Do patológico ao humano universal

Do patológico ao humano universal

Decio Gurfinkel

A depressão é uma vivência subjetiva da maior importância na vida dos homens. A contribuição psicanalítica nesse campo é bastante variada; nesta aproximação introdutória, será enfatizada a passagem que se deu, ao longo dos estudos psicanalíticos, do patológico ao universal. Ou seja, partindo do estudo das diversas formas de adoecimento depressivo, chegou-se à compreensão de uma depressividade própria do humano.
O ponto de partida dessa jornada encontra-se, mais uma vez, na obra de Freud. Seu brilhante artigo “Luto e melancolia” nos fornece a base da compreensão da melancolia, forma grave de depressão caracterizada por intensa prostração e total desinteresse pelo mundo e pela vida. Um traço distintivo dessa forma clínica é uma gigantesca autodepreciação que pode chegar às raias do delírio – o melancólico trata a si mesmo como responsável por todos os males que o cercam –, e que gera um enigma: por que tanta falta de amor-próprio, ou melhor, por que tanto auto-ódio?
A resposta encontrada por Freud é que se trata de uma inversão encobridora, já que o ódio é na verdade dirigido a outra pessoa e não a si mesmo. Por um misterioso processo psíquico inconsciente, esse alguém se aloja, como um fantasma, no mundo interno do sujeito, e agora é objeto de um ódio sem fim, à maneira de um saco de pancadas. Ora, esse outro-dentro-de-mim já não está mais presente no mundo externo; daí a descoberta fundamental de que a depressão está intimamente ligada à perda de um outro significativo para o sujeito (já que ninguém odeia alguém que lhe é indiferente). Essa perda pode ter sido sofrida pela pessoa, mas é, em geral, “produzida” por ela; o melancólico põe a perder aquilo que ama, e em seguida adoece de um ódio imenso que ataca o outro implacavelmente em seu mundo interno. A perda sofrida pode se referir não apenas a uma pessoa, mas também a um ideal, a uma posição etc.

Mas a depressão pode ter diversas outras formas, menos graves e radicais. É o que por vezes se denomina “depressões neuróticas”, já que a melancolia chegou a ser considerada uma “depressão psicótica”, ou ainda uma forma de “neurose narcísica”. O fato é que as depressões são muito frequentes e estão comumente associadas às chamadas psiconeuroses (histeria, neurose obsessiva e fobias), além das diversas formas de neuroses atuais. É difícil precisar os mecanismos que presidem em todos esses casos, mas podemos levantar alguns traços comuns: a vivência crônica da frustração, determinada por uma conjunção de fatores externos e internos, e a correlação desta com a perda, o desengano ou a decepção na relação com o outro. Essas formas de depressão são certamente muito comuns, a ponto de alguns autores considerarem a depressão como a doença do nosso tempo; afinal, não é difícil reconhecermos no nosso modo de vida atual fatores sociais que aumentam muito a possibilidade de eclosões depressivas: a extrema exigência de desempenho combinada com a redução das possibilidades de realização, a degradação geral da qualidade das relações humanas, o ritmo de vida veloz que exaure as energias, entre outros.

A depressão pós-Freud


A psicanálise pós-freudiana tem se desenvolvido em inúmeras direções, e novas formas de depressão têm sido descritas. Dentre elas, destacam-se aquelas que eu agruparia sob a rubrica de “depressões brancas”. Nelas, o que impera é o vazio, o oco, o sem sentido. Assim, temos a chamada “depressão essencial” (descrita por Pierre Marty), muito sutil e perigosa, que passa facilmente despercebida. Nela, dão-se um desaparecimento total de todo o interesse por si ou pelo mundo e uma vida automática e repetitiva, sem afetos, arroubos, fantasias ou sonhos, mas também não se observam sintomas produtivos, como as queixas constantes, a autorrecriminação, o sofrimento manifesto ou a angústia. Há apenas o vazio. Um dos perigos maiores dessa “crise sem ruído” é que, se ela perdura, pode abrir caminho para adoecimentos somáticos graves, tais como doenças autoimunes, infecções galopantes e neoplasias. Essa foi uma importante descoberta da psicossomática psicanalítica, que guarda importantes consequências para o campo da saúde pública. As “depressões esquizoides” (descritas por Winnicott) caracterizam-se por intensas vivências de vazio psíquico, acompanhadas de um sentimento de futilidade e de que a vida não vale a pena; nelas predominam ameaças de desintegração, cisões, despersonalização, sentimentos de irrealidade e defesas psicóticas. As pessoas esquizoides foram gravemente atingidas em etapas precoces de seu desenvolvimento emocional, o que não lhes facultou a construção da capacidade humana fundamental de estabelecer um contato significativo e mutuamente enriquecedor com o meio circundante. As trocas não puderam se estabelecer, e entre o eu e o outro se formou um enorme abismo. Outros autores descreveram também depressões do tipo “branco”, tais como o “complexo da mãe morta”, de André Green, e o “estado deprimido”, de Pierre Fédida (ou seja, a patologia do vazio, a doença do tempo congelado na imobilidade do corpo), enriquecendo sobremaneira o alcance da compreensão e do trabalho dos psicanalistas contemporâneos.

Fora do âmbito patológico


Mas a principal contribuição da psicanálise para o estudo da depressão foi tirá-la do âmbito exclusivamente patológico. Ao colocar a perda no centro da questão depressiva, Freud já de saída aproximou a depressão do fenômeno universal do luto; todos nós temos, de alguma maneira, de aprender a lidar com as perdas que fazem necessariamente parte do viver. O caráter efêmero de tudo o que é vivo – do próprio corpo, das capacidades físicas e psíquicas, dos entes queridos, dos relacionamentos, dos ideais etc. – coloca-nos em uma condição trágica e diante do constante desafio de reconstruir a vida a partir das cinzas, ou dos restos de lutos maiores ou menores que inevitavelmente enfrentamos. Os melancólicos, em sua doença, são paradoxalmente sábios e revelam uma “lucidez louca”: eles denunciam aos quatro ventos a pequenez, o egoísmo, a fragilidade e a mesquinhez do eu que em geral escondemos de nós mesmos. É desconcertante perceber a grande sensibilidade artística dos melancólicos, aliada à vocação de revelar a face verdadeira e insuportável de nossos valores; daí muitos artistas, tais como Dostoiévski, Virginia Woolf e Marguerite Duras, terem sofrido desse mal.
Melanie Klein foi a psicanalista que pela primeira vez teorizou sobre a dimensão universal e não patológica da depressão. Dando prosseguimento aos trabalhos de Freud e Abraham, ela propôs que todos passamos, em nossa infância precoce, por uma “posição depressiva” – à qual retornamos continuamente ao longo da vida. Nessa “posição”, tomamos contato e consciência da enorme ambivalência afetiva que nos habita: amamos e odiamos, na mesma medida, aqueles que nos estão próximos, o que comporta enormes implicações emocionais. A dor de se perceber tendo atacado e machucado um objeto amado não é facilmente tolerada; a tendência mais primitiva do ser humano é dividir o mundo de maneira maniqueísta entre “bons” e “maus”, a fim de evitar o conflito da ambivalência. Na posição depressiva, surge a culpa pelos impulsos agressivos, assim como um sentido de responsabilidade e de preocupação com o outro; isso implica um considerável nível de maturidade emocional e representa uma importante conquista. Ora, as patologias da depressão – e particularmente a psicose maníaco-depressiva – devem-se, para Klein, a uma impossibilidade de mergulhar na posição depressiva.

Um valor positivo da depressão


Assim, começamos a compreender o valor positivo da depressão e, mais precisamente, a importância crucial da depressividade do humano. Todos passamos ao longo da vida por diversas crises de humor depressivo, motivadas por uma conjunção de fatores externos ou internos. Nelas, somos confrontados com nossas próprias forças destrutivas interiores e com a ameaça de perda que está inevitavelmente a elas associada, já que em diversas ocasiões contribuímos para “pôr a perder” o que mais amamos. Os afetos que nesses momentos surgem são a tristeza, o pesar e a preocupação; a energia psíquica não está disponível para grandes empreitadas no mundo, já que ela está em grande parte absorvida por um “balanço” interior e por um reordenamento de forças e recursos próprios. Em geral, quando a estrutura psíquica de quem vive uma crise depressiva é suficientemente forte, a pessoa é capaz de suportar a dor depressiva e concluir a travessia a contento, sendo recompensada por isso. O resultado é uma reconquista da confiança em si mesmo e um reposicionamento mais consistente no relacionamento com os outros, levando-se em conta a totalidade dos impulsos e desejos envolvidos e a situação externa. Conforme o “balanço” finaliza, reabrimos nossas portas para o mundo em uma condição mais favorável, e certamente mais fortalecidos.
No entanto, esse desfecho nem sempre é possível, e nesses casos uma patologia depressiva sobrevém. O principal motivo reside em uma fragilidade psíquica estrutural, que impede que a travessia seja bem-sucedida; a capacidade de recuperar o “bom humor” não estava bem estabelecida. A atitude humorística é, para Freud, um dos maiores tesouros dos homens, já que lhes permite afirmar a força possível de seu eu, fazendo frente aos dissabores, frustrações e perdas que são inevitáveis, sem cair na doença. A doença, nesse caso, seria ou a saída maníaca – que evita a vivência depressiva a qualquer custo, afirmando de modo delirante uma onipotência que o eu de fato não tem –, ou a queda no estado deprimido, no qual a “loucura da lucidez” abraça com todas as forças a causa da insignificância do eu e sucumbe nas águas profundas e negras do sem sentido.
A terapêutica psicanalítica está profundamente comprometida com a problemática da depressão, seja em seu esforço contínuo de ajudar os sujeitos deprimidos a encontrar saídas de seu sofrimento tão violento, seja ao buscar, em cada tratamento, um enriquecimento por meio do mergulho na depressividade universal do humano. O humor depressivo possibilita-nos um contato mais profundo e real com nossos afetos, com nosso mundo interno e, por decorrência, com os outros e com o mundo externo. Para a psicanálise, só faz sentido pensar a depressão com base em sua dupla face: tanto como queda no vazio quanto como contínuo trabalho de renascimento a partir das cinzas.

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