Oquei, vocês venceram: batatas fritas!

Oquei, vocês venceram: batatas fritas!
Este dossiê/manifesto é um ato fundador de sujeitos-coletivos e seus compromissos com outro país (Foto: Arte Revista Cult)

 

No início da pandemia da Covid-19, Ruy Castro lançou o livro Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20 (Companhia das Letras), requentando a disputa sobre o início do modernismo na ponte aérea Rio-São Paulo. A tese é divertida: na década de 1920, o Rio de Janeiro não precisava ser modernista, pois, como capital do país, já era moderna havia tempos! Ruy Castro não foi o único a demonstrar que a Semana de 22 e o modernismo paulista da primeira geração construíram um movimento ideológico de transição, mais do que propriamente artístico e estético, com a missão de superar o atraso atribuído à formação do “povo brasileiro” por meio de uma narrativa deslocada da realidade. Nas últimas duas décadas, especialistas de vários matizes têm chamado a atenção para o fato de que o processo de construção de São Paulo como centro político, cultural e econômico do país não tem relação direta com o modernismo. Clement Greenberg foi taxativo em Arte e cultura: ensaios críticos (Ática) ao afirmar que o modernismo paulista não teve nada de moderno, apesar de se anunciar hegemônico desde meados do século 20.

Essa pretensão só foi possível em razão de um processo, qualificado por Pierre Bourdieu de “imposição da taxonomia legítima”, que esteve presente nos bancos da Universidade de São Paulo (USP) por meio de artigos, teses e editoriais publicados por discípulos, especialmente Antonio Candido. Ana Paula Simioni demonstrou no artigo “Modernismo brasileiro: entre a consagração e a contestação” que, em 1953, Candido defendeu o pioneirismo de 1922 e do modernismo da primeira geração como marcos fundadores de um processo que superaria o histórico “atraso” brasileiro por meio do resgaste de elementos culturais locais, “populares, primitivos e mestiços” e cujo resultado foi chamado pelos paulistas de “cultura nacional”. Ruy Castro questiona esse processo e reivindica o pioneirismo carioca, que teria decorrido da burocracia presente na “metrópole à beira-mar”: o número de cargos da cidade-capital teria levado à absorção de elementos culturais de baianos, cearenses, gaúchos, mineiros, pernambucanos e paulistas, projetando-os para a cena nacional em movimentos como a bossa nova, por exemplo.

O paroquialismo presente na divergência sobre o pioneirismo do modernismo e da modernidade no Brasil explicita o processo de sudestinização das análises: considerar nacional o conjunto de fenômenos que ocorreram na região Sudeste por meio de um rebaixamento histórico, político e cultural das demais regiões, condensadas na expressão “regionalismo”. A falácia defendida por parte da intelectualidade sudestina, no pós-ditadura militar, sobre os princípios vanguardistas da primeira geração, só se realizaria completamente com a incorporação de elementos culturais de outras regiões presentes na “literatura regional” – os tais “búfalos do Nordeste”, nos termos de Oswald de Andrade (1890-1954) referindo-se à literatura de denúncia de José Lins do Rego (1901-1957) e Jorge Amado (1912-2001), em oposição à transgressão autorreferente da primeira geração do modernismo paulista.

Búfalos e batatas à parte, em 1969, em pleno regime militar, Rex Schindler dirigiu o filme Bahia, por exemplo, com depoimentos de Dorival Caymmi, Jorge Amado, Carybé, Gal Costa, Glauber Rocha, Mário Cravo e Caetano Veloso e com cenas de Dona Olga do Alaketu e Mãe Menininha do Gantois – provavelmente o primeiro registro fílmico da ialorixá. A certa altura do filme, o diretor pergunta a Jorge Amado, no quintal da Casa do Rio Vermelho, em Salvador: “A Bahia pode ser considerada a capital cultural do Terceiro Mundo?”, ao que o escritor sorriu, chamando atenção para a modernidade do candomblé como resistência e autonomia cultural da população negra escravizada. Comunista, porém não dogmático – graças aos orixás –, Jorge Amado foi ministro de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e fez parte da geração que lutou contra a invenção sudestina de uma Bahia vocacionalmente lenta, subnutrida e subletrada, retratada como região onde a natureza se sobrepunha à sociedade.

Apesar de não ser nordestino, Rex Schindler era um búfalo que denunciou no cinema o atraso da Bahia como um projeto político. Nas cenas finais de Bahia, por exemplo surgem obras de arte moderna, prédios novos, desfile de moda, shows, depoimento de Gal Costa em sua fase mais psicodélica, cantos do candomblé, acarajés, abarás, prédios antigos, negros jogando capoeira, ancestralidade africana nas cerimônias do candomblé e o depoimento de Glauber Rocha (“na Europa, a Bahia é tão conhecida quanto o Brasil!”). O que até hoje é tratado como piada pela grande imprensa com sede no eixo Rio de Janeiro-São Paulo foi um manifesto! A Bahia como metrópole produtora de cultura vanguardista em constante intercâmbio com regiões da Europa, sem a mediação de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Essa tese também está presente no “Manifesto ainda que tardio”(1976) de Rubem Valentim, pintor, escultor, gravurista baiano e também ministro de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá.

Em novembro de 2018, teve início, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), a exposição Construções afro-atlânticas, 90o obras de Valentim reunidas por uma curadoria entusiasta da tese de que a primeira geração de modernistas elaborou “um verdadeiro programa para o intelectual e o artista nativo” – como Rubem Valentim foi retratado. Não parece ter sido por outra razão o fato de haver, na porta de entrada da exposição, um banner com um trecho do “Manifesto antropofágico”(1928), em vez de trechos do manifesto escrito pelo próprio artista, contradizendo a visão da curadoria sobre ele e o significado de sua obra: “Valentim é um dos artistas que, de maneira mais completa e ambiciosa, levou a cabo o projeto antropofágico”. Apesar de o nome da exposição fazer referência a elementos afrodiaspóricos das obras escolhidas, o silenciamento sobre a centralidade do candomblé na vida e na produção do artista é paradigmático da mais completa tradução dos limites do modernismo e da modernidade como sinônimos legitimados pela pujança econômica de uma região.

Rubem Valentim chamou atenção para a pluralidade dos modernismos do Brasil ao reafirmar os valores míticos de uma cultura afro-brasileira mestiça, animista e fetichista de sua linguagem plástico-visual-signográfica: “o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade […] sem se filiar a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas estrangeiras ou nacionais”. Foi além ao lutar contra a criminalização do candomblé – assunto de polícia até 1976 – e ao anunciar em suas obras que o não-lugar produzido pela miséria capitalista também gerava uma cultura de resistência presente no Brasil desde a invasão portuguesa. Se concordarmos com a tese de Valentim de que a modernidade também está presente nas diversas formas de resistência – e nós concordamos! – a proposta deste dossiê Brasil: Manifestos é compreendê-lo em seu conjunto como um manifesto: “Sempre fomos modernos”.

Mas essa modernidade, como já indicamos, não se resume aos vencedores que ganharam as batatas porque defenderam o pioneirismo do modernismo paulista da primeira geração de 1922, ou porque seus herdeiros atualizaram essa defesa e, sem subterfúgios, decidiram vincular a comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna às comemorações paulistas do bicentenário do 7 de setembro de 1822, o marco oficial para as lutas pela independência do Brasil. Nossa modernidade também não diz respeito à vitória em 2018 dos que se regozijaram com a volta da coluna grega como base da mesa de tampo de vidro, apoiados por quem escolheu ficar acima do muro para decretar o fim dos manifestos ou da política nos manifestos, como provoca Lucio Agra em seu artigo “ManiFesta dos ‘condenados ao moderno’”.

Fomos derrotados em 2018, mas este dossiê/manifesto é um ato fundador de sujeitos-coletivos e seus compromissos com outro país. Como na chamada Conjuração Baiana, quando, na manhã de 8 de agosto de 1798, seus partícipes divulgaram boletins manuscritos com duras críticas ao príncipe regente dom João 6º e seus “despóticos ministros” anunciando: “Animai-vos, Povo Bahinense, que está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos; o tempo em que todos seremos iguais”. Quem há de negar a modernidade do uso desses vocativos por quatro homens pobres, livres, pardos e negros que afirmaram sua humanidade no fazer política e não no trabalho escravo?

Somos modernos quando abusamos da crítica social e do tom convocatório das imagens fílmicas presentes no manifesto “Eztetyka da fome”, de Glauber Rocha, analisado por Waltencir Oliveira. Somos modernos quando reafirmamos a africanidade na formação do Brasil tal como aparece no “Manifesto contra o sincretismo religioso” (1983), liderado por Mãe Stella de Oxóssi, assinado pelas principais ialorixás do candomblé da Bahia e discutido por Vilma Reis. Somos modernos quando a vereadora Maria Marighella analisa um poema escrito por seu avô, o deputado e líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Carlos Marighella, que, ao responder a uma prova ginasial de Física, nos lembrava que a política está intimamente ligada à arte de liberar as potências da vida.

Justamente por isso, por tudo isso, somos fundamentalmente modernos quando compreendemos que “as coisas calminhas cutucam tanto quanto um tiro na testa”, como nos alerta Fabrícia Jordão ao demonstrar como o artista cearense Leonilson reabilitou e reposicionou os problemas da autonomia, da função social do artista, da especificidade da forma da política e do político na arte. Questões fundamentais para o artista Gustavo Von Ha, cuja obra está à margem dos discursos hegemônicos e, justamente por isso, cheia de potência subversiva, atualizada neste nosso turbulento e distópico presente.

Em tempos de nostalgias reacionárias, de cor-rosão da democracia e de ressurgência de formas fascistas de gestão da vida social, os manifestos reunidos neste dossiê não assumem a revelação de uma potência imanente, mas foram pensados em função de seus limites, de seus não-ditos e de sua condição de estar em algum lugar entre teoria e prática, palavra e mundo, texto e ato, produção autoral e indústria cultural. Enfim, um gênero de encruzilhada, de incertezas e de movimento, que não teme assumir seu maior risco: o de realizar-se, transformando-se em história. Boa leitura!

Alexandre de Sá Avelar é professor adjunto II do Departamento de História da UFU.

Patrícia Valim é professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA.


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