Direita, volver

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Direita, volver

 

Um estado de suspense, o ano de 1964 era também, para alguns, uma possibilidade. Imerso nos fatos – o golpe de março com a tomada de poder pelos militares -, porém distante do jogo de forças políticas, o advogado paulista Boris Fausto, então com 34 anos e um graduando em história pela Universidade de São Paulo (USP), não sabia ainda identificar como seria o destino da democracia brasileira. A mudança política lhe parecia como algo possível, que poderia, inclusive, não contrariar nenhuma norma moral, já que a tomada de decisão do golpe estava sendo feita em nome da recuperação e da promoção de valores democráticos. Assim ele testemunhou essa mudança do rumo da política no Brasil: teve a visão comum das coisas, numa época de sua formação, e, mais tarde, pôde trabalhar a observação científica sobre o passado, tornando-se um dos mais respeitados historiadores brasileiros.

Sobre os efeitos imediatos e instantâneos, Boris Fausto guarda, primeiro, a ideia da possibilidade; depois, em 1968, a tensão e o medo. Já o que diz respeito à análise distanciada, por exemplo, presente em História Concisa do Brasil (Edusp), há passagens em que ele observa o momento da ditadura como um regime que teve características autoritárias, distinguindo-se, porém, do fascismo. “Não se realizaram esforços para organizar as massas em apoio ao governo; não se tentou construir o partido único acima do Estado, nem uma ideologia capaz de ganhar setores letrados. Pelo contrário, a ideologia de esquerda continuou a ser dominante nas universidades e nos meios culturais em geral”. O historiador em momento algum nega a existência da ditadura durante o regime militar, entretanto põe em questão que esse momento da história brasileira teve, mesmo de forma esparsa (e refutável), centelhas de democracia.  “O regime implantado em 1964 não foi uma ditadura pessoal. Poderíamos compará-lo a um condomínio em que um dos chefes militares – general de quatro estrelas – era escolhido para governar o país com prazo definido. A sucessão presidencial se realizava de fato no interior da corporação militar. Na aparência, de acordo com a legislação, era o Congresso quem elegia o presidente da República, indicado pela Arena. Mas o Congresso, descontados os votos da oposição, apenas sacramentava a ordem vinda de cima”.

Se 1964 havia uma possibilidade, em 1968 temia-se a repressão, em 1984 a transição do regime, contudo, para Fausto, teve “a vantagem de não provocar grandes abalos sociais”, levando, assim, o país a uma nova situação democrática em que o ganho, para o historiador, não está exatamente na vitória de um governo de direita ou de esquerda, mas na possibilidade do debate, na promoção de temas como igualdade racial, sexual e a defesa do ambiente. Em entrevista à CULT, realizada em sua casa no bairro do Butantã, em São Paulo, Boris Fausto se aproxima e se distancia de 1964, vezes como cidadão, outras como historiador.

CULT – Em 1964, o senhor tinha já migrado do direito para a história?

Boris Fausto – Nunca houve uma passagem completa do direito para a história. Eu sempre, profissionalmente, vivi do direito. Em 1964 eu passava por uma transição. Tive até 1962 um escritório de advocacia particular com um colega, quando, no mesmo ano, prestei concurso para procuradoria do Estado e fui trabalhar na USP. Minha vontade de fazer história que já vinha de bastante tempo ganhou uma possibilidade mais concreta. Em 64, eu  trabalhava como consultor jurídico na USP e fazia a graduação em história.

Quem eram os professores que mais lhe impressionavam na ocasião?

Era Emília Viotti, que dava aula nos primeiros anos, e depois se exilou nos EUA e passou a morar lá. O outro era Fernando Novais, com quem conversei muito na época pra  avaliar se valeria fazer ou não o curso de história. E uma terceira pessoa, menos conhecida entre nós, uma pessoa que tinha uma grande erudição em história do pensamento na época dos descobrimentos marítimos ou das navegações portuguesas, que se chamava Joaquim Barradas de Carvalho. O Barradas foi uma figura muito digna e séria que teve a má sorte de chegar ao Brasil em abril de 1964. Ele era um exilado do salazarismo, morava há muitos anos na França e tinha resolvido aceitar o convite para viver no Brasil. E chegou precisamente num momento em que se instalava uma ditadura no Brasil.

E como foi com as pessoas de seu convívio. Como os acontecimentos do ano de 1964 interferiram no seu momento de graduação?

Minha posição como estudante era bastante excepcional. Eu era um aluno muito mais velho do que os demais da turma. Eu não tinha nenhum grande envolvimento, do ponto de vista universitário.  Mas o golpe, nas suas conseqüências imediatas, para certas pessoas, não todas, não a maioria, mas uma grande parte, tinha alguma coisa de possível. Havia alguma coisa no ar que poderia ir para esquerda ou pra direita numa situação particularmente tensa.  Muita gente não imaginava qual seria a profundidade do golpe. Eu me lembro numa discussão com amigos: será que vão cassar mandatos? Se eles estão falando tanto em restauração da democracia, como é que eles vão compatibilizar isso com cortes no congresso? Isso é  muito contraditório, complicado. Não avaliávamos muito a profundidade daquelas iniciativas. E na universidade se instalou, em alguns setores, um clima de caça às bruxas, de tensão, de medo. O caso mais típico foi o da medicina, nesse ano de 1964.  Havia divisões, facções na medicina que se chocavam por razões de carreira e também por razões políticas. Então quando você mistura essas duas coisas, você tem dinamite preparada. Na medida em que houve o golpe, uma situação excepcional, então se criaram muitas condições para que de dentro para fora, inclusive, a direita da faculdade passasse a dedurar o pessoal que era de esquerda ou era simpático de esquerda.

Em que medida o golpe foi ditadura desde o seu princípio? Havia uma dúvida, na ocasião, se ele era uma ditadura ou não?

Naquele momento, a gente, eu, não chegava a perceber qual seria o alcance dessa interrupção de um sistema democrático. “Eles vão fazer uma limpeza, purificar a democracia e nós vamos logo retomar um quadro constitucional. Ou vai haver uma ditadura que vai se aprofundar?” Essa era dúvida que havia em 64 e 65. Essa dúvida ficou inteiramente resolvida em 1968; com o AI 5 ficou claro que tinha se instalado um regime militar autoritário e que tinha vindo para ficar e por muito tempo. Até 68 havia uma situação de tensão, de exceção, de violência. A gente não sabia muito bem como seria o desfecho disso, se seria uma transição com muita violência ou se ele consolidaria como uma opção, e o que aconteceu foi que se consolidou como opção. Hoje se afirma claramente que foi uma ditadura, mas é preciso tomar cuidado para distinguir. Porque quando a gente diz que foi uma ditadura é uma afirmação em que cabe de tudo, então é preciso classificar. Foi uma ditadura com algumas características particulares: o congresso ficou aberto, houve dois partidos políticos etc. Se você for comparar com a Argentina é muito diferente. Foi uma ditadura, no Brasil, porque não há eleições livres, porque quem tem o poder é a cúpula militar, porque não há liberdade de imprensa, porque há violência, a partir de um momento a tortura se torna instrumento do regime, está claro que foi uma ditadura. A nossa foi muito mais regrada do que a da Argentina.

E lá ocorreu uma guerra civil.

Você não tem guerra civil aqui, você tem choques, mas choques localizados, aqui você um quadro institucional regular, presidências que se sucederam, generais que se sucederam, através de eleições fechadas, sacramentadas no congresso depois no colégio eleitoral. Na Argentina você teve atos mais caóticos e, inclusive, muito mais violência.

Mas essa ausência de choques, essa relativa menor violência, enfim, essa trajetória diferente se deve a que?

Tem a ver com circunstâncias de determinados países e de determinadas situações. No caso brasileiro, você tem o fato que não há uma polarização muito grande da sociedade, uma intervenção organizada da sociedade, das diferentes classes sociais, então isso reduziu muito o impacto dos choques, porque não houve choques e possibilitou a existência de uma ditadura que operou uma série de reformas, que era pouco mobilizadora e que se apoiava nos seus êxitos econômicos e também na fraqueza da oposição, além da percepção de certos atores políticos como o Geisel que, por exemplo, permitiu que se fizesse uma transição mais suave para o regime democrático. Até as características da sociedade brasileira contribuíram para o menor confronto.

Poderia me explicar quais são essas características?

Uma sociedade que tem como característica um maior grau de composição entre os diferentes atores políticos.

Por exemplo, com o fim da ditadura, nós tivemos, depois dela, e ainda no poder, atores políticos do regime anterior. É sobre essa grande capacidade de articulação que o senhor está falando?

Vou te dar alguns exemplos, a transição para o regime democrático foi feita de uma maneira gradual. Bom ou ruim, foi assim. O impeachment do Collor se fez por uma via legal e depois nós tivemos a transição de um presidente para outro já no regime democrático, do FHC para o Lula, que foi uma transição civilizada e normal, como deveriam ser todas as transições, então isso dá uma certa marca não de concordância de todas as posições, mas de respeito a alguns princípios e de uma capacidade também de barganha, de entendimento, de jogo de cintura.

Quatro décadas representam uma distância razoável para podermos contar a historia de 1964? A documentação é, de fato, acessível?

A respeito de distância, hoje, é muito corrente entre os historiadores a ideia de fazer história do dia anterior, uma história imediata; não há mais o preconceito de se falar do passado próximo. Eu ainda peguei um tempo em que os velhos professores de história diziam não ser possível estudar a primeira república porque era muito cedo: “isso vira política e não história”. Os brasilianistas entraram nesse campo, porque ninguém trabalhava nesse campo. Dá para fazer historia recente, dá, mas há limites. Entram nossas opiniões, a nossa paixão. Se você controlar um pouco essa paixão e usar o seu  testemunho, procurando ser um pouco mais objetivo, pode-se ganhar muito com isso, pode-se apresentar com um relato uma análise muito mais interessante. Com relação à documentação, falta de documentação, geralmente, é pretexto. A respeito de 64 existem lacunas.

Mas existe uma quantidade de coisas abertas, uma parte dos arquivos americanos estão abertos, existe o material  de imprensa, mesmo que a imprensa em certos períodos tenha sido censurada, existem inúmeros depoimentos de pessoas que viveram essa época, problemas de documentação, sinceramente, não existem. O episódio da guerrilha do Araguaia, por exemplo, foi bastante exposto. Uma das vantagens da distância é o de se olhar mais para o conjunto, de se ter um pouco mais de frieza em relação a esse período, que não se revela só coisas negativas. Todo esse período do regime militar é um período contraditório, ele não tem apenas aspectos negativos –  são eles que saltam à vista, mas eles não explicam todo o conjunto do regime militar.

Você nunca foi ameaçado por ele?

Eu tive apenas duas breves prisões, uma em 64, por três dias, e outra no começo dos anos 70, quando fui retido por algumas horas.

 Por que o levaram, já que não era engajado na oposição?

Em 64 fui levado por causa de um inquérito policial militar. Fui processado e  ganhei um habeas corpus.  O caso terminou aí. Nos começos dos anos 70, fui preso apenas porque recebia uma pessoa que tinha algum envolvimento com opositores. Acharam, então, que eu poderia ter. A diferença é que depois de 68 tudo era arbitrário, pois se quisessem me deixar preso realmente poderiam. Veja a diferença do quadro de 64: fui pelo caminho judicial e consegui. A repressão se agravou muito. Depois de 68, você já não tinha direito ao habeas corpus e não tinha para quem apelar, se alguém desaparece não se sabia quem procurar. Nesse sentido, pode-se falar que houve ‘uma democratização da violência’, porque isso atingia a todo mundo, aqueles contatos de classe média, a ideia de que vou falar com  fulano ou sicrano para me ajudar, tudo isso desapareceu.

E o que teria acontecido se não tivesse ocorrido o golpe?

É verdade que nós havíamos chegado a uma situação econômica grave, paralisação no Congresso, radicalização do setor organizado, tudo isso acabou tornando as chances de um golpe algo muito grande. É difícil imaginar o que teria sido o Brasil sem o golpe, mas é evidente que o Brasil estava precisando de uma série de medidas de contenção do plano econômico que teriam de ser feitas no âmbito do regime democrático, mas isso não se realizou. O que ganhou realmente força foi a opção por um golpe. Eu acho que a lição da época para as pessoas de hoje é justamente a questão da democracia mais do que qualquer outra coisa, porque em 64 a direita realmente não apostava no regime democrático, mas a esquerda também não apostava na democracia como um valor muito importante, relevante era a reforma social ou, para certos grupos, a revolução. Democracia, para alguns, era até um entrave a essa perspectiva de grande transformação social, então, uma das tragédias desse período foi esse abandono da crença na democracia e na necessidade de preservar um sistema político. Era muito difícil preservar um sistema político, mas quando não há consciência disso as coisas se tornam muito mais complicadas. Havia pessoas que buscavam um ajuste do terreno democrático. Mas a tendência na época era a de que a democracia era um instrumento, e pode ser um instrumento útil e pode não ser. O que isso tem a ver com os dias de hoje? As gerações novas vivem um clima democrático, com todos os problemas de hoje (violência urbana etc), mas com tudo isso você tem um regime em que se discute, opiniões são ditas, pessoas são eleitas e a imprensa fala. Tudo isso faz parte do ar que se respira. É preciso dizer que essa é uma conquista de enorme importância, e, para quem viveu em uma situação de fechamento, pode ver que essa época foi uma lição para que isso não aconteça novamente.

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