Notícias de outras ilhas: Dirceu Villa
(Foto: Arquivo pessoal)
Dirceu Villa (1975, São Paulo) é poeta, tradutor e ensaísta. Tem cinco livros de poesia publicados, MCMXCVIII (1998), Descort (2003), Icterofagia (2008), Transformador (antologia, 2014), speechless tribes: três séries de poemas incompreensíveis (2018), e um inédito, couraça (no prelo, 2020). É tradutor de Um anarquista e outros contos, de Joseph Conrad (2009), Lustra, de Ezra Pound (2011), Famosa na sua cabeça, de Mairéad Byrne (2015, com posfácio de Leonardo Fróes) e “O Anjo Heurtebise”, de Jean Cocteau (no prelo, 2020). Sua poesia já foi traduzida para o espanhol, o inglês, o francês, o italiano e o alemão, publicada em antologias e revistas. Tem doutorado em Literaturas de Língua Inglesa pela USP (com estágio de doutorado em Londres), estudando o Renascimento na Inglaterra e na Itália, e pós-doutorado em Literatura Brasileira, revisando o cânone de poesia de língua portuguesa. Ensinou literatura na pós lato-sensu da USP, na graduação da UNIFESP e há sete anos é professor da Oficina de Tradução Poética da Casa Guilherme de Almeida (Centro de Estudos de Tradução Literária).
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Srečko Kosovel, Óssip Mandelstam e H. D., Hilda Doolittle . A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.
A reclusão é algo, penso, que poetas em geral sabem fazer bem, já pelo isolamento de sua arte. O horror coletivo, por outro lado, estava escrito com tanta precisão quanto a antiga hybris grega nas antigas tragédias: há quase cinco anos, lembro de ter dito a pessoas que assistiam coniventes ao golpe de Estado de 2016 que não se viola a democracia impunemente, que os gregos sabiam que toda vez que se cruza uma linha fundamental gera-se uma coisa chamada nêmesis, & nêmesis sempre volta para cobrar o seu preço. Eis a nêmesis, & que nos ensine sobre responsabilidade coletiva. Já a pandemia é, como diria o Coringa, part of the plan, & devemos ser capazes de notar que foi & está sendo enfaticamente usada para reduzir a empatia & para limitar nossas já limitadas liberdades. Assim, escolhi três poemas que me convocaram neste período de auto-isolamento. Apenas o último traduzi do original em inglês, os demais traduzi de diversas fontes, & de diversos modos: um, do grande poeta esloveno Srečko Kosovel (1904 – 1926), infelizmente pouco conhecido no Brasil, & que me foi sugerido há alguns anos por Samuel Pinheiro. Faz parte dos Konsi, poemas construtivistas (abreviatura de konstrukcije, ou “construções”) & pretendia mesmo lançar uma revista chamada Konstruktor; “Kons: 4” é um poema político, mas inventivamente político, que traduzi de modo inventivo (o pau-de-arara, é claro, é adição minha). O segundo, famoso poema de Óssip Mandelstam (1891-1938), poeta russo-polonês de origem judaica, que nos ensinou a todos como tratar tiranos em poesia sem escrever mero panfleto, ao massacrar Stálin antes que ele o massacrasse por isso — como sabemos bem, tiranos perseguem artistas que põem-lhes um espelho diante da cara feia. Por fim, trago um trecho do longo, belo & inovador poema da estadunidense H. D., Hilda Doolittle (1886-1961), Helen in Egypt (1961), porque é um épico moderno importantíssimo, & desconhecido entre nós. Nele, H.D. recria o périplo da chamada Helena de Tróia a partir de um antigo fragmento de Estesícoro, propondo que Helena fora levada ao Egito & que gregos & troianos fizeram guerra por motivo ilusório, como guerras costumam ser. Gaudete.
KONS : 4
Srečko Kosovel
Boston acusa Einstein
Einstein é banido.
Perigosa, a relatividade?
Em Berlim prendem
estudantes chineses.
Perigosos, os estudantes chineses?
SHS muda o governo.
Mudou já muito de governo.
França. Espanha. Marrocos.
O cabo aterroriza.
O tira aterroriza.
Gente graúda vive
pela lei de suas almas,
gentalha, pela letra da lei.
§ X: 14 dias em cana.
§ Y: No pau-de-arara.
§ Z: Em exílio.
Estive preso por 21 anos.
10 X no pau-de-arara.
Exilado para sempre.
Aí, querida, vai chorar?
Não sou capaz de chorar.
Sou forte como a faca
afiada pra furar o coração.
Notas do tradutor
(1) Einstein sofreu oposição de católicos em Boston (incluindo o cardeal) por ser considerado ateu.
(2) SHS: Kraljevina Srbov, Hrvatov in Slovencev, ou “Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos”.
***
O montanhês do Kremlin
Óssip Mandelstam
Nossas vidas, já sem o chão sob nós.
A dez passos não se ouve nossa voz.
Mas onde quer que a fala encontre vez,
lá do Kremlin se mete o montanhês.
Vermes gordos, os dez dedos da mão,
suas palavras, pesos que desabam,
gargalham sobre os lábios as baratas,
um brilho de navalha em suas botas.
Se cerca de capangas e covardes
e se serve dos servis com crueldade.
Um mia, um assobia, aquele geme,
mas só ele estronda, só ele espreme.
Forja decretos como ferraduras,
um na testa, um no olho, um na cintura.
Impõe penas como morde framboesas:
eis como o ossétio abraça as suas presas.
***
De Helena No Egito (1961), “Eidolon”, Livro Iii, Parte Iv
Hilda Doolittle
Seus olhos fletiam ao modo antigo?
era ela grega, era ela egípcia?
ou marujo fenício a forjou?
era de cedro, de carvalho?
fora talhada de pau-ferro bruto,
lenho náutico, que um nauta fez,
e depois na proa a rebitou,
ou fora a proa mesma, em forma
de seu corpo de sereia,
curvada à sua coma de sereia?
havia traço de tinta
no início, resquício de roupa,
e então o azul cedeu?
e retocaram os braços, os ombros?
alguém a tocara algum dia?
Terá tido sacerdote, amante,
ou só aquele a amou?
terá alçado o cinto de algas
ou coroa pintada? quantas vezes
os altos seios singraram a espuma
quantas mergulharam?
(Traduções de Dirceu Villa)