Dossiê – Consolação e Filosofia
O tema do Dossiê de fevereiro oferecido pela CULT contém uma pitada de polêmica: pode a filosofia consolar? Pode a filosofia ter um papel positivo na busca humana de uma existência harmônica, pacificada e – por que não? – mais feliz?
O tema implica sérios riscos, sobretudo se se associar a atividade filosófica com o que, em linguagem corrente, se denomina “cura psicológica”. Atualmente, há iniciativas terapêuticas baseadas em afirmações de filósofos, buscando algo como uma correção do pensamento, à maneira cartesiana, e eclipsando-se as forças inconscientes da vida interior.
Os riscos aumentam se considerarmos a especificidade da atividade filosófica; afinal, não se pode negar o caráter técnico da pesquisa em filosofia, com suas exigências altamente especializadas (no tocante ao vocabulário, às metodologias, ao uso das fontes originais etc.). Curiosamente, chega-se a criticar essas exigências técnicas, em nome de uma “democratização” do filosofar. Ao menos em filosofia, democratização sem exigências seria impossível.
Todavia, apesar das dificuldades que o tema implica, seria inteiramente equivocado associar a atividade filosófica com a busca de realização interior? Segundo a linguagem clássica, a filosofia não poderia consolar? Em linguagem mais recente, poderíamos perguntar se a atividade filosófica não se relaciona com a vida afetiva. As escolhas filosóficas não chegariam a essa dimensão da vida interior?
Para um filósofo antigo, como Sêneca e Boécio, por exemplo, é natural pensar numa consolação filosófica, tendo em vista a unidade do trabalho de reflexão e o imbricamento entre lógica, metafísica e ética, apesar da distinção metodológica dessas disciplinas. Para um filósofo moderno ou contemporâneo, dada a cisão da unidade clássica, um efeito consolatório nem sempre é evidente. Constata-se, hoje, uma pulverização das concepções de filosofia, chegando-se mesmo, muitas vezes, a concepções autoritárias e dogmáticas que criticam e põem sob suspeita a tradição nascida com o espírito grego. Em alguns casos, ela derivou para a mais explícita doxa (“opinião”), e as formas de convencimento se dão mais pelo exercício do poder do que pela argumentação.
Não terão os antigos mais nada a dizer? Não fará sentido postular uma unidade interior, de maneira que todo ato livre seja visto como um ato com ressonâncias no conjunto de toda vivência interior?
A CULT oferece aos seus leitores uma das muitas portas para entrar nesse debate polêmico e delicado. A filosofia, feita ou não por especialistas, toca na vida interior de seus praticantes?