Disforme, inconformado, performativo – Ou Do teatro e algumas de suas questões formais –
Perfor7 (foto: Divulgação)
“Arte do hoje, representação de amanhã, que se pretende a mesma de ontem, interpretada por homens que mudaram diante de novos espectadores; a encenação de dez anos atrás, por mais qualidades que tenha apresentado, está hoje tão morta quanto o cavalo de Rolando ”.
Anne Ubersfeld. Para ler o teatro.
O verbete “performance” que o pesquisador e performer Renato Cohen redigiu para o Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos apresenta duas definições nucleares para o entendimento de boa parte das inquietações que mobilizam a arte da cena hoje e das possibilidades expressivas com as quais ela se vê às voltas. Inicialmente, Cohen afirma que “partindo da investigação de suporte, das assemblages do corpo (body art), dos happenings que enfatizam o acontecimento e do uso de multimídia, a performance propõe modos inventivos num movimento antiestablishment e antiarte”, para, um pouco mais adiante, chamar a atenção para o fato de que “a performance estende e desconstrói a tríade da linguagem teatral – atuante-texto-público –, incorporando a corporalidade e o teatro de imagens ao texto, alterando as relações de espaço-tempo convencionais”.
Pois bem, reúnem-se aqui algumas noções-chave ligadas às principais questões formais que envolvem aquilo que entendemos por performatividade na cena contemporânea, como acontecimento, multimídia, desestabilização, negação da arte, desconstrução, corporeidade, imagem, tempo e espaço, a serem examinadas a partir da relação que estabelecem entre si e de sua organização em três áreas temáticas autônomas, mas interligadas – a saber: o regime de percepção concebido pelo teatro nos dias de hoje, a experiência intersubjetiva que ele pode proporcionar e os dispositivos críticos que é capaz de disparar –, dispostas a orientar as reflexões que seguem.
Uma das grandes linhas de força sobre as quais está assentado o fenômeno do teatro diz respeito ao seu caráter primariamente perceptivo. Partindo da afirmação de Jean-Louis Barrault a respeito de ser a representação teatral “um corpo-a-corpo coletivo, um verdadeiro ato de amor, uma comunhão sensual de dois grupos humanos [atores e plateia]”, podemos chegar à ideia da visão fenomenológica do espetáculo teatral, propositor de uma espessa massa de estímulos, signos e materiais que apelam não somente aos cinco sentidos do espectador, mas também a sua cognição, sensibilidade e psicologia. Assim é que o teatro é uma arte (téchne, para os gregos) que estabelece com a natureza (physis) uma relação toda especial, que parte do vivido para chegar ao conhecido. Na série de cursos que deu no Collège de France entre 1957 e 1960, reunidos no livro A natureza, Maurice Merleau-Ponty trata do lugar ocupado pelo corpo humano no estudo filosófico da natureza: “… a Natureza de que falamos (só pode ser, evidentemente, a Natureza percebida por nós) e cujo modo de ser descrevemos será esclarecida pela descrição do corpo humano enquanto percipiente: é o mesmo Ineinander que abordamos alternadamente pelas duas pontas. [Em nota, a organizadora da obra, Dominique Séglard, explica que o filósofo define o termo da seguinte maneira: “a inerência de si ao mundo ou do mundo a si, de si ao outro e do outro a si, é que Husserl designa por Ineinander”]. Ineinander que não é aquele de uma coisa numa coisa. Ineinander de fato, mas que é ratificado por nosso Ineinander vivido, percebido. Inversamente, o que precede esclarecerá a nossa abordagem do corpo humano como percipiente ao mostrar-nos em que dimensão deve ser procurado o corpo percipiente, como o invisível é afastamento em relação ao visível”.
Dois corpos se encontram no ato teatral: de um lado, o corpo do ator, que poderá privar da espontaneidade do corpo natural ou se submeter a um controle absoluto proposto pelo próprio intérprete ou pelo encenador; de outro, o corpo do espectador, que recebe cineticamente o que emana do corpo do ator em direção a ele e o transforma em desejo e fantasia, a partir dos quais sua própria memória corporal será solicitada. Trata-se de um encontro potente, que investe em uma configuração corporal-sinestésica estranha, imprevista, nova, cujo grande desafio é ultrapassar os limites da realidade impostos pelo mundo circundante.
Ocorre que o regime de percepção do homem tem sofrido complexas transformações que, se não são novas – o professor de arte moderna e teoria da arte norte-americano Jonathan Crary localiza o início dessa mudança no último quartel do século XIX –, adquiriram nos últimos anos uma condição especial em virtude do crescente e avassalador incremento das tecnologias digitais. O crítico russo Lev Manovitch em The labor of perception adverte para o processo disciplinador vivido pelo corpo humano na sociedade pós-industrial tanto na esfera do trabalho quanto na do entretenimento, que substituem gradualmente a atividade corporal pelo processamento mental de informações. “Ora, assim como o corpo foi levado aos seus limites na sociedade industrial, na sociedade pós-industrial é a vez da performance perceptual e mental serem exorbitadas e terem seus limites esgarçados – o que acontece quando a capacidade humana de processar informações passa a tolher o funcionamento do sistema homem-máquina”, afirma sobre o trabalho de Manovitch a pesquisadora Stella Senra no prefácio de Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna, de Jonathan Crary.
Desta feita, o caráter performativo que muitas experiências do teatro moderno encampam não está associado às noções de competência e desempenho, também ligadas à palavra de origem inglesa (cuja formação etimológica remete ao latim: per = o que atravessa + forma = imagem ou modelo), tão em voga nos discursos tecnocráticos que exaltam, aqui e ali, ideias reificadas como máximo rendimento e acirrada competitividade. Diametralmente oposto a tal noção, o traço semântico de performance que interessa às teatralidades contemporâneas resistentes à padronização do regime de percepção imposto pela sociedade pós-industrial diz respeito à exploração de imagens que se recusam a imitar o real, renovando o estatuto da representação da realidade; à exposição de uma corporeidade visceral, intensa e imponderável entre ator e espectador; ao uso das tecnologias multimídia não para celebrar o sistema integrado “homem-máquina” e, sim, para desregular esta interface fetichizada pela via de uma entropia semiótica que reconfigura os papeis no teatro, como afirma Patrice Pavis: “Dirigimo-nos para um ‘ator de síntese’, feito de diversos materiais, segundo uma arte da simulação que rejeita a fronteira entre o autêntico e o fabricado. Acha-se assim redefinido o papel do autor, do espectador e dos protagonistas, sejam eles ‘de síntese’ ou de ‘carne e osso’”.
A segunda linha de força do teatro contemporâneo está calcada na experiência intersubjetiva de que ele não abre mão em momento algum. A noção de sujeito significando “o eu”, “a consciência” ou “a capacidade de iniciativa em geral” começa com o pensamento de Immanuel Kant (1724-1804) e adquire a partir de então o estatuto de um problema central para a filosofia. Assim é que a subjetividade entendida como o “caráter de todos os fenômenos psíquicos, porquanto fenômenos de consciência”, pertencentes ao eu e ao sujeito do homem, irá interessar, a partir do século XIX, a todas as artes, de modo geral, impactando, de maneira bastante especial, a arte da cena. Em meados do século XX, Sartre avança em direção à ideia de que a subjetividade é indispensável ao conhecimento do social, afirmando em O que é a subjetividade? que “há portanto, duas dimensões que é preciso perpetuamente retotalizar na subjetividade, e retotalizá-las sem as conhecer: o passado e, ao mesmo tempo, o ser de classe. O sujeito tem de ser o seu ser de classe, e ninguém o é, voltaremos a esse ponto. Tem de ser no sentido em que só se chega a sê-lo sob a forma de, perpetuamente, subjetivamente, determinar a sê-lo. Seja como for tem-se de ser o seu próprio passado”, para um pouco mais adiante concluir: “Constamos assim que, no desenrolar da luta, o momento subjetivo, como maneira de ser no interior do momento objetivo, é absolutamente indispensável ao desenvolvimento dialético da vida social e do processo histórico”.
Entretanto, a filosofia contemporânea irá anunciar a derrocada da “imagem do sujeito como princípio determinante do mundo do conhecimento e da ação (e como ‘fundamento’ de verdade)”, de acordo com as palavras do Dicionário de filosofia, de Nicola Abbagnano, propondo, então, a ideia da constituição de um sujeito sujeitado, às voltas com novos modelos de subjetivação. Problematizar esse sujeito arruinado, mas não de todo aniquilado – lembremo-nos da máxima de Ernest Hemingway em O velho e o mar: “Um homem pode ser destruído, mas não derrotado” – é tarefa do teatro, a partir da inequívoca força advinda da experiência intersubjetiva que ele propõe. Nesse sentido, a performance tem algo a ensinar ao mundo do teatro, quando ela instaura um processo de desmistificação do sujeito em cena, como mostra Josette Féral em Além dos limites: teoria e prática do teatro: “A performance, ao contrário, embora falando de um sujeito perfeitamente assumido, ramifica fluxos e objetos simbólicos sobre uma zona desestabilizada (corpos, espaço), zona infrassimbólica. Esses objetos só acessoriamente se apresentam em trânsito por um sujeito (aqui o performer), um sujeito que não se presta, a não ser de um modo muito superficial e parcialmente à sua própria performance. Retalhado em feixes semióticos, em pulsão, ele é um puro catalisador. Ele é aquilo que permite aparecer àquilo que deve aparecer. Ele permite de fato a transição, a passagem, o deslocamento”.
Novos modos de figuração do sujeito são concebidos com vista a instaurar um acontecimento real entre o palco e a plateia. A presença de um ator assumindo um sujeito, parcial ou precariamente constituído, diante do espectador convida à radicalidade da experiência intersubjetiva por meio da qual essa presença dual – reciprocamente percebida no espaço-tempo de um aqui e agora – revitaliza a humanidade, fazendo com que não somente o teatro, em caráter estrito, mas também a vida social, em sentido mais amplo, nada mais seja do que um acontecimento entre seres humanos.
Por fim, resta tratar dos dispositivos críticos que a arte da cena é capaz de mobilizar, potencializados quando em contato criativo com o campo da performance. Ao recusar o modo da representação, sustentado pelas exigências da ilusão, do jogo e da ficção, e investir sua energia na ação de um fazer que frutifica o tempo todo o real, a performance recusa a teatralidade, negando seu desempenho, instabilizando sua normatividade, destruindo sua sistematização. Aqui, novamente é preciso invocar o depoimento de Josette Féral: “A performance aparece assim como uma forma de arte cujo objetivo primeiro é o de desfazer as “competências” (essencialmente teatrais). Essas competências, elas as reajusta, as rearranja em um desdobramento dessistematizado. Não se pode deixar de falar aqui de “desconstrução”, mas, em vez de se tratar de um gesto “linguístico-teórico”, trata-se aqui de um verdadeiro gesto, uma gestualidade desterritorializada. Como tal, a performance apresenta um desafio ao teatro e a toda reflexão do teatro sobre si próprio. Tal reflexão, ela a reorienta, forçando a uma abertura, e obrigando-a a uma exploração das margens do teatro”.
Resistindo às formas espetaculares disciplinadas e disciplinadoras do espírito humano (que encontram sua mais perfeita tradução no teatro musical forjado sob o modelo da Broadway, na comédia stand-up que virou fenômeno popular recente e em toda uma série de espetáculos calcados na presença magnética de um ator-celebridade em cena), o teatro vai buscar na fricção com o mundo real a expressão de uma perspectiva crítica, imanente a ele próprio desde que os primeiros tragediógrafos gregos começaram a deslocar o universo do mito em direção ao mundo da literatura. Desse modo, o discurso teatral contrasta firmemente com o dos homens médios, “entorpecidos ou automatizados por seus hábitos cotidianos”, conforme aponta Alfredo Bosi em Literatura e resistência, advertindo para o fato de a arte, quando atravessada pela tensão crítica, é capaz de mostrar “sem retórica nem alarde ideológico, que essa ‘vida como ela é’, quase sempre, o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida”.
Ao se anunciar não mais como forma acabada e sim em seu aspecto movente, fluido, poroso aos inúmeros contatos com a vida real, o teatro nos dias de hoje assume sua posição de arte inconformada com certos modos de ver, perceber, sentir e conhecer o mundo. Renitente a aceitar o horizonte normativo sobre o qual se projeta a figura de um sujeito reduzido a certa egolatria, ele se dispõe a converter os modos de percepção e os modelos de subjetivação contemporâneos em objetos de crítica. Deixando-se contaminar pela rebeldia e inquietude da performance, então, ele, disforme, inconformado, performativo, potencializa sua inequívoca função política, alimentando-se de formas não de todo desenvolvidas, formas indiferenciadas que ainda precisam nascer.
Obs.: O presente artigo integra o livro digital O que não é performance, organizado pelo Coletivo Sem Título, s.d., cujo lançamento integra as atividades da Perfor7 [como?], a sétima edição do fórum de performance da BrP.