Diálogos com Orides Fontela
A poeta Orides Fontela, que completaria 80 anos nesta terça (21) (Foto: Juan Esteves/Folhapress)
Orides Fontela é uma das mais importantes poetas brasileiras. Nascida em São João da Boa Vista (sp) em 1940, nos deixou em Campos do Jordão (SP), numa segunda-feira de novembro, em 1998. Hoje, ela faria 80 anos.
Publicou os livros de poesia Transposição (Instituto de Espanhol da usp, 1969), Helianto (Duas Cidades, 1973), Alba (Roswitha Kempf, 1983), Rosácea (Roswitha Kempf, 1986), Trevo (1969-1988) (Coleção Claro Enigma – Duas Cidades, 1988) e Teia (Geração Editorial, 1996).
Quando leio seus poemas (em sua densidade antilírica), imagino-a fazendo mágica com seus heliantos, a dura e dolorosa realidade de sua poética, sua respiração transformada em potentes e cortantes, sintéticos e inteligentes versos. Para celebrar sua poesia, imaginei esta homenagem. E desafiei a mim e a mais nove poetas (Adriane Garcia, Clarisse Lyra, Cláudia Sehbe, Leila Danziger, Michaela v. Schmaedel, Mônica de Aquino, Patrícia Lavelle, Rita Isadora Pessoa e Viviane Nogueira) a criar um diálogo com alguns de seus poemas mais instigantes (contemplando um pouco de todos seus livros). Assim surgiu a questão: com quais versos você dialogaria com este poema de Orides? O resultado a essa provocação ficou bonito, como vocês verão a seguir. Os últimos versos de seu último livro são “depois dela só há/ o silêncio”. É com esse silêncio, que, generoso, revela uma voz que cria muitas outras vozes, que a homenageamos. Parabéns, Orides!
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UMA CONVERSA COM ORIDES
A partir de “Tempo”, de Orides Fontela
Patrícia Lavelle
Li o seu poema três vezes:
em silêncio
num murmúrio
no som da minha própria voz
Sei que vou reler ainda
muitas
e muitas
outras vezes
e que durante muito tempo
ele vai ficar trotando nos meus fluxos
sem rédeas
como uma pergunta informulada
sobre esse transporte
que acontece
quando a palavra
cavalga o fluxo
queria que você estivesse viva
e esse meu poema
pudesse ser
uma con
versa
Não só porque há verso
em toda boa prosa
(coisa que você
sabia bem)
mas também pra
remontar na fala
ao fluxo
ainda xucro
e num salto
transpor
contigo
o ritmo
em canto em vida em flor
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ANÁTEMA
a partir de “Fala”, de Orides Fontela
Rita Isadora Pessoa
a mulher não deixa seu quarto
a mulher não abandona
sua zona de quarentena
ela olha o céu –
piscina lustrosa de negror
salpicada de pontos de luz
distantes em cena –
a mulher observa
o céu
esquadrinhado
por losangos cruéis
através da rede de sua janela
a mulher ela não abandona
a sua zona de quarentena
[ quando alguém olha o céu
ele retribui de volta o olhar
e a intenção de quem observa ]
(não há piedade nos signos)
não há compaixão nos planetas
nas constelações ou supernovas
a palavra
– essa falsa seta –
é um corpúsculo oco
de pura treva
ela arremessa e ricocheteia
de volta ao discurso de quem tenta
a impostura infame
de um poema metalinguístico
(não não há piedade nos signos)
a mulher está sob a influência
de uma quarentena
a palavra arremessa e fracassa
a palavra se curva
vergada
a um mal indefinível
de natureza incurável
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EX-ROSA
A partir de “Rosa”, de Orides Fontela
Viviane Nogueira
eles sujeitarão o peixe do mar, a ave dos céus
o animal, toda terra, mas
peço por mãos limpas lavadas feito pilatos
peço pela vida de sangue e seiva correndo
peço habeas corpus
peço justiça
eu perdi o nome da flor seu símbolo
perdi a palavra e o desejo de carregar
tudo que carrega um homem
em sua
não sou culpada pelo assassinato
também foram eles que me nomearam
***
TREVO
a partir de “Rebeca”, de Orides Fontela
Leila Danziger
No meio do livro
o jornal arquivado –
gravura involuntária
entre As trocas
e Caça.
No meio do livro
[ou quase]
a memória de um gesto essencial –
dar água.
No meio do livro
não
no meio da vida
guardei –
A felicidade feroz.
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MANEKI NEKO
a partir de “O gato”, de Orides Fontela
Natália Agra
I
na manhã saturnina
voltam para casa
depois da aventura silenciosa
(psi-viagem
cérebro-bússola)
dormem no tempo infinito
entre humanos
(a quem presenteiam
com insetos e rom-rons)
Órion nas íris
vibram em harmonia
deuses da preguiça
samurais
haikais nas lâminas das espadas
a singularidade no nariz:
pequeno coração entre os olhos
II
um samurai
busca
proteger-se da chuva
embaixo da árvore
à sua frente,
um gato
com a pata levantada
convida-o para o templo
instantes depois
um raio atinge a árvore
que sorte topar com um gato
em uníssono com o universo
seu movimento essencial
***
DE PENELOPE PARA PENELOPE
a partir de “Penélope”, de Orides Fontela
Adriane Garcia
Você me disse que o que eu faço, desfaço
Que o que eu vivo, desvivo
Que o que eu amo, desamo
Você me flagrou tão nua na janela que
Se você não estivesse falando de você
Eu pensaria que estava acusando a mim
Veja bem, é por isso que não consigo doar
Bata de batismo, véu de noiva, ou mortalha de amigo
Se nem eu própria me visto
Nem é verdade que espero:
Teço porque o dia começa
Desteço porque o dia termina.
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a partir de “Silêncio”, de Orides Fontela
Mônica de Aquino
Meu corpo inclinado
evita o mínimo movimento
enquanto os peixes passam
alheios ao pouco espaço.
Há um que admira
o seco, a boca grudada
na parte mais côncava
analisa a parede opaca
acostumado à transparência
à casa curva, à água
avalia este outro
limite, às vezes me atravessa
como não se molha, pensa
o que será a matéria
em que se movimenta?
como vive sem barbatanas
e guelras? – o peixe imagina
o aquário do apartamento.
Mas só me vê como matéria
de pesquisa, ignora o peso
o olhar que busca eco no seu.
Mergulho o dedo, agito
seu mundo, sou deus, penso
um deus menor,
capaz de decidir vida e morte,
é verdade
mas que não conhece suas criaturas
(como qualquer deus)
Talvez se pesque este peixe
com iscas de silêncio
difícil ficar assim, tão imóvel
na arte da observação.
Mergulho a mão, a água escapa
toco as escamas
olhos sem pálpebras
parece um coral
pensa, tocando meus dedos
as unhas pintadas
acho que sente
certa piedade e me olha
de frente pela primeira vez.
Alguma coisa se quebra,
deságua.
***
AUTOFÁGICO
a partir de “Noturno”, de Orides Fontela
Cláudia Sehbe
desossar uma margem
encharcando o corpo e os tendões,
mergulhar ali
há águas cristalinas
que só são trazidas à luz
por uma escavação epidérmica,
mergulhar ali
desossar uma margem
encharcando o corpo e os metatarsos,
mergulhar ali
ouvindo a voz de quem não se afoga
existir é mergulhar
existiremos enquanto mergulhar for possível
(não importa a noite, não importa)
continue a nadar
continue a nadar
até que o corpo
torne-se ondas na água
continue a nadar
até que as ondas na água
tornem-se espuma de onda
continue a nadar
até que a espuma de onda
torne-se saliva
mergulhar ali
***
a partir de “Teia”, de Orides Fontela
Clarisse Lyra
Orides está sentada
no centro
do impossível.
Abstração, um passo
atrás: a teia é de aranha
mesmo
a palavra afaga
e fere; o destino
é tangível
uma estadia
na casa
do estudante.
Escada e alçapão
assim são as armas
que nos deram.
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a partir de “Teologia”, de Orides Fontela
Michaela v. Schmaedel
Venha pegar
meus pedaços
de carne e sal
há muito já morri.
No que era
e no que me tornei
pouca diferença.
A liberdade
é a morte
consentida.
Você levanta
as mãos e percebe:
não há mistério.
O alívio é imediato.
Natália Agra é poeta e editora da Corsário-Satã. Publicou os livros de poesia De repente a chuva (Corsário-Satã, 2017) e Fotogramas (o silêncio possível) (7Letras, 2019). Publicou seu primeiro livro infantil, Os balões de Nise, na coleção Coco de Roda, da Imprensa Oficial Graciliano Ramos, também em 2019. Edita, ao lado de Fabiano Calixto, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Guilherme Pinheiro, a revista de poesia Meteöro. Organiza, com Emily Hozokawa, Fabiano Calixto e Tiago Marchesano, a Desvairada – Feira de Poesia de São Paulo, que acontece anualmente na capital paulista.