A dignidade do voto
O voto é uma instituição democrática valiosa nas democracias. Teoricamente, ele tem a função de manifestar a escolha que define quem serão os representantes das pessoas em geral, eleitores ou, para usar um termo genérico e politicamente ainda válido, o povo. Nas democracias considera-se que a escolha do povo implica liberdade. A liberdade é uma ideia sequestrada pelo liberalismo e pelo neoliberalismo. Ela é uma ideia chave distorcida e rebaixada à mercadoria pelo capitalismo. Ora, não podemos pensar a liberdade, inclusive a liberdade do voto, sem levar isso em conta hoje.
A romantização da liberdade faz parte da romantização da democracia. É uma forma de produção de capital ideológico, mas também diz respeito a uma degeneração.
Assim como a democracia costuma degenerar em demagogia, em plutocracia e em populismo, o idealismo político degenera em romantização ideológica.
O processo de degeneração faz parte da história da democracia como um ideal prático nascido para organizar o poder. A democracia nunca foi pelo povo. Ela sempre foi um jogo e um acordo de poderosos que visam manter o povo quieto e submisso. Nas democracias não se trata de evitar a guerra de todos contra todos, mas de evitar que o povo faça revoluções. Ao mesmo tempo, por meio do voto, o povo que tem medo da guerra, na qual ele tende a ser massacrado, aprende a fazer acordo com o poder e manifestar uma certa vontade, ou uma vontade dentro do mercado político ao qual vem sendo reduzida a política na era de sua destruição.
Por meio do voto, o povo manifesta seu acordo com jogos de poder. Conhecendo e desconhecendo em gradações diversas esses jogos, o povo aceita fazer parte para seguir em paz sua vida. Esquecer a política faz parte da tentativa de viver em paz, pois a política sempre traz muito esforço mental e prático, além de sofrimento. As pessoas, em geral, querem apenas viver.
Como o voto é dialético, não querendo morrer massacrado pelo Estado que manipula a democracia, às vezes o povo decide fazer uma certa revolução – chamaremos aqui de revolução possível – através do voto e elege trabalhadores, indígenas, afrodescendentes e mulheres, e outros agentes indesejáveis que pensam e agem na contramão do poder do Estado ocupado por oligarcas e sujeitos que têm o monopólio econômico, religioso e ideológico.
Ora, o Estado sempre foi uma instituição a serviço dos poderosos, um administrador da democracia, daí a importância de sua tomada pelo povo, ou seja, pela classe trabalhadora e pelos sujeitos e grupos na mira da destruição pelo sistema.
No Brasil, um acordo tácito está em voga nesse momento histórico de sua democracia machista e burguesa, mas que é a única que temos e que, se puder ser mantida, deve ser superada por uma democracia radical a ser reconstruída a partir dos escombros levados pelo fascismo. De fato, o fascismo pode acabar de vez com o resto mínimo de democracia que ainda temos. Estamos por um fio. É urgente, portanto, tentar salvar esse estranho objeto que cai direto no abismo desde o golpe de 2016 e da eleição do autoritarismo e do extermínio de inocentes em 2018.
Espera-se vencer o fascismo de Estado com o voto. É uma estratégia digna e oportuna, no momento em que o risco de tomar as ruas implica para indivíduos e grupos de cidadãos e ativistas, uma alta chance de acabar sendo morto pela polícia exterminadora. A ameaça de morte contra os que lutam pela democracia foi declarada na campanha e segue dando as linhas do governo fascista. É o medo da morte violenta que está sendo escamoteado pela sensação de inércia e descaso com a política expressa na ausência do povo nas ruas.
No contexto do acordo tácito em torno do voto capaz de derrotar fascistas, parte daqueles que lutam pela democracia e não gostam de Lula começam a se sentir mal por Lula ser o candidato com mais chance de vencer o presidente atual, uma figura fundamental como agitador fascista com seu imenso potencial de condução demagógica e populista das massas. Outros, que gostam de Lula, se sentem mal pela chapa composta com Geraldo Alckmin, figura cuja história é indigesta para a esquerda que luta pela democracia. Uma face dessa composição simboliza um acordo para vencer o candidato fascista, outra face implica que Geraldo Alckmin é um escudo para que Lula possa ser candidato. Certamente uma terceira face implica que Lula vem a ser o único caminho para que Alckmin possa ter alguma chance de chegar ao poder presidencial. Quem gosta de Alckmin se sente incomodado com Lula e assim segue o baile.
De qualquer modo, a chapa indigesta para muitos é a única alternativa real a Bolsonaro no poder, ou seja, ou se elege essa chapa ou se deixa que o fascismo permaneça no poder. Isso quer dizer que, se não elegermos essa chapa, estaremos deixando Bolsonaro no poder. Em outras palavras, e de um modo ainda mais simples, é preciso dizer que, por não gostarmos da chapa Lula/Alckmin e, consequentemente não votarmos nela, estaremos elegendo Bolsonaro, mesmo que pela via negativa.
Contra isso, alguém dirá, “eu tenho direito de votar em gente melhor”, “eu sou livre para votar”, ou “votar em Alckmin fere meus princípios”. Sim, de fato, numa democracia, ninguém retira o direito ao voto de ninguém, embora seja permitido – na dose de hipocrisia própria à democracia machista/racista/burguesa, que a publicidade manipule o voto.
Contudo, de fato, já não estamos numa democracia; na verdade, vivemos em um Estado de exceção. Isso quer dizer que as leis são relativas, elas funcionam conforme o gosto dos soberanos.
Nesse contexto, o argumento que apela à liberdade, ao direito de escolha, já não vale muita coisa quando vários direitos estão cancelados e as leis funcionam conforme o desejo dos poderosos. O voto se torna alguma coisa anômala no contexto de um Estado de exceção que usa a democracia apenas para se legitimar.
No meio disso tudo, o problema do fascismo em voga e que devemos derrotar não é apenas relativo ao uso da liberdade. O problema mais concreto do fascismo é que pessoas são privadas do direito de ir e vir e até mesmo do direito à vida. No limite, como o fascismo atual serve também para eliminar indesejados, sejam eles mulheres pelo feminicídio, pobres pela fome, falta de sistema de saúde, falta de moradia, de indígenas e da população afrodescendente por todos os meios, inclusive a morte violenta e o assassinato pela polícia violenta, resta à burguesia clamar por liberdade e outros sentimentos morais. Resta à burguesia clamar por seu direito de escolha.
Certamente todos queremos liberdade, mas a liberdade torna-se um luxo distante para quem tem fome e habita a rua no inverno, como é visto agora em todo o Brasil. O aumento crescente do desemprego e de famílias inteiras condenadas à fome e a habitar as ruas sem direito a nada deve relativizar a moral que sustenta a democracia burguesa (machista, racista, etc). Sem a mínima proteção do Estado sequestrado para servir os poderosos, banqueiros e super ricos, o povo vai simplesmente morrer em velocidades coerentes com as tecnologias do extermínio.
No meio disso tudo, surge o tema da dignidade do voto. Dignidade é uma categoria que expressa a qualidade do ser humano como aquilo que não tem preço. Podemos aplicar essa categoria para pensar a dignidade dos gestos que não têm preço.
Votar em Bolsonaro é uma indignidade porque gera um preço pesado demais para ser pago. Quem o pagará? Não serão os super ricos que, no limite, esperam poder ir para o espaço sideral em projetos de colonização delirante. Quem pagará é o povo que já está acostumado a pagar até a morte. São trabalhadores sem trabalho, jovens sem escola, famílias sem alimento, indígenas sem terras, todo um sistema que esquece do sofrimento alheio, que valoriza o individualismo e finge ficar chocado quando alguém aponta o dedo para a injustiça.
No meio disso, gente de esquerda vem apelar pela liberdade e princípios. É bonito e respeitável. E é digno quando se pensa em democracia. Agentes da esquerda dizem, desde quando Bolsonaro se elegeu em 2018, “não vou votar no PT no primeiro turno, por uma questão de princípios, mas depois, no segundo turno, vamos lutar juntos contra o fascismo”. A contradição a ser aposentada nesse discurso carregado de ingenuidade é simples: princípios devem valer sempre. Não há dois pesos e duas medidas para princípios. Ou se vota ou não se vota. E quando não se vota em um, necessariamente se elege um outro. Não basta votar para eleger. Pode se eleger quem não se deseja eleger com a potência inútil e negativa do próprio voto.
Certamente é o capital moral que está sendo usado nesse argumento. Ele colabora com a ineficácia do voto, num contexto em que a ação política é urgente para derrotar o fascismo.
Sendo que há partidos e agentes que sobrevivem disso, já que nunca precisam agir de fato, mas apenas falar, o discurso segue fazendo sucesso através do gozo moralista a que conduz.
O voto é uma ação essencial no estágio atual da democracia. E ele se dá dentro de limites estreitos. Nesse momento o voto é sintoma de angústia política. E é o que poderá nos livrar dela na prática.
Fazer a palavra acompanhar a ação e suas consequências define a dignidade como uma categoria histórica e pragmática, para além do romantismo e do idealismo que, por sua vez, também podem esconder oportunismos políticos, além da forte dose de ingenuidade que muitos não gostam de ver denunciada. Apelar à sensibilidade, à liberdade e a outros parâmetros estético e morais é justo e válido, mas pode também ser a grande armadilha histórica para afastar da luta que, quando bem lutada, corre o risco de não poupar ninguém. A ingenuidade esconde a astúcia da sobrevivência, princípio da lógica burguesa que acovarda muita gente. Atrás dos moralistas de esquerda se esconde o medo de chegar ao poder, de perder privilégios. O grito e a crítica correm o risco de cair no conforto contraditoriamente conservador de se continuar criticando sem fazer nada para mudar o estado de coisas real, porque esse mundo de algum modo lhes convém.
Contra a indignidade do voto da direita em Bolsonaro, e contra a inutilidade do voto da esquerda romântica, com a dose de oportunismo que pode tornar esse voto indigno ao eleger Bolsonaro, sugiro a coragem de enfrentar a realidade que nos permite intensificar a dignidade da luta.
Aqueles que dizem que não votarão em Lula no primeiro turno, mas apenas no segundo, tem muita confiança de que Lula vencerá. Não com sua ajuda. Estão disponíveis para sair do moralismo e dos princípios no segundo turno, mas não no primeiro. Barganham seu voto como uma concessão. Tentam astuciosamente bancar o moralismo conforme o momento, ou seja, funcionam com base na oportunidade. Apostam alto de que haverá segundo turno e evitam dar uma vitória acachapante contra o fascismo para sustentar o moralismo que, num país como o Brasil, serve apenas para afastar da prática.
De fato, é preciso sonhar com o melhor na política. Mas não a ponto de ofuscar a visão e cair no puro idealismo ideologizado e romantizado. A fome do povo não pode esperar.
Marcia Tiburi é professora de filosofia na Universidade Paris 8.