Dossiê | Beatles: 1963, o ano que não terminou
Há quarenta anos, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr lançavam Please please me, primeiro LP do grupo, que se confunde com o advento da cultura pop. Leia, neste dossiê, textos sobre a trajetória dos Beatles, sobre o impacto revolucionário das experimentações musicais dos rapazes de Liverpool e sobre sua influência na música brasileira.
The toppermost of the poppermost
Sir James Paul McCartney conta em entrevista o estranho episódio do lunático que bateu à porta de sua casa, em St. John’s Wood, Londres, fevereiro de 1967. Um cara barbudo, mais um dos fãs vestidos à moda hippie que tocaiavam a casa do ídolo no ano I da psicodelia.
O sujeito bateu, McCartney abriu a porta. O visitante o encarou nos olhos e disse: “Posso entrar? Eu sou Jesus Cristo”. McCartney o convidou a entrar, serviu-lhe um chá, conversaram bastante. Uma hora mais tarde, o Beatle precisava sair, para o estúdio, onde a banda tinha horário reservado para gravar “Fixing a hole”. Convidou “Jesus” a acompa nhá-lo. No Regent Studio, que eles estavam usando porque o famoso Abbey Road estava ocupado, “Jesus” entrou mudo e saiu calado, limitando-se a um gesto vago de benção na chegada.
Quando ele se foi, Ringo Starr perguntou quem era a figura. Macca respondeu: “Ele disse que era Jesus Cristo”. Todos – McCartney incluído – caíram na risada. Mas Mc Cartney cuidou de acrescentar: “Podia ser. Podia ser.”
A credulidade é uma das marcas essenciais dos anos “mágicos” da bea tlemania. McCartney, para satisfazer o pai cético quanto às suas chances de sucesso como músico, em 1959 se tornou aprendiz de operário em uma fábrica de bobinas, depois de se formar sem nenhuma distinção no segundo grau, mas sempre soube que seria mais famoso que Elvis. Se os (ainda não) Beatles acreditavam que chegariam ao “toppermost of the poppermost”, estavam sozinhos nessa confiança. (Os colegas de trabalho de McCartney, conhecidos na fábrica como “Mantovani” por conta dos cabelos compridos, sequer acreditavam que ele pudesse se tornar um bom enrolador de bobinas.)
Profumo, Philby, “Please please me”
Na Inglaterra do começo dos anos 60, era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos. Em 1959, Harold Macmillan, herdeiro da editora homônima, liderou os conservadores em uma vitória esmagadora nas eleições parlamentares e foi reconduzido à chefia do governo. Conservador “bossa nova”, Macmillan ganhou da imprensa o apelido “Supermac” e, no ano seguinte, em discurso na Cidade do Cabo, propôs seguir os “ventos da mudança” e desmantelar o que restava do império britânico.
Não ventava muito na Justiça, aparentemente. Em novembro de 1960, a editora Penguin foi a julgamento por publicar O amante de Lady Chatterley, escrito por D. H. Lawrence em 1928, mas proibido por obscenidade em seu país de origem desde então. Em um momento de estultice cósmica, Mervyn Griffith-Jones, o promotor encarregado de defender a censura, começou sua argumentação perguntando ao júri: “Os senhores aprovariam que seus filhos jovens, suas filhas jovens – porque as garotas podem ler tão bem quanto os meninos – lessem esse livro? Os senhores o deixariam pela casa? Os senhores gostariam de que suas esposas ou criados o lessem?” Nada surpreendentemente, o governo foi derrotado.
Em Hamburgo, enquanto isso, atraídos por um adiantamento de cachê de 15 libras, os rapazes de Liverpool tocavam 10 horas por dia na boate Kaiserkeller, dividindo o palco com dançarinas exóticas. Na platéia, estudantes universitários adeptos do existencialismo (os “exis”) compartilhavam o espaço com marinheiros e cafetões.
A distância entre as classes sociais não só se mantinha a mesma como parecia, sempre, intransponível na Liverpool a que os Beatles retornaram, deportados, em 1961. Pouca coisa mudara. As farmácias britânicas passaram a vender a primeira pílula anticoncepcional, Eno vid, naquele ano, e o jornal Private Eye chegou às bancas para satirizar a pudicícia pública e a permissividade privada das elites imperiais. Mas eram duas novidades que na prática se restringiam aos bairros nobres londrinos.
Os dois anos seguintes, no entanto, derrubariam ou pareceriam derrubar todas as barreiras. Elvis Pres ley, de volta do serviço militar, retomou sua sucessão de discos de ouro. Smokey Robinson, com “You better shop around”, deu à gravadora Tam-la (Motown) seu primeiro single de um milhão de cópias. Na Inglaterra, David Hockney, Allen Jones, Patrick Caulfield e R. B. Kitaj realizaram a primeira exposição de arte pop britânica. Beyond the fringe, um espetáculo de sátira política escrito e interpretado por quatro universitários, se tornou o maior sucesso do teatro londrino.
E enquanto caipiras americanos, negros, jovens irreverentes e completos desconhecidos se tornavam heróis culturais, o establishment começava a derrapar. Jack Profumo, secretário da Guerra, casado, se viu envolvido em uma relação controvertida com Christine Keeler, uma mocinha de vida airada que contava, entre seus outros amantes, o adido naval soviético Evguêni Ivanóv. Depois de mentir ao Parlamento sobre a natureza de seu relacionamento com Keeler, Profumo se viu forçado a renunciar, em 1963. Logo a seguir, Kim Philby, que no passado comandara a seção anti-soviética no serviço secreto britânico, desertou e surgiu, sorridente, em Moscou. Macmillan, alegando motivos de saúde, deixaria o governo antes do final do ano, e os conservadores perderiam o poder depois de mais de dez anos nas eleições de 1964.
Os tablóides, que ainda engatinhavam em termos de sensacionalismo, passaram a ser um nivelador democrático – publicando fotos ousadas de Keeler e de sua colega de métier, Mandy Rice-Davies, reportagens sobre surubas à beira-piscina na mansão de Lorde Astor, e ostentando um ar geral de desrespeito para com as autoridades e a sacrossanta tradição de classes que embasava a liturgia social britânica.
E em 2 de março de 1963, “Please please me”, gravada em janeiro pelos quatro meninos simpáticos e irreverentes da distante e jeca Liverpool, chegava ao topo das paradas de sucesso britânicas. Os Beatles, com sua mistura irresistível de talento pop bruto e sex appeal para além das fronteiras de educação ou classe, anunciavam em música que sexo e sucesso são para todos. E os incomodados que chacoalhassem as jóias.
Jovens sem nenhuma raiva
Dick Rowe, então diretor artístico da gravadora Decca, levou a fama por ter rejeitado os Beatles em 1962. A lenda é de que ele se teria justificado dizendo que “bandas com guitarras estão fora de moda”. Não é bem verdade. Mike Smith, um de seus assistentes, é que assistiu ao teste. Hesitando entre os Beatles e Brian Poole and the Tre meloes, Smith recomendou os dois. Rowe disse que só tinha verba para um grupo. Os Beatles, de Liverpool, foram cortados em favor dos londrinos Tremeloes. Mancada histórica? Talvez. Mas quem poderia prever que aqueles meninos que tocaram “September in the rain” (popularizada por Sinatra) e o bolero “Besame mucho” no teste se tornariam um fenômeno?
No final dos anos 50, da con fluência entre o rock americano que chegava à Inglaterra via Elvis Presley e um período de inexplicável sucesso para o movimento trad jazz (releitura britânica do jazz Dixieland que bateu recordes de vendas com músicos como Aker Bilk e Humphrey Lyttleton), surgiu o skiffle.
Skiffle era uma espécie de rock/jazz primitivo, tocado com violões, banjos e instrumentos improvisados (tábua de lavar roupa no lugar da bateria, por exemplo). Lonnie Donegan, seu maior expoente (morto em novembro de 2002), emplacou uma sucessão de hits e inspirou toda uma geração de jovens aspirantes a músicos britânicos, entre os quais John Lennon, Paul McCartney e George Harrison.
Ninguém apostava que o skiffle se tornaria sucesso, ou que abriria as portas para o inesperado sucesso de grupos de rock ingleses como o de Cliff Richards (and the Shadows). Diferentemente de alguns de seus futuros colegas de estrelato como os Rolling Stones e Eric Clapton, os Beatles não eram devotos puristas do blues. O skiffle, a tradição inglesa de music hall e grupos pop americanos, como The Shirelles e The Cookies, eram influências claras em seu trabalho.
Se bem tenham sido adotados pelas vanguardas e tentado a sorte em diversas empreitadas “experimentais” que em 2002 já despertaram bocejos em três gerações de beatlemaníacos, o talento único dos Beatles estava em aspergir pitadas de experimentalismo por sobre uma base essencialmente convencional. Para sorte deles, o produtor com quem terminaram envolvidos graças à rejeição da Decca foi George Martin, da gravadora Parlophone. Músico autodidata e especialista em colagens e efeitos sonoros em função de sua experiência com discos de teatro e comédia, Martin estava bem equipado para realizar na prática os sonhos sonoros da banda.
Quando foram apresentados a Martin, os Beatles saíram deslumbrados porque o produtor era responsável pelos discos do Goon Show, o programa de comédia radiofônica que levou Peter Sellers à fama, nos anos 50, e uma fonte essencial do humor dos Beatles. Ainda que os trocadilhos, as invenções verbais e a distorção deliberada do idioma praticada por John Lennon sejam usualmente atribuídos a um apreço jamais comprovado pela literatura de vanguarda, é o Goon Show que trans parece em muitas de suas letras e entrevistas e nas pequenas sacanagens ocultas ao longo da carreira da banda (como o corinho de “tits tits tits” em “Girl” e a jocosa referência a “finger pie” – um sinônimo ginasiano para masturbação feminina – em “Penny Lane”), bem como nos trocadilhos infames dos títulos de álbuns como Rubber Soul (que foneticamente pode ser entendido como “alma de borracha” ou “sola de borracha”, e indiretamente até como “alma de camisinha”).
E esse humor irreverente dos Beatles ajuda a explicar tanto o fascínio da imprensa por eles quanto as conexões vanguardistas que lhes eram atribuídas. Diante de perguntas ou referências estúpidas ou obscuras, as respostas dos Beatles eram sempre sacanas. (Um clássico, por exemplo, durante a primeira turnê austríaca da banda, é a resposta de Ringo Starr ao jornalista que lhe perguntou se os Beatles haviam sido influenciados por Mozart. “Muito, especialmente pelos poemas”, disse o baterista.)
Ao contrário dos “angry young men” que dominaram o panorama cultural britânico dos anos 50, os Beatles eram rapazes limpinhos. Na verdade, a decisão mais subversiva tomada pela banda foi acatar a faxina que o empresário Brian Epstein impôs na imagem deles quando os contratou. Com os terninhos modernos mas não muito, os cabelos compridos mas não muito e o humor insolente mas aparentemente não muito, os reacionários culturais precisaram de alguns anos para montar uma contra-ofensiva. Entre 1963 e 1967, quando declarações liberais de Paul McCartney sobre as drogas foram severamente criticadas pelo governo, os Beatles escaparam às críticas mais ferozes. Em 1965, receberam a Ordem do Império Britânico, conferida a eles pelo primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson porque teriam “ajudado a salvar a indústria britânica do veludo”. Wilson, satirizado pela banda na canção “Taxman”, um ano mais tarde, não foi o único membro do establishment a tentar pegar carona no prestígio da banda com os jovens.
Os tolos na colina
Elliot Mintz, um amigo americano de John Lennon, conta que em 1973, três anos depois do fim dos Beatles, Lennon o visitou na Califórnia. Na chegada, pediu que Mintz o levasse a um banco, para trocar cheques de viagem. O banco estava fechando, mas imediatamente reabriu quando Lennon foi reconhecido. Ele tirou US$ 10 mil em cheques de viagem do bolso e pediu que fossem trocados. O gerente lhe ofereceu uma conta, mas Lennon recusou. Contou que era a primeira vez em sua vida que tinha entrado em um banco e que jamais tivera a sensação de ter muito dinheiro no bolso. Saiu da agência com os US$ 10 mil.
Lennon tinha, então, 33 anos.
Viver como Beatle, algo que Lennon fizera por 14 anos, é uma experiência singular. Entrar em um banco pela primeira vez aos 33 pode parecer um sonho. Mas o lado negativo da situação é descomunal e talvez menos apreciado.
Lennon e os demais Beatles foram logrados repetidamente por um monte de gente em quem confiavam. As histórias são muitas. Há o famoso Magic Alex, um amigo que convenceu Lennon e Harrison a permitir que ele usasse os motores de suas Ferraris para construir um disco voador. Há o editor musical Dick James e os investidores que terminaram tirando de Lennon e McCartney o controle da empresa criada para administrar seus direitos autorais, a Northern Songs. Há o caso do The Fool, um grupo de “artistas plásticos” hippies holandeses que os Beatles contrataram para dirigir as lojas de moda da Apple, das quais os artistas mãos-leves roubaram todo o estoque. O Maharishi, guru escolhido a dedo pelo grupo, tentou traçar a irmã da atriz Mia Farrow que acompanhara os Beatles na visita deles ao ashram indiano do líder espiritual. Yoko Ono, cuja arte John Lennon tinha patrocinado, passou meses de campana diante da casa do Beatle, ameaçando se matar caso ele não voltasse a ajudá-la, antes que despertasse o tão romantizado amor entre os dois. Brian Epstein, empresário honesto e absurdamente leal aos Beatles até morrer, em 1967, também foi vítima da credulidade. Em 1963, negociando com a United Artists para a produção de A hard day’s night, o primeiro filme dos Beatles, ele abriu a conversa dizendo: “Vou logo avisando – não aceito menos de 7,5% da bilheteria.” O representante do estúdio, sorridente, imediatamente fechou negócio. Ele estava autorizado a oferecer 25%.
E é óbvio que essa credulidade se estendia ao ramo da estética. Os Beatles se envolveram com uma série de facções de vanguarda na cultura. McCartney fez amizade com artistas como Peter Blake e Richard Hamilton (que se responsabilizaram pelas capas de Sgt. Pepper e do álbum branco, respectivamente). Por meio de Yoko Ono, que era membro do movimento, Lennon fez contato com os demais integrantes do picaretíssimo grupo Fluxus (John Cage, Nam June Paik, George Maciunas etc.). Elos com a vanguarda interessavam aos Beatles, cuja educação formal foi precária, por motivos psicológicos. (Lennon e Mc Cartney passaram anos, depois da dissolução da banda, trocando farpas via imprensa para estabelecer qual dos dois era mais “cabeça”.) E elos com os Beatles interessavam à vanguarda porque ofereciam o acesso ao público que ela não tinha.
Essa simbiose um tanto mórbida se desfez rapidamente. Em seus meses finais, os Beatles abandonaram de vez a postura experimental e começaram a caminhada de volta ao rock. E nas décadas que se seguiram à dissolução da banda, a música que eles produziram não tinha pretensões vanguardistas. Apesar de incursões ocasionais no cinema (as melhores das quais empreendidas por Harrison, cuja produtora, Handmade Films, bancou os trabalhos do Monty Python) e na pintura (um hobby de McCartney), os ex-Beatles se concentraram na música.
O fim
Depois de anos de desentendimento, Lennon e McCartney se reaproximaram. Nenhum dos dois planejava retomar os Beatles. Mas voltaram a ser amigos. Em maio de 1976, McCartney estava em Nova York e decidiu visitar Lennon, que escolhera viver nos Estados Unidos. Era sábado. Os dois conversavam diante da televisão.
O programa a que estavam assistindo, Saturday Night Live, era um show de humor ao vivo que estreara oito meses antes. O produtor Lorne Michaels costumava anunciar, a cada semana, que estava disposto a pagar até três mil dólares (uma ninharia) caso os Beatles decidissem se apresentar no programa. Lennon e McCartney se entreolharam. “O estúdio fica só a alguns quarteirões daqui.”
Por alguns minutos, o humor que os aproximara na juventude esteve a ponto de vencer. Mas o fardo de ser um Beatle, de novo, era pesado demais. Deixaram pra lá. E não voltaram a se encontrar.
Em 8 de dezembro de 1980, um idiota tirou vantagem, pela última vez, da credulidade de John Lennon. Abordou-o como se fosse um fã e o matou a tiros diante do edifício Dakota, onde Lennon vivia, em Nova York.
George Harrison morreu de câncer em 29 de novembro de 2001.
E os Beatles voltaram às paradas de sucesso em 2000, ocupando o primeiro lugar em 34 países com uma antologia de primeiros lugares chamada “1”. O sonho acabou. Mas o marketing é eterno.
Paulo Migliacci tradutor, canta “Come together” no chuveiro