“O que o tempo transmite e subverte”: heranças de Orides Fontela

“O que o tempo transmite e subverte”: heranças de Orides Fontela
Retrato de Orides Fontela por Fritz Nagib a pedido de Augusto Massi para uma coleção de poetas contemporâneos (Foto: Fritz Nagib)

 

Misoginias da recepção: a figura da bruxa

Relendo matérias de jornal sobre a poeta Orides Fontela, que nasceu em 21 de abril de 1940, deparo com uma caricatura. Em reportagens do final dos anos 1990, pouco antes de sua morte, aos 58 anos, em 1998, a apresentação da poeta – formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e reconhecida pela crítica universitária, autora premiada de cinco livros de poesia, além de instigantes ensaios em prosa – começa invariavelmente com uma descrição de sua aparência física. Antes de qualquer outra coisa, Orides é vista como uma mulher malvestida, envelhecida, feia – e suja! Quem iniciaria uma reportagem sobre Manuel Bandeira ou Ferreira Gullar com observações depreciativas sobre sua fisionomia, seu modo de vestir ou sua higiene? Espanto-me com o que, nessa diferença, não causa espanto. 

A descrição vem quase sempre acompanhada por conotações de “sujeira”, numa insistência que faz pensar no estereótipo machista da “mulher suja” – também usado, aliás, durante as últimas eleições presidenciais para desqualificar os movimentos femininos que lideraram manifestações suprapartidárias de rejeição a Bolsonaro. Esse retrato impregnado de misoginia serve em geral de introdução à narrativa de uma sucessão de escândalos envolvendo excesso de bebida, graves crises psicológicas e rompimentos – narrativa na qual ganham destaque as origens proletárias e a situação de precariedade material em que se encontrava a poeta no fim da vida. 

Diante dessa imagem, a poesia sofisticada, que recusa toda expressão confessional e faz referências à filosofia, parece ser obra de magia, surgida como que por encantamento e sem nenhuma relação com a vida da autora. Coisa mesmo de bruxa. De fato, nessas descrições caricaturais de Orides, identifico a figura da bruxa, tal como forjada na Idade Média para condenar mulheres que detinham algum saber ou não se comportavam de acordo com as normas sociais. Ou ambos.

A recepção a que me refiro nem sequer se interessa pela vivacidade de pensamento, pela presença de espírito ou pelo senso de humor de Orides, características que não podem deixar de impressionar quem assiste, por exemplo, à sua participação no talk show de Jô Soares. A caricatura misógina encobre sua extraordinária inteligência e sobretudo a cultura – não apenas literária, mas também filosófica – que acumulou numa vida também marcada por muitas horas diárias de leitura.  

Uma fotografia desconhecida: o rosto da poeta ainda menina

Um outro retrato parece contradizer a figura da bruxa. É uma fotografia de Orides aos quinze anos, documento de família guardado por uma prima, Maria Helena de Oliveira, e nunca antes publicado. Tirada em São João da Boa Vista, cidade paulista onde Orides nasceu em 21 de abril de 1940 e viveu até os 26 anos, a foto mostra uma menina franzina num vestido branco bem repassado, que pode ter sido o de sua primeira comunhão. Cabelos penteados em franja emolduram o rosto fino, de traços um pouco assimétricos, mas delicados. Nele, o que mais chama a atenção é o olhar pensativo e sério, talvez triste. 

Difícil prever que aquela mocinha arrumada com um capricho simples, no qual advinha-se o carinho da mãe de filha única, se tornaria a poe- ta reconhecida por críticos importantes, como Antonio Candido ou Flora Süssekind. Já então escrevia poesia, e desde os dezesseis anos teve poemas impressos nos jornais de sua cidade. 

No ginásio, a adolescente fez seus primeiros sonetos: “aprendi métrica com meu saudoso professor Francisco Pascoal e com Gonçalves Dias (‘A tempestade’). Li, naquela época, Manuel Bandeira e Alphonsus de Guimaraens, todos os menores […]”. Ainda em São João, descobriu também Drummond, “a principal influência de minha vida”, Pessoa, “apresentado por minha prima”, Cabral e até Cassiano Ricardo, “um emérito diluidor”, “excelente para ensinar truques técnicos”. “E, em prosa, descobri o mundo: Guimarães Rosa”, conta Orides num texto publicado em 1991. Segundo esse depoimento, a poesia esteve presente ainda mais cedo, já em sua infância: “o tempo das primeiras quadrinhas ingênuas, do Grupo Escolar, dos poeminhas no jornal infantil”. 

Embora seu pai, operário numa serralheria, fosse analfabeto e a família bastante pobre, o testemunho da autora não deixa dúvidas de que sua inclinação de menina para a poesia foi recebida e valorizada em sua cidade natal. Além de ser convidada a recitar poemas em festas e cerimônias locais, pôde usufruir de bibliotecas públicas e privadas e encontrou uma primeira interlocutora na prima Ana Maria Salomão: “já havia um grupo – duas poetas que se liam entre si”, conta. 

Foi, aliás, um poema publicado no jornal O município que chamou a atenção do crítico Davi Arrigucci, também natural de São João da Boa Vista. Impressionado com a qualidade da poesia de Orides, o conterrâneo incentivou a jovem poeta a publicar seu primeiro livro, Transposição, em 1969. Também a ajudou a mudar-se para São Paulo, em 1967, para realizar o sonho de cursar Filosofia na USP. 

Mesmo antes de ingressar na universidade, a filosofia fazia parte da vida de Orides: “entrou pelos livros que procurei conseguir (Pascal, Gilson, Maritain, e até alguns não tão ortodoxos), e misturou-se a um interesse pela mística […]”, conta no belo ensaio “Poesia e filosofia”, de 1997. Nesse texto, ela considera que uma “intuição básica” de sua poética é a concretude do “estar aqui”, “autodescoberta e descoberta de tudo”, que é também estar “a um passo – de meu espírito, do pássaro, de Deus”. E afirma: “Esta posição existencial básica de meus poemas já é filosófica, isto é, seria possível desenvolvê-la em filosofia, e daí veio meu interesse pela filosofia propriamente dita”. 

A vida e a obra

Desfeita a máscara da bruxa, podemos repensar a relação entre a vida e a obra de Orides. Afinal, além de caucionar uma caricatura misógina, a recepção que ressalta a distância entre as “baixarias” de sua existência e a “elevação” de sua produção poética repousa sobre uma compreensão superficial e anedótica do que seria a vida da autora. Ela desconsidera justamente o mais importante: sua biografia intelectual, que inclui inúmeras leituras e encontros, passa pela formação universitária em filosofia, além de conduzir a referências religiosas, católicas e zen-budistas.  

Após o contato, em 1961, com um psiquiatra que teria interpretado seus símbolos poéticos numa perspectiva psicológica, Orides conta ter adotado a estratégia de evitar temas biográficos. Sobre essa fuga ao confessional, diz: “Eu já era feminista e sabia que a minha poesia ia ser desvalorizada se parecesse ‘poesia de mulher’. Daí abstraí, abstraí e abstraí. Foi uma força: fui aceita. Mas foi também uma armadilha, pois assim é que caí na poesia hiper-sublimada, tão própria das mulheres. Tentei me salvar disso nos últimos livros, e ainda tento”.  

Rosácea (1986) e Teia (1996) marcam, de fato, uma mudança de dicção em relação aos três primeiros livros – Transposição (1969), Helianto (1973) e Alba (1983).  Entretanto, mais concretude não significou menos filosofia. Afinal, para Orides, textos filosóficos eram materiais poéticos e também faziam parte de sua própria experiência de vida. Em Rosácea, por exemplo, uma sequência de três poemas – “Herança”, “Kant (relido)” e “O coração (Pascal)” – reúne na esfera do concreto tanto uma série de objetos que remete à pobreza da família da poeta, como passagens da Crítica da razão prática, de Kant, e dos Pensamentos de Pascal.  

Herança

Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço. 

Kant (relido) 

Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.

O coração (Pascal)

As ignotas
(des)razões
do
espanto. 

Como os objetos listados, as citações se inscrevem na experiência do “eu lírico” através da fatura poética que as deforma e recria. “Relidos” nos poemas, também os textos filosóficos transformam-se em “herança”, tal como Orides a pensa em outro poema homônimo, incluído em Helianto:

Herança 

O que o tempo descura
e que transfixa

o que o tempo transmite
e subverte

o que o tempo desmente
e mitifica. 

Se o tempo descura e transfixa, transmite e subverte, desmente e mitifica, como receber as heranças de Orides hoje, quando comemoramos oitenta anos de seu nascimento?  Para compreender criticamente sua poética atravessada por interrogações filosóficas e “releituras” de textos do passado, parece-me indispensável repensar a relação entre vida e obra do ponto de vista da reconstrução do percurso intelectual da autora. Para isso, o depoimento de Marilena Chaui, que foi professora de Orides na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e escreveu o prefácio de Teia, seu último livro, constitui uma preciosa contribuição, indicando interesses teóricos e objetos de estudo determinantes em seus anos de formação. O testemunho se completa pela reflexão sobre a presença da filosofia nos poemas de Orides. Ivan Marques, também professor da FFLCH e estudioso de sua poética, confronta a questão da relação entre vida e obra por outro viés, indicando o lugar de fala da poeta do ponto de vista social. Voltando-se para a análise da obra, o comentário de Olgária Matos, que foi colega de Orides na Faculdade de Filosofia, aponta passagens entre interesse filosófico e questionamentos místicos e teológicos. Finalmente, dois poemas inéditos, até agora conservados nos arquivos de São João da Boa Vista.

PATRÍCIA LAVELLE é doutora em Filosofia e Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Science Sociales de Paris e professora assistente da PUC-Rio


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