Do cinema, da imagem e do século

Do cinema, da imagem e do século
Adam Driver em cena de 'Paterson', de Jim Jarmusch (Foto: Reprodução)

 

Nos últimos dias, pensei em escrever sobre o cinema, pensei em escrever sobre o Instagram, pensei em escrever sobre o fato de não ter o que escrever. Mas nenhum desses assuntos, nem mesmo o último, me dominou. Foi quando alguém me disse (alguém com origens turcas distantes): apenas escreva. E é o que eu estou fazendo.

Como Paterson, o personagem principal do último filme de Jim Jarmusch, que vive numa pequena cidade americana chamada Paterson, a mesma cidade em que viveu William Carlos Williams, que escreveu um poema épico intitulado “Paterson” e que foi publicado em cinto volumes, entre 1946 e 1958. Paterson é também o título do filme de Jim Jarmusch. Temos então quatro coisas que se chamam “Paterson”: uma cidade, um livro, um filme, um personagem. “Paterson” é o nome de tudo isso, mas, ao mesmo tempo, é o nome de Outra coisa. E é sobre essa Outra coisa que esta coluna quer escrever.

De algum modo, há, numa certa literatura, uma busca de uma escrita absolutamente impessoal, que apague o seu sujeito. Paterson, o filme, talvez seja uma tentativa de flagrar essa busca. A começar por propor um personagem que tem o mesmo nome da cidade em que vive. Imaginem vocês que eu me chamasse Rio, e morasse no Rio, ou Paris, e morasse em Paris.

É como se esse personagem, que não se distingue da sua própria cidade, como se se autoabolisse frente a ela, e esse personagem é um poeta. Então é como se ser poeta fosse o nome dessa autoabolição. Cosmo se o filme de Jarmusch levasse o livro de William Carlos Williams a uma segunda potência. O poeta não é apenas aquele que faz, da própria cidade, a sua obra de arte, mas aquele que não pode mais se distinguir dela nem mesmo pelo nome.

Paterson é uma pessoa, é um livro, é uma cidade, é um filme, mas Paterson é sobretudo o nome de uma busca: a da própria autoabolição, e de como, nessa busca, surge um resto, uma assinatura, que é a própria poesia. A poesia seria assim, a um só tempo, tanto o movimento de autoabolição do sujeito quanto a produção do que resiste a esse processo ou a redução do sujeito a um real puramente pulsional sem subjetividade. A própria existência da poesia já seria um signo dessa resistência. A poesia não só produz um resto: ela mesma é esse resto. Talvez, por ter descoberto isso, Rimbaud tenha parado de escrever, para levar até o fim, radicalmente, sem restos, a abolição de si mesmo. Algo de que talvez Raduan Nassar também tenha sentido o apelo.

Esse resto que vem à tona no poema, o resto desse sujeito que se autoabole, pode ser descrito pelo próprio movimento pulsional que ele descreve em relação aos objetos. Um palito de fósforo, por exemplo, o qual dá origem, surpreendentemente, ao primeiro poema que vemos surgir em Paterson, o filme. Esse sujeito que se autoabole em sua subjetividade, cujo nome é o nome da sua cidade, se vê especialmente ligado a palitos de fósforos, às suas marcas, cores, texturas, embalagens. O primeiro poema que vemos surgir em Paterson nos dá um sujeito puramente sensorial, sem história subjetiva, mas ligado à chama incandescente dos palitos de fósforo que ele acende ao longo dos dias e das noites.

O cinema nasce no final do século 19, como a psicanálise. Podemos dar para ambos o mesmo ano de nascimento: 1895, se pensamos na primeira exibição pública feita pelos irmãos Lumière, em dezembro daquele ano, na cave do Grand Café, em Paris, e na publicação, no mesmo ano, dos Estudos sobre a histeria, de Breuer e Freud. Apesar de terem surgido no final do século 19, tanto a psicanálise como o cinema alcançaram a sua glória no século 20, juntamente com outra importante manifestação artística: o jazz. O século 20 pode ser definido, em grande parte, como o século do cinema, da psicanálise e do jazz. Mas, para todas essas três manifestações, houve a questão acerca de sua sobrevivência após o fim do século 20. Antes mesmo que esse século terminasse, Miles Davis, um dos maiores músicos da história do Jazz (para muitos, o maior de todos), vaticinou: “o jazz acabou”. Mas não houve um cineasta que tivesse dito “o cinema acabou” ou um psicanalista que tenha dito “a psicanálise acabou”. A questão da sobrevivência do cinema enquanto arte, contudo, é uma questão que se coloca para todos os cineastas da atualidade, assim como a questão da sobrevivência da psicanálise no século 21 se impõe como um problema para todos os psicanalistas do nosso tempo. Numa entrevista dada na Itália, na década de 1970, e que depois foi publicada sob o título “O triunfo da religião”, Lacan teria dito: “A psicanálise sobreviverá ou não”.

Tem sido para mim uma experiência notável assistir aos novos filmes de grandes cineastas do século 20 que ainda se encontram em atividade no século 21. Citarei três que me ocorrem de imediato, todos lançados no Brasil em 2016, e nos quais flagro um mesmo movimento: Que viva Eisenstein!, de Peter Greenaway; Os oito odiados, de Quentin Tarantino; Julieta, de Pedro Almodóvar. Diante da questão “que cinema fazer no século 21?”, os três dão respostas muito parecidas: retornar aos grandes mestres. O gênio da montagem de Eisenstein, para Greenaway; o grande faroeste de John Ford para Tarantino; o melodrama hollywoodiano de Douglas Sirk para Almodóvar. Como se frente à questão do futuro do cinema no século 21, esses cineastas se voltassem para o seu passado. Como se só o passado pudesse fazer frente a um futuro indefinido.

A resposta de Jim Jarmusch, parece-me, vai em outra direção, pelo menos se pensamos em Paterson, que também estreou em 2016, no Festival de Cannes. O único futuro para o cinema, podemos imaginar a partir do filme do cineasta americano, talvez seja a poesia. O que quer dizer que em vez de buscar a contemporaneidade, em sentido superficial, o cinema procuraria uma certa extemporaneidade, já que a poesia existe desde que o homem existe e é, nesse sentido, histórica e a-histórica. Histórica, porque também ela experimenta e experimentou diversas formas e suportes, mas a-histórica, porque, apesar dessa diversidade, não existe registro de experiência humana que não conheça poesia. A poesia responderia, nesse sentido, a um real, no sentido do que volta sempre no mesmo lugar. Como o cinema poderia ser algo que responde ao real?

Talvez o maior golpe sofrido pelo cinema tenha sido o fim da película. Ao se tornar digital, o cinema teve que se colocar em pé de igualdade com as outras produções de imagens digitais em movimento de nosso tempo. E é aí, nessa selva, que ele fica um pouco perdido, mesmo que ele ainda goze de algum prestígio. No fim das contas, fazer um filme acabou se tornando algo mais parecido com a publicação de um romance, face à produção incessante de imagens por todo tipo de aplicativos e redes sociais. O cinema, em nossos dias, o que ele é? O que lhe resta? Será que também poderíamos estender essas questões à literatura em geral, e à poesia em particular? Por incrível que pareça, a poesia me parece estar em melhor situação que o cinema, já que ela circula por todas as redes sociais contemporâneas e todos os suportes artísticos, mesmo que ela ainda possa ser publicada em livro. Mas o cinema, como ele pode deslizar nesse mundo sem perder a sua aura? Talvez estejamos nos dando conta de que, ao contrário do que Benjamin escreveu em seu famoso ensaio sobre a reprodutibilidade da obra de arte, o cinema ainda era uma arte cheia de aura, quando pensamos nos enormes projetores que rodavam as películas dos filmes. Para mim, hoje, ir ao cinema e não ouvir mais o barulho dos projetores é um lástima, uma perda da aura do cinema.

Para nós que produzimos e consumimos diariamente toda sorte de imagens em movimento feitas com smartphones ou câmeras digitais e postadas instantaneamente nas mais diversas redes sociais, como o Facebook, o Instagram, o Tumblr, o Snapchat, ou simplesmente enviadas através do Whatsapp, qual o estatuto da imagem cinematográfica? Para nós que assistimos a filmes em notebooks, laptops, smartphones, PCs, em tevês a cabo ou no Netflix, qual o estatuto da imagem cinematográfica? Para nós que vamos a cinemas multiplex que se parecem mais com home theaters gigantes do que com salas de projeção propriamente ditas, qual o estatuto da imagem cinematográfica? Será que um dia o cinema feito em película retornará como vemos hoje retornar o vinil? Será que o cinema se tornará vintage?

As artes visuais, nesse sentido, parecem ter sobrevivo melhor à perda de seus antigos suportes, como a pintura e a escultura. O fato de não mais se nomearem artes plásticas, mas artes visuais, já indicaria a mudança que teve lugar aqui, na passagem de um século a outro. Na passagem da película para o digital, não creio que tenha havido uma mudança equivalente no domínio do cinema. Os cineastas não receberam novos nomes. Será que o cinema está fadado a se tornar uma arte do passado, como a ópera, por exemplo? Será que nossa relação como  o cinema se tornou nostálgica? Todas essas questões me surgiram após assistir a Paterson, o lindo filme de Jim Jarmusch.

(1) Comentário

  1. Esse texto é brilhante! concordo com o autor ao dizer que o cinema parece home theaters. Apesar que a tecnologia ser muito útil em nossas vidas, as vezes acabam atrapalhando o belo com a modernidade.

Deixe o seu comentário

TV Cult