante o ensaio, de seus atores. As cerca de três mil palavras do poema dramático original adquiriram uma nova e insuspeita plasticidade, espraiadas sob a forma dessa espécie de roman-fleuve (nenhum outro conceito seria aqui mais apropriado) construído com quase onze mil vocábulos que em seu fluxo contínuo e caudaloso não abrem mão do verbo poético, manejado à luz de uma arte de “essências e medulas”, como imputou James Blish à poesia de Ezra Pound.

A esse respeito vale destacar o preparo técnico e artístico, a imaginação criativa e a prontidão para o risco que são as marcas registradas do trabalho dos atores da companhia. Além de Marcelo Drummond, Camila Mota, Vera Valdez, Roderick Himeros, Glauber Amaral, Sylvia Prado, Letícia Costa, Celia Silva Nascimento, Danielle Rosa, Tony Reis, Giuliano Ferrari, Lucas Andrade e Joana Medeiros, a encenação contará com as presenças especiais de Denise Assunção, Mariana de Moraes, Madalena Bernardes e Sérgio Siviero, que irão atuar também junto aos oito novos atores que acabam de chegar ao grupo e aos seis músicos que integram a Banda Oficina. Ao todo, são mais de 60 pessoas envolvidas no projeto, que incluem ainda as áreas de iluminação, arquitetura cênica, figurino e adereços, som, vídeo, comunicação e direção de cena.

Se Oswald de Andrade dá voz no texto a uma corrosiva crítica social direcionada, sobretudo, à sociedade burguesa cujos modos de vida tanto o exasperavam (“O que importa a uma sociedade organizada é manter o seu esgoto sexual. A fim de que permaneça pura a instituição do casamento. Para que não seja necessário o divórcio. E vigorar a monogamia e a herança. A burguesia precisa do Mangue”, declara o Estudante Marxista no epílogo da obra), Zé Celso e os atores ampliam a discussão para a máquina desejante capitalista do mundo globalizado de hoje, sem se esquecerem, naturalmente, de satirizar, entre nós, impeachadores, ruralistas, gângsteres e religiosos de toda sorte e nenhum caráter. Enquanto Oswald faz do gozo uma ópera-bufa, Zé Celso transgride esse mesmo gozo pelas experiências da dor e da glória, concebendo uma forma teatral sui generis, a meio caminho entre a procissão escandalosa e a sacra folia.

Em Mistérios gozósos, o diretor continua lutando contra o sentido repressivo do homem moderno e das grandes organizações políticas, sem, entretanto, adotar o tom de indignação colérica contra tudo o que está aí, aparelhada por um punhado de metáforas prudentemente controladas pela via do farisaísmo burguês. Antes disso, Zé Celso acredita em “um teatro anárquico, sonhado com a realização de uma Utopia imediata. […] Não uma peça sobre a necessidade de organização (mera tática), mas sobre a necessidade de revolução, da radicalização da luta por uma sociedade de prazer. Por Eros. Pelo direito de trepar. De comer. De dizer o que quiser. Pela libertação absoluta. Pela explosão do Superego”, conforme ele mesmo defendeu em “Um teatro anti-PC”, de 1968.

Dispostos a criticar a má sociedade (no sentido que lhe atribui o historiador francês Paul Veyne), diretor, atores, músicos e demais criadores e técnicos do Teat(r)o Oficina estão preparando um fenômeno elegíaco-teatral difícil de descrever, seja pelo cultismo potente do texto em franca interlocução com a matriz oswaldiana (poucos são os homens de teatro que se lançam nos dias de hoje com tamanho empenho à necessária tarefa de remexer os arquivos da memória cultural do país, tornando um poeta do porte de Oswald de Andrade, uma vez mais, nosso contemporâneo), seja pelo lirismo despudorado no tratamento dos temas do amor e do erotismo (que há tanto tempo é o traço estilístico do Oficina), seja ainda pela crua dose de realismo com que trata a violência que nos cerca e engolfa.

Já se consegue perceber em Mistérios gozósos – embora seja ainda uma experiência em processo de amadurecimento – sua inequívoca prontidão política ao reagir à precarização da vida e à mercantilização dos afetos, por meio da constituição de uma forma nova, plasmada em um longo poema dramático-fescenino que celebra o erotismo dos corpos, do sagrado e dos corações, tensão igualmente identificada por Eliane Robert de Moraes na obra de Georges Bataille: “No limite, o movimento do erotismo tem sempre o mesmo fim, implicando uma convulsão interior, não importa se motivado pelo desejo sexual, pela paixão amorosa ou pela fé religiosa. Trata-se de violar a integridade dos corpos, de profanar as identidades definidas, de destruir a ordem descontínua das individualidades, enfim, de dissolver as formas constituídas”.

O teatro de Zé Celso e do Oficina é sempre uma coisa viva, embora não se furte a denunciar o que nos amortalha. E alegre, ainda que não escamoteie as nossas dores. E sagrado, a despeito de chocar somente os que não são dignos de glória. Um teatro, como define seu amigo Roberto Piva, “do Coração. Teatro de Pan & Exu. Tragicomédiorgia. Comer ou ser comido: sondando as profundezas paleo-psíquicas”.

Um teatro gozoso pela via da graça e do prazer.


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