Ecos de 22
Leia, a seguir, um texto sobre a atividade do grupo modernista em São Paulo escrito pelo contista, teatrólogo e ensaísta Luiz Annibal Falcão em 1935
Cláudio Giordano
Ao cabo de 2001, encontrei de Luiz Annibal Facão a brochura Do meu alforje, com dedicatória manuscrita principesca: “Au Prince et à la Princesse Sanguzsko, hommage de sincère amitié”. Pouco apurei do autor, nascido em Paris (1897) e morto não sei quando. Terá sido contista, teatrólogo e ensaísta, colaborando nas revistas Espelho, Revista Brasileira e Klaxon. Segundo afirmação dele, dirigiu a revista Idéia Ilustrada, da qual nos indicou Ana Maria de Almeida Camargo a existência de um único exemplar (nº 14, de 15/11/1923) no Instituto Histórico e Geográfico de S.Paulo.
Amigo chegado de Graça Aranha, dedica-lhe L.A. Falcão longo artigo, não destituído de afetividade. O apontamento de seu livro neste espaço deve-se ao texto intitulado “Os modernistas de São Paulo”, escrito em 1935, na qual faz breve retrospecto da ação dos modernistas e o que se esperava deles. Transcrevemos a seguir trechos do artigo. As reproduções das capas de livros de Oswald de Andrade e Menotti del Picchia servem apenas de colorido a esta evocação da Semana e seus efeitos.
“Até 1921, a nossa produção literária vegetava num estranho torpor. Tudo quanto se publicava no brasil, a não ser uma ou outra exceção, era o reflexo do que se escrevia na Europa. […] Sem personalidade própria, sem um sentimento profundo que fosse bem seu […] nossa literatura era incolor e linfática. […] Nossos jovens escritores nasciam velhos. Como os seus pais e avós, eram melancólicos, complicados, abstrusos e lamentavelmente corretos. Não possuíam a chama da mocidade. […]
Foi quando os verdadeiros moços, com vigor e alegria zombeteira, iniciaram a sua memorável ofensiva. E esses moços eram de São Paulo. A vinda de Graça Aranha, que agia como inigualável animador, serviu para incentivar e fortalecer o movimento moderno. Alguns rapazes paulistas, entretanto, já se haviam definido. Mário de Andrade, em sua Paulicéia desvairada, publicada em princípios de 1922, mas cuja dedicatória data de 14 de dezembro de 1921, dá o grito primeiro e traça as primeiras diretivas. Inicia-se a fase demolidora […]. Com o Mário de Andrade encontravam-se outros rapazes de vinte e poucos anos a porfiar no bom combate. Rubens de Moraes, num curioso e singelo livro, escrito em 1922 e só publicado em março de 1924, também invocava a máxima libertação subjetiva. No Domingo dos séculos escrevia: ‘É no subconsciente que o poeta, o pintor, o compositor vão buscar a emoção estética… A inteligência enfraquece a sensação, a intuição única. Hoje só há uma escola: a personalidade’ […]
A Semana da Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, numa atmosfera de agitação nunca vista no Brasil, em se tratando de arte e literatura, fora uma demonstração pública e espetacular. Na verdade era, sob esse exibicionismo escandaloso, ‘o próprio comovente nascimento da arte no Brasil’, como disse Graça Aranha.
Passado o primeiro momento de espanto, foi uma repulsa, uma indignação quase unânime. Mas entre os gritos da maioria impermeável a qualquer idéia nova, a semente atirada ia germinar. Paulo Prado, que foi dos primeiros a apoiar as tentativas que se fizeram pela renovação estética, descia à liça e vinha, desde 1923, defender Brecheret, reduzido a ir expor as suas esculturas no Salão de Outono de Paris. Consignava então na Idéia Ilustrada que a Semana de Arte, ‘esse ensaio ingênuo e ousado, de reação contra o Mau Gosto, a Chapa, o Já Visto, a Velharia, a Caduquice, o Mercantilismo’, obtivera um resultado imprevisto e retumbante. […]
A Idéia Ilustrada, dirigida então por quem escreve estas linhas, teve a ventura de oferecer as suas páginas às feras paulistas. Na Idéia vinham todos. Mário de Andrade dando o seu bailado em prosa A guitarra frustrada de Romeu e alguns poemas; Guilherme de Almeida oferecendo as primícias de seus futuros livros como Sossego, A flauta que eu perdi e outros poemas resplandecentes de luz, rescendentes de aromas; Tácito de Almeida, cedendo a muito custo uns poemas de uma sensibilidade concentrada e secreta, de uma vibração interior delicada e esquisita; V.P.Vicente de Azevedo queixando-se de ‘como é profunda a herança sentimental dos portugueses’; Yan de Almeida Prado, que ainda não havia abordado o romance e ainda não era historiador, contribuindo com seus desenhos e suas ilustrações; Sérgio Milliet defendendo e explicando Tarsila do Amaral e tendo que mostrar que a artista procurava ‘realizar com elementos brasileiros, uma pintura verdadeiramente nossa’; A.C.Couto de Barros, que por vezes usava o pseudônimo de Clodomiro Santarém, clamando que ‘a conformidade com as idéias de todo o mundo faz da vida uma coisa gelatinosa e insípida’ e divertindo-se diante dos companheiros, ‘essa mocidade que faz cócegas no espírito de certos homens intoxicados do passado’, esse Couto de Barros que se revelava em ‘O fim inconcebível de um homem calmo’, conto de uma ironia deliciosa, um prosador sutil e incisivo, de quem ainda esperamos um romance, que será um grande romance. […]
O modernismo venceu e essa vitória se deve sobretudo ao grupo dos jovens paulistas. Aqueles que mais tarde quiserem retraçar a história desse movimento tão memorável nas nossas letras hão de fazer desse grupo uma idéia um tanto fantasiosa. Pela vibração da campanha, pelo entusiasmo juvenil que demonstrava, pela agitação que provocou, hão de pensar esses historiadores da nossa literatura que o grupo paulista era composto de rapazes truculentos e espalhafatosos. A revolução literária que se operou foi, entretanto, realizado sem nenhum caráter romântico.
Há uns dez ou doze anos, o grupo reunia-se quase diariamente. O ponto de encontro era geralmente no escritório do Couto, à rua Direita, à tardinha. Ali vinham todos. Guilherme de Almeida, cuja palavra sempre parecia carregada de ritmos encobertos, falando com extrema agilidade; Mário de Andrade, sempre com o seu sorriso benevolente e bom em que a própria ironia era indulgente; Tácito de Almeida, sisudo e meditativo, intervindo raras vezes mas sempre lapidarmente; Rubens de Moraes, vibrante, apaixonado, peremptório; Yan de Almeida Prado, curioso de tudo, extremamente informado; Couto de Barros, distilando, fleugmático, suas observações concentradas, mordazes e penetrantes; Oswald de Andrade, inquieto, paradoxal, prolixo, o mais veemente de todos. A palestra corria animada, comentavam-se livros europeus, dissecavam-se os últimos escritos dos presentes, com vivacidade e objetivismo, sem falsa indulgência, falava-se em arte em música. O tempo passava sem que se esgotasse o assunto; a palestra continuava numa casa de chá da rua Barão de Itapetininga, prosseguia num jantar, prolongava-se à noite. Não era um cenáculo, nem uma escola, muito menos uma ‘capela’: era um laboratório, de onde saía o fermento que ia transformar o espírito brasileiro, rejuvenescendo-o.
Hoje ainda esperamos muito do grupo paulista, grupo que a vida e as circunstâncias diminuíram e desintegraram um pouco, mas que ainda subsiste num núcleo essencial. Os acontecimentos vieram também influir em alguns para que se afastassem do convívio nacional, fazendo-lhes esquecer momentaneamente de que o movimento de renovação que realizaram foi um movimento nacional e mesmo nacionalista. Considerações de ordem política vêm também turbar certos espíritos e dos mais brilhantes. Maldita política!”
Cláudio Giordano é bibliógrafo, editor e tradutor, concebeu e dirige a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes
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Lido em 11-out-2023.