Diversidade ou diferença?

Diversidade ou diferença?
O Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR)

 

Foi na virada entre as décadas de 1980 e 1990, quando alguns conflitos envolvendo diferenças culturais ganharam visibilidade midiática, que emergiu a discussão teórica e política sobre a diversidade e a diferença. Os conflitos raciais renovados nos Estados Unidos, a ameaça separatista do Quebéc no Canadá devido a sua diferença linguística e cultural em relação ao resto do país, além de outras formas de conflito na Europa, tudo fazia refletir sobre a fragilidade dos princípios universalistas do direito e da cidadania no chamado Primeiro Mundo.

Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema: The politics of recognition, do filósofo canadense Charles Taylor. Sua reflexão serviu de base para muito do que foi escrito desde então sobre diversidade, tanto em termos acadêmicos como em políticas sociais. A noção de diversidade busca – dentro de um enquadramento universalista – abarcar as demandas por respeito e acesso a direitos por parte de grupos historicamente subalternizados como negros, povos indígenas, homossexuais, mulheres.

Em sociedades democráticas fundadas no universalismo, como a francesa, é notória a dificuldade em reconhecer demandas de grupos chamados de “minoritários”. Em uma ordem republicana universal não há espaço para a diferença, daí medidas como a proibição de imagens religiosas em repartições públicas e a recusa do uso do véu por estudantes muçulmanas nas escolas. A rationale universalista exige que o Estado laico seja preservado à custa do ocultamento das diferentes formas de confissão que nele convivem.

Em países como os Estados Unidos e o Canadá, a concepção política de nação é mais permeável a demandas diferenciais, por isso o Estado adota medidas de reconhecimento e/ou políticas como as ações afirmativas que visam, por exemplo, ampliar o acesso de negros e mulheres às universidades e mesmo aos postos de trabalho. Nesses países, a noção de diversidade engendrou a de multiculturalismo, uma forma de compreender as diferenças internas à nação como uma riqueza cultural. Ao mesmo tempo, diversidade e multiculturalismo se construíram como um adendo ou reforma das instituições sem problematizá-las mais profundamente, apenas disseminando o valor da tolerância à diferença. Vale sublinhar que tolerar a diversidade é muito diferente de a acolher, deixar-se influenciar e se transformar por ela.

No início da década de 1990, começaram a surgir as críticas, dentre as quais destaco a forma como a diversidade se baseia em uma concepção de cultura frágil e estática assim como compreende horizontalmente as relações de poder dentro de uma nação. Culturas não são estáticas tampouco o poder existe sem hierarquias e conflitos, portanto a diversidade e o multiculturalismo se revelam incapazes de superar a problemática para a qual foram criados. Eles buscavam materializar o que alguns chamaram – ironicamente – de “política do arco-íris”: a utopia de uma sociedade que poderia manter suas diferenças lado a lado, sem conflitos, negociações e mudanças na cultura como um todo.

Intelectuais comprometidos com grupos historicamente subalternizados criticaram a perspectiva da diversidade e do multiculturalismo enfatizando que as diferenças demandam reconhecimento que levará – necessariamente – à transformação da ordem institucional. Não é possível colocar diferenças lado a lado sem intercâmbios e transformações da cultura como um todo, tampouco ignorar que essas se deem, muitas vezes, de forma conflituosa. Assim como afirmaram clássicos da teoria social como Marx e Weber, os teóricos das diferenças reconhecem que o conflito é parte da vida social.

A perspectiva da diversidade não é pacífica, apenas busca contornar o conflito com uma concepção de sociedade multicultural baseada na expectativa de que o reconhecimento de grupos subalternizados não modificará as relações de poder e a própria concepção vigente de justiça e direitos. De forma direta – e um tanto impressionista – é possível dizer que constitui uma vertente política construída sob a perspectiva daqueles que detêm o poder, já têm acesso a direitos e propõem estendê-los a outros sem modificar a estrutura institucional em que se baseiam. Não é mero acaso que boa parte das políticas envolvendo diversidade e multiculturalismo se apresentam como adendos, programas complementares para “colorir” o já existente com uma suposta aura “democrática”.

A perspectiva das diferenças reconhece que os dilemas das nações contemporâneas são resultado de conflitos entre as instituições estabelecidas e a emergência de demandas dos já citados grupos sociais, portanto ela aponta para a necessária renegociação política e cultural que pode criar sociedades mais justas. Ao reconhecer conflitos históricos, os pensadores dessa linha também consideram salutar a transformação institucional para negociá-los. Sobretudo, questionam a possibilidade de apenas estender direitos sem problematizar a própria concepção vigente de cidadania, a qual contribuiu para disseminar desigualdades.

Greve das Mulheres pela Igualdade (Women’s Strike for Equality) em Nova York, 29 de agosto de 1970 (Foto Diana Davies)
Greve das Mulheres pela Igualdade (Women’s Strike for Equality) em Nova York, 29 de agosto de 1970 (Foto Diana Davies)

Do universalismo às diferenças
O universalismo pautou a construção de democracias em termos políticos em que a cidadania foi pensada como única porque projetada em uma sociedade imaginada como homogênea. A grande encarnação dessa comunidade imaginada foi a nação, um construto histórico, político e cultural que – segundo historiadores – ganhou protagonismo a partir de fins do século 18. Não por acaso, no mesmo período em que se inicia a era contemporânea e sua promessa de superação das hierarquias do Velho Regime.

Algumas das primeiras feministas, como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, apontaram já naquela época que o liberalismo político se associou ao econômico na afirmação de valores universais, como o de que todos são iguais perante a lei, já definindo o cidadão como homem. Assim, a universalidade e sua promessa de igualdade começou criando modalidades de cidadania ao relegar as mulheres a uma posição inferior, pois não tinham acesso à educação, direito ao voto, ao patrimônio ou qualquer forma de autonomia individual, mesmo porque eram tuteladas do nascimento até a morte.

Os países em que a democracia universalista começava a ser construída também tinham outras contradições para lidar, como o colonialismo e a escravidão em suas colônias. Na primeira república moderna, os Estados Unidos da América, em 1848, um grupo de feministas e abolicionistas criou um manifesto conjunto intitulado “Declaração de Sentimentos”. Suas demandas de direitos iguais sublinhavam o caráter servil que a nova ordem política reservava às mulheres e aos negros evidenciando que a democracia na América ainda tinha um longo caminho a construir.

Mundo afora, movimentos anticolonialistas, feministas e abolicionistas problematizaram os ideais universalistas assentados no imperialismo, na dominação das mulheres e na escravidão. Infelizmente, tal história não entrou para os livros, tampouco teve a atenção devida antes da década de 1960, quando tais movimentos se reconfiguraram e ganharam adesão massiva. Foi nessa época que emergiu o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a chamada “segunda onda” do feminismo e o movimento homossexual. Tais movimentos tinham em comum a demanda de reconhecimento social e legal de suas diferenças, uma nova forma de clamar por igualdade.

O movimento feminista, por exemplo, em sua primeira onda era predominantemente igualitarista. Do século 19 à primeira metade do século 20, seus principais slogans eram o direito à educação e ao voto, os mesmos que já eram garantidos aos homens. Alcançadas essas demandas na maior parte do mundo, a partir da década de 1960, a agenda feminista é renovada e volta-se para direitos que exigem reconhecer diferenças. Um deles é o da autonomia corporal, o direito de escolha sobre a contracepção. Em outras palavras, o movimento – desde então – tornou-se um feminismo da diferença.

A luta pelo direito ao aborto assim como a do movimento homossexual pela despatologização e descriminalização do desejo por pessoas do mesmo sexo contribuíram para fissurar o mito da nação como uma comunidade reprodutiva. A sociedade que, desde a invenção da pílula, começara a separar o sexo da reprodução e cujas demandas políticas de negros envolviam o direito ao casamento inter-racial, se deparava com um cenário novo na esfera das relações de gênero, sexualidade e, inclusive, étnico-raciais. Desde então, o mito da homogeneidade cultural e política não cessou de ser cada vez mais problematizado, e não apenas nos países centrais.

As diferenças no Brasil
Na época em que emergem as discussões teóricas, conceituais e legais recentes para lidar com os limites do universalismo, o Brasil vivenciava a ruptura com seu passado autoritário e a expectativa de construir uma democracia baseada na Constituição de 1988. Não tardou para que a liberdade permitisse que vozes abafadas durante o Regime Militar (1964-1985) começassem a se articular em torno de demandas de reconhecimento. Refiro-me aqui à reorganização de movimentos sociais, em especial o feminista, o negro e o que viria a se denominar de LGBT, os quais criaram novas pautas e formas de atuação. Foram esses movimentos que pouco a pouco fissuraram mitos sobre a nação brasileira que escondiam ou minoravam as divergências sobre a representação historicamente construída de que ela seria conciliatória, pacífica e, sobretudo, justa.

Há décadas era fato mundialmente conhecido de que temos uma das piores distribuições de renda do mundo, mas até recentemente permaneciam insuficientemente problematizadas outras formas de desigualdade. Na academia, até a mais evidente, a desigualdade étnico-racial, tendeu a ser abordada como questão econômica ou de “integração” por muitas décadas. E, mesmo no presente, gera divergências acaloradas entre intelectuais que insistem em salvar o mito da democracia racial e aqueles que propõem pensar em outros termos a forma como a sociedade brasileira efetiva e cotidianamente lida com diferenças étnico-raciais. As divergências têm pendido para seu reconhecimento em políticas como as ações afirmativas no ensino superior e em concursos públicos.

A pauta de direitos das mulheres também tem sido bem sucedida. A luta feminista alcançou vitórias admiráveis, as quais modificaram a ordem institucional, política, mas também cultural. Há evidências empíricas de melhoras de indicadores de igualdade entre mulheres e homens, como a aprovação da Lei Maria da Penha que pune a violência contra mulheres, mas não foi aprovada a descriminalização do aborto. A despeito dos sucessos, a agenda feminista precisa se manter e incrementar políticas públicas para alcançar seus objetivos, o que – no ritmo atual – ainda pode levar algumas décadas.

A problemática das diferenças que ainda gera mais resistência é a da sexualidade e do gênero. As pautas LGBT geram formas flagrantes de desqualificação de setores conservadores tornando evidente algo que a sociedade brasileira nunca reconheceu: seu moralismo. O mito da liberalidade sexual esconde não apenas o preconceito contra expressões do desejo por pessoas do mesmo sexo, mas também de dissidências de gênero ou de demandas de autonomia contraceptiva. O discurso conservador de suposta defesa da família mal encobre o desejo de manter os privilégios dos homens assim como a ordem que os privilegia.

As conquistas e resistências brevemente descritas acima demonstram que, a partir da década de 1990, nosso país entrou em sintonia com as discussões internacionais. A maioria dos programas estatais adotaram o termo diversidade e o uso de referências ao multiculturalismo para descrever iniciativas para lidar com as recentes demandas por reconhecimento e direitos. Infelizmente, tal adoção vocabular tendeu a ser feita de forma acrítica e se disseminou, sem o devido debate, até mesmo nos movimentos sociais.

Lutas políticas exigem reconhecer e problematizar o vocabulário em que se dão. No caso, contrapondo à retórica da diversidade e do multiculturalismo a perspectiva das diferenças, do reconhecimento da existência de conflitos e desigualdades que exigem a transformação social e política de nossa sociedade. A perspectiva das diferenças, afinada com as demandas históricas dos movimentos sociais, propõe repensar a nação brasileira como ainda a compreendemos e, neste exercício cultural e político, refletir sobre como reformar a cidadania, de maneira que ela não seja apenas disponível a alguns, antes suficientemente democrática para abarcar a todos e todas.


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