Dostoiévski entre o teatro e a literatura

Dostoiévski entre o teatro e a literatura
Fotos Bob Sousa

 

Um recital em que a literatura apaixonada daquele que é considerado um dos maiores escritores russos, senão o maior deles – literatura que gira “freneticamente, em torno de ideias”, na acepção de Otto Maria Carpeaux – encontra o devido meio de expressão no trabalho de um ator e de um diretor brasileiros que sabem aliar muito bem inteligência e sensibilidade. Assim se pode caracterizar inicialmente o monólogo O sonho de um homem ridículo, baseado no conto homônimo de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), em cartaz no Ágora Teatro, peça que constitui a primeira parte da “trilogia do subterrâneo”, projeto com direção de Roberto Lage e atuação de Celso Frateschi, integrada ainda por O grande inquisidor e Memórias do subsolo. Após a estreia da segunda e da terceira partes, previstas para abril e maio, respectivamente, a trilogia será apresentada simultaneamente – o que constituirá para o público neófito uma excelente oportunidade para conhecer a obra do autor de Crime e castigo e para aqueles que já privam da intimidade com esse universo a chance de examiná-lo mais de perto pela lente da teatralidade contemporânea.

Escrito em 1877, O sonho de um homem ridículo parte do tema do suicídio, tão caro ao autor, e se estende à imagem da Idade do Ouro e da utopia social, presente também em Crime e castigo, Os demônios e O adolescente. Prestes a dar termo à própria vida, e logo após um incidente em que uma menina de oito anos solicita sua ajuda na rua, mas é ignorada solenemente por ele, o narrador-personagem adormece na poltrona da sala de sua casa e tem um sonho fantástico que irá exercer uma cabal influência sobre seu destino. Da narrativa, intensa em sua diminuta, mas vibrante estrutura interna, exala o halo de uma dramaticidade muito apropriada para se converter em cena teatral, a começar pelo tom monológico adotado pelo narrador, que se dirige a um leitor-espectador presumivelmente sentado a sua frente. Assim, essa figura narrativa dostoievskiana goza de bastante aptidão para saltar das páginas literárias e se apresentar diante de nós como um personagem de carne e osso, sentindo-se extremamente à vontade como mais um tipo da vasta galeria de homens ridículos – isolados, misantropos, estranhos – que a dramaturga ocidental, desde as tragédias gregas, tem sido capaz de conceber. Embora o tom adotado por esse indivíduo seja o do relato daquilo que ele já viveu e precisa, agora, contar, a técnica narrativa empregada por Dostoiévski imprime ao conto um impressionante poder de vivificação – comprometido com a atmosfera de verdade a que se quer chegar. Daí a hábil mistura que o autor empreende entre dois registros, o de uma narração que se satisfaz em descrever os dados prosaicos retidos pela memória e pela percepção e o de fios narrativos que, de tempos em tempos, ousam tanger a dimensão metafísico-religiosa espraiada por toda a história, presente já nas páginas iniciais: “Então, depois disso, eu conheci a verdade. Conheci a verdade em novembro passado, mais precisamente em três de novembro, e desde então me lembro de cada instante da minha vida”.

Há um grande desafio de carrear para o palco a obra de um escritor que sabe como ninguém dar dramaticidade às ideias; e a peleja aqui parece plenamente bem resolvida. O diretor Roberto Lage, em sintonia com o tamanho modesto do Ágora e com a brevidade da narrativa de Dostoiévski, montou um pequeno recital, profano como quer a arte do teatro, mas comungando pelas bordas com certa atmosfera de gravidade religiosa. Afinal, trata-se de um monólogo em que o narrador-personagem está fazendo para a plateia a “revelação de uma verdade”, e todos os elementos da encenação concorrem com muita engenhosidade para que se logre tal efeito. O primeiro deles é a trilha sonora concebida por Aline Meier, dominada constantemente por cordas retesadas, mantidas em suspensão, como se quisessem pontuar o algo de inefável e lancinante que está seguindo seu curso enquanto o personagem se comunica com a plateia. A música – que alia fontes tradicionais da cultura russa a criações de Sergei Rachmaninof, Alexander Borondin, Hildegard von Bingen, Sofia Gubaldolina e Gavin Bryars – também diferencia as passagens e os climas internos, conferindo à encenação o aspecto de uma liturgia comovente, sublime, bem demarcada. Igual efeito obtém a iluminação de Wagner Freire, que instaura plasticamente em cena um ambivalente espectro entre o claro e o escuro que corresponde ao horizonte existencial do homem ridículo. Horizonte este que o cenário e o figurino de Sylvia Moreira só fazem potencializar, seja na composição de um todo harmônico e coerente, seja na eleição de detalhes – que vão da parede ao fundo em que se empilham processos administrativos dispostos sob a forma de andrajos da civilização ao “manto do profeta” que o protagonista coloca sobre as costas ao final de sua revelação.

Naturalmente, uma empreitada de tal envergadura necessita contar com a presença de um intérprete inspirado, como é o caso aqui de Celso Frateschi. Fazer um elogio a um ator de teatro é tarefa sempre delicada, uma vez que esbarra na apresentação de um específico número de adjetivos absolutos que, se agradam aos artistas mais vaidosos, não diferenciam muito claramente para o espectador a natureza do trabalho de interpretação. Desse modo, para além das qualidades já conhecidas do talento de Frateschi, refletidas em seu incansável amor pelo teatro brasileiro, é preciso chamar a atenção para o estilo de atuação do intérprete neste Sonho de um homem ridículo. Dominando com muita segurança a compreensão do mecanismo discursivo de Dostoiévski, e de sua decorrente natureza dialógica, conforme demonstrou Mikhail Bakhtin, Frateschi imprime à personagem uma calibragem muito eficiente entre sentimento e razão. Não vislumbramos em cena um ator “tomado” pelo personagem ou pelo universo sombrio do escritor russo. Tampouco assistimos à demonstração de virtuosidade técnica por parte de um atuador distante da matéria com a qual quer se relacionar. Ator e personagem aqui se emulam condignamente, procurando conduzir o espectador por uma densa floresta de signos eloquentes e emocionais, a um só tempo, como convém ao sonho da razão vivido pelo protagonista: “Os sonhos, ao que parece, move-os não a razão, mas o desejo, não a cabeça, mas o coração, e no entanto que coisas ardilosas produzia às vezes a minha razão em sonho!”. Trata-se de um estilo de atuação admirável de se ver. E cuja natureza anti-personalista faz muito bem aos tempos artísticos de egos hipertrofiados em que vivemos.

Por fim, não podemos negligenciar o fato de que Dostoiévski atribuiu a sua fábula o epíteto de “narrativa fantástica”. O fantástico, como o estuda Tzvetan Todorov, “dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum”. Ao se interessar pela teatralidade inerente a este belo espécime de fabulação fantástica – organizado em torno de “um dos sonhos mais extraordinários da história da literatura”, conforme lhe imputa o texto publicado na contracapa da edição da 34 – Celso Frateschi, Roberto Lage e os demais criadores envolvidos na encenação prestam uma valiosa contribuição aos tempos que correm, e em especial ao momento político e sociocultural tão conturbado que vimos atravessando no Brasil dos últimos meses. O fantástico é a irrupção passageira do senso comum, isto é, daquilo que é do pertencimento de todos, e fica a meio caminho do maravilhoso e do estranho. Depois de ter passado por um processo de conversão espiritual que o retira do nada de lugar algum da morte por suicídio e o arrebata para a terra de bem-aventurança de que se constitui a crença na Vida e no Outro, o personagem de Dostoiévski está apto a fazer uma comunicação a todos nós. A palavra comunicação, em seu étimo mais radical, convém lembrar, está ligada às noções de “pôr em comum”, “agir em comum”, “deixar agir o comum”.  Assim é que a autoconsciência e a autopercepção reflexivas vividas pelo homem ridículo, em chave de aventura fantástica, chega até nós pelo grande poder comunicador que a arte do teatro exerce desde sempre.

Majoritariamente cristão, o Brasil se vê agora como uma nação dilacerada por disputas internas, hostilidades intestinas. Como se tivéssemos despertado abruptamente do sono da Idade do Ouro de um país cordato, dócil, sem contradições, regido pelo ritmo do “maravilhoso”, para dar início à dura vigília de uma sociedade arrivista, injusta, misantrópica, tangida pelo signo do “estranho”. Quem sabe, então, o cristianismo radical de Dostoiévski não tenha algo a comunicar a todos nós, brasileiros ridículos, que antes de querermos praticar, por pura dissimulação e hipocrisia, a lei cristã do amor, talvez devêssemos procurar a série de criaturas indefesas e abandonadas que cruzam constantemente nossos caminhos, real e metaforicamente falando, mas cujas imagens vivas insistimos em negar.

O sonho de um homem ridículo
Onde: Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa 664, Bela Vista – SP)
Quando: Sextas, às 21h30; sábados, às 21h; domingos, às 19h
Quanto: R$ 60,00 e R$30,00 (meia)
Info: (11) 3284-0290

Fiódor Dostoiévski, o navio como o elogio do naufrágio

Por Flávio Ricardo Vassoler

O conto O sonho de um homem ridículo (1877), de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), desponta como uma narrativa peculiar em meio à obra agônica do escritor russo. À diferença de praticamente toda a obra de Dostoiévski, O sonho de um homem ridículo narra uma trajetória redentora para o protagonista. O homem ridículo, a princípio um niilista à iminência do suicídio, encontra, por intermédio de um sonho escatológico, uma verdade espiritual que o alça para além do nada que quase o levara a dar um tiro na própria têmpora.

O homem ridículo é o antípoda por excelência de uma gama de personagens dostoievskianas que encarnam as diversas fenomenologias da vontade de poder. O homem do subsolo (Memórias do Subsolo, 1864) lança mão de sua consciência hipertrofiada para diagnosticar o niilismo de sua época e se regozijar, de forma sadomasoquista, com a impossibilidade de estabelecer relações verdadeiramente humanas com os demais. O homem do subsolo se vangloria por poder se resguardar em sua cripta, por ter um refúgio de onde pode observar o mundo – sem entrar em contato efetivo com a vida. O prazer do subsolo se confunde com a dor do recluso. Já Svidrigáilov (Crime e Castigo, 1866) e Stavróguin (Os Demônios, 1872) auferem prazer da sexualidade desenfreada que não poupa sequer as criancinhas. Se Deus não existe e tudo é permitido, apenas a manada respeita as normas que não têm repercussão alguma senão aqui e agora. Se não há eternidade, raciocinam as personagens dostoievskianas, toda e qualquer transgressão só terá repercussão se a sanha do meu prazer for castrada; em outras palavras, se eu não for ardiloso o suficiente para me deixar punir pelos hipócritas da lei – aqueles que querem nos fazer acreditar que suas leis, isto é, as leis de seus interesses e de sua classe têm validade universal.

Imbuído do ímpeto do suicídio, o homem ridículo diria que o homem do subsolo, Svidrigáilov e Stavróguin não estão sendo suficientemente radicais em seu niilismo. Ser um sádico, ser um assassino, ser um pedófilo, ser o Todo-Poderoso, tudo isso é agir em um mundo que, após o crepúsculo dos deuses, já não faz sentido algum. Imbuído da dialética dostoievskiana, o homem ridículo sentencia que querer romper a norma, ainda que por intermédio da destruição, significa ovacionar o mundo. Para o homem ridículo, a única conclusão escatologicamente coerente para o desterro transcendental dos homens é o suicídio. Toda e qualquer tergiversação após a morte de Deus – à direita e à esquerda, para a conservação ou a revolução, a fim de destruir ou criar – não passa de mera covardia. Quando o homem ridículo compreende que o flagelo do tempo é a substância de todas e quaisquer experiências, o suicida ressoa Mefistófeles, para quem tudo o que existe merece perecer. Tudo passa a ser indiferente. Em verdade, em verdade, o homem ridículo nos diz: só há apenas uma ação verdadeiramente niilista – o suicídio.

É assim que Dostoiévski nos leva a uma gélida noite de São Petersburgo. O homem ridículo caminha a esmo e, quando olha para o céu e espreita uma estrelinha brilhante, ele decide que é chegado o momento de o niilismo filosófico se transformar em túmulo. Naquela noite, sem mais, ele se suicidaria.

Se Dostoiévski quer refletir, narrativamente, sobre os estertores do niilismo, isto é, sobre o nada como a quintessência do homem-que-se-sabe-para-a-morte, é preciso criar uma situação limítrofe que submeta o desprezo e a indiferença a um desafio derradeiro. Assim será possível descobrir, vivencialmente, se tudo o que existe merece perecer.

Súbito, enquanto caminha pelo ocaso noturno de São Petersburgo, uma menininha pálida e desesperada resvala a indiferença do homem ridículo.

– Me ajuda, senhor, por favor, minha mamãe!

O homem ridículo a enxota como a um vira-lata, mas aquela menininha acabara de lhe trazer a semente da discórdia. Aquela menininha indefesa a lhe pedir ajuda, na verdade, e sem o saber, estendera a mão (e a vida) ao homem ridículo.

Ora, se tudo lhe é indiferente, o homem ridículo não pode se apiedar pela menininha que clama pela mamãe; ele não pode pensar que, sem a proteção da mamãe, a menininha acabaria caindo nas garras de pedófilos e cafetões como Svidrigáilov e Stavróguin. “Se eu vou me matar daqui a duas horas, então o que é que me importa a menina? Eu me transformo num nada, num nada absoluto”. Se o nada é a verdade, não há lugar para a piedade.

Ocorre que o homem ridículo, no limite máximo do niilismo, já à beira do penhasco de seu exílio, reencontra um bastião de humanidade em sua compaixão pela menininha desesperada e indefesa. Após o trauma (redentor) em face da menininha, a personagem, tensionada por sentir que nem tudo lhe é indiferente, consegue pregar os olhos – coisa que não conseguia fazer há dias. Em sonho, ele dá um tiro no próprio coração com o revólver que jaz junto à sua poltrona. Súbito, o suicida se vê confinado em um caixão, através de cuja campa se infiltra uma goteira que passa a lhe torturar o olho esquerdo, com toda a indiferença do universo, a cada 60 segundos. Além de descobrir que continua vivo após a morte, o homem ridículo sente o gotejamento infinito como um castigo pelo suicídio – ao que, em sumo desespero, ele responde com uma súplica repleta de agonia. É quando o caixão se rompe e nossa personagem é resgatada por um ser nebuloso para viajar pelas infinitudes estelares.

Caro leitor, cara leitora, vocês se lembram da estrelinha brilhante para a qual o homem ridículo olhara no momento em que se decidira pelo suicídio? Pois o acalento do sol o faz se emocionar com o brilho esmeralda da Terra, a estrelinha rediviva, vista do espaço. Mas será mesmo possível haver tais duplicações no universo? – pergunta o homem ridículo estupefato. O ser nebuloso já não está ao seu lado. A viagem estelar, que lhe fizera saltar por sobre o espaço e o tempo, o transportara até um paraíso mítico em que as águas e a terra, as plantas e os animais, os homens e as mulheres vivem na mais perfeita simbiose. O Éden revela ao homem ridículo que, inscientes sobre si mesmo, inscientes sobre a nudez, inscientes sobre as convenções morais – a bem dizer, inscientes sobre quaisquer convenções –, os seres vivem em completa organicidade. Há morte no paraíso? Sim, mas um sentido inato de eternidade faz com que a morte seja vivenciada como um até breve.

Ora, que fazemos quando a felicidade alheia estende a mão para que saiamos do charco da dor que nos acossa? Não parece haver outra alternativa senão abandonar o charco e se livrar da dor, não é mesmo?

Ora, se assim fosse, Nietzsche não teria se referido a Dostoiévski como um dos únicos psicólogos com quem tinha algo a aprender.

A dor e o ressentimento têm recalcitrâncias que levam o homem ridículo a aceitar o abraço amoroso de seus novos amigos – apenas para que eles também comecem a sentir prazer com a consciência do próprio aviltamento. O homem ridículo passa a macular a organicidade do paraíso assim como a serpente que seduzira Eva: eis o êxtase do poeta marujo que sente em cada fímbria de seu corpo o ápice da beleza quando o navio vai a pique. O navio como o elogio do naufrágio.

O homem ridículo estimula a consciência individual contra a integração comunitária – a difamação se esgueira sob a confissão, a dúvida do soslaio deforma os olhares, o eu passa a viver os limites de seu corpo como o portão que já lhe cerca a casa, já que, sim!, é decretada a delimitação das propriedades, as facções se tornam clãs, os clãs se dilaceram e apenas se unem, taticamente, para mais saques e pilhagens, e assim as nações hasteiam suas bandeiras e perfilam seus exércitos. Os diferentes povos só abandonam a rapina comercial para se entrelaçarem através das guerras, a mestiçagem é a filha dileta do butim – e do estupro. A coragem do mártir também é filha da guerra, a coragem do mártir deve suportar a tortura, a vaidade do mártir é mórbida a ponto de se regozijar com as lendas que seus compatriotas narrarão sobre o que restar de seu cadáver. O herói se regozija com os golpes de seu algoz na medida em que já imagina a magnanimidade de seu mausoléu. O amor é expulso a pontapés, o amor é reduzido a um ideal, uma quimera longínqua e fadada à exaustão. Quando a poesia exalta a paixão, o amor já foi exilado. Quando o homem ridículo reconhece Caim à beira de um precipício, a moralidade há muito é exaltada como a insônia do remorso, “eu matei Abel, eu matei meu irmão!” O protagonista se apieda e vai até Caim – o homem ridículo mal percebe que se transformara na menininha que suplica por ajuda, “socorro, socorro, minha mamãe!” Caim o enxota como a um vira-lata e, antes de ser tragado pelo abismo, seu rosto transparece o alívio do moribundo que se vê livre do coma de sua vida.

É quando o sonho termina.

O homem ridículo vê o revólver ao lado de sua poltrona e o enxota como a um vira-lata. Apesar do sonho que percorrera a história humana como o transcurso da queda mítica, como a nostalgia do paraíso perdido, ele ainda sente o aroma das folhas e das flores que farfalhavam para lhe dar as boas-vindas, ele ainda vive a comunhão dos homens e mulheres.

Ao narrar a história humana como a nostalgia do paraíso perdido (tese) e ao resgatar uma personagem que encontra a verdade para rechaçar o suicídio (antítese), Dostoiévski esboça uma síntese trêmula em meio à qual o homem ridículo passaria a pregar a dialética do torpor que, levado às últimas consequências, pôde despertar de sua letargia quando a dor e o desespero do outro lhe mostraram que algo ainda pulsava para além da pasmaceira do niilismo. “É claro que teria me matado, se não fosse aquela menina”.

Mas em verdade, em verdade, o homem ridículo sentencia:

– “Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade!”

A verdade seria a partilha, e não a redenção individual. A verdade requer novos corações e, necessariamente, uma sociedade outra.

O homem ridículo ressignifica a história humana como a cicatrização do espírito. O caos das guerras sublevou os homens para além do provincianismo de suas vilas, comunas, cidades e nações. A noção ecumênica de humanidade é filha da guerra e da exploração. É como se, dialeticamente, a possibilidade efetiva de uma universalidade precisasse reconciliar as contradições dos mais díspares e dispersos particularismos e antagonismos. (Reconciliar tais contradições sem que o todo cale e/ou extermine suas partes.) Para a dialética histórica do homem ridículo, a dor, o sofrimento e, no limite, a destruição tensionam os homens para além de si mesmos. É como se os homens e as mulheres precisassem renascer a partir de suas próprias cicatrizes. Foi à iminência do suicídio que o homem ridículo deu à luz sua nova vida.

Ora, a reconciliação que, não sem profundas contradições, pode ser vislumbrada para o homem ridículo individualmente considerado torna-se radicalmente tensa em relação à sociedade como um todo, isto é, em relação à história como a consecução de um sentido emancipatório. Eis a sensação de que a fé em Deus e no sentido de reconstrução da história como emancipação sobre os escombros dos navios negreiros e dos fornos crematórios dos campos de extermínio pressupõem a instrumentalização de milhões de vidas humanas para que, como cobaias, as pessoas jamais se esqueçam do terror do etnocentrismo e do nacionalismo levados às últimas consequências com a escravidão e o holocausto. Ora, a pedagogia espiritual que instrumentaliza a aniquilação da vida não é apenas cúmplice; ela transforma a tragédia em apologia para que os seres humanos aprendamos com a senzala e a asfixia nas câmaras de gás. Quando a tragédia histórica transforma o Apocalipse em mera anedota, os condenados da terra perguntam a Dostoiévski como o sonho do homem ridículo, coletivamente aporético, pode dar à luz um novo Gênesis.

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP.

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