A dialética do feminino em Theodor W. Adorno ou: “a própria mulher é já o efeito do chicote”?
O filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão Theodor Adorno (Reprodução)
“As mulheres deveriam ter direito sobre seus próprios corpos”, disse Theodor W. Adorno durante uma “philosophical jam-session” com Max Horkheimer na manhã de 12 de março de 1956 que originaria uma versão contemporânea do Manifesto Comunista jamais publicada. As notas dessa sessão de improvisos filosóficos, tomadas por Gretel Adorno, podem ser encontradas no original em alemão, em um apêndice do volume 13 das obras completas de Horkheimer, Diskussion über Theorie und Praxis, traduzidas para o inglês por Rodney Livingstone em 2011 como Towards a new manifesto. Nesse mesmo dia, os amigos discutiram a relação entre amor, trabalho, frieza burguesa e asco em relação ao desejo sexual.
São poucas as vezes em que Adorno se coloca de forma tão direta a respeito de um tema hoje reconhecidamente feminista – e muito debatido a partir das discussões atuais sobre a legalização do aborto no Brasil. É, inclusive, bastante conhecido o episódio em que participantes do movimento feminista alemão em prol da liberdade sexual invadiram, ao final da década de 1960, uma aula de Adorno na Universidade de Frankfurt e, despindo seus dorsos, ficaram com os seios à mostra. A reação do filósofo, que imediatamente deixou a sala de aula protegendo o rosto com uma pasta, demonstra aquilo que ele jamais negara: seu pertencimento à sociedade burguesa – a mesma contra a qual volta, incansavelmente, suas críticas. O próprio Adorno disse ter sentido aquele ato como uma afronta pessoal: “Justo comigo, que sempre me voltei contra toda sorte de repressão erótica e contra tabus sexuais! Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abominável. O efeito hilariante que se consegue com isso no fundo não passava da reação do burguesão, com seu riso néscio quando vê uma garota com os seios nus. Naturalmente essa imbecilidade era calculada”. Afinal, tem a mulher algum papel na filosofia adorniana, para além das anotações de Gretel e dos conflitos com as estudantes?
Ainda antes de integrar definitivamente o Instituto de Pesquisas Sociais, Adorno pretendia desenvolver um projeto a respeito do caráter feminino. Sobre essa proposta, escreveu para Erich Fromm em 16 de novembro de 1937. Como apresenta Eva-Maria Ziege, Adorno desejava analisar a mulher burguesa no capitalismo, deduzindo traços de personalidade específicos desse gênero, seu modo de lidar com mercadorias e de transformar ela mesma em uma mercadoria a ponto de se fazer necessário o desenvolvimento de uma “teoria da frigidez feminina”. O modo como Adorno, em sua carta, descreve sua teoria – ainda que de forma rudimentar – leva Ziege a acusá-lo de misoginia e a apontar que os estereótipos utilizados por ele entram em contradição com a denúncia com a qual ele posteriormente colabora em The authoritarian personality, ao analisar o preconceito e a estereotipia em termos de rigidez de pensamento e projetividade com fundamento econômico, político e social. Não é de se estranhar que a interpretação de Adorno sobre o feminino não agrade a muitas leituras feministas que consideram que ele sucumbiu à racionalidade instrumental nesse tema, como o faz Claudia Leeb.
Embora o projeto sobre o caráter feminino nunca tenha sido levado a cabo, Adorno escreve em sua carta sobre uma preocupação excessiva da mulher com seu penteado durante um encontro amoroso, tema que retorna no capítulo sobre a indústria cultural na Dialética do esclarecimento como uma forma de denunciar o modo como as massas são submetidas objetiva e subjetivamente aos ideais dessa indústria no capitalismo tardio. Nas Minima moralia, Adorno consagra algumas passagens à questão da mulher, como em “Tough baby”, “Para Anatole France”, “Poderei ousar”, “Escavação”, “Filémon e Baucis” e “Advertência contra o mau uso”. Mas é no aforismo “Desde que o vi” que ele se dedica de forma mais acentuada ao tema: “O carácter feminino e o ideal da feminilidade”, inicia Adorno, “são produtos da sociedade masculina”. Ao contrário de se deter em uma análise naturalizante que a ideia de caráter pode sugerir, o filósofo defende que a imagem do feminino como natureza pura e não desfigurada surge exatamente da “deformação como sua antítese” por uma sociedade imanentemente masculina que cultiva nas mulheres a restrição de uma possível natureza humana. A sociedade masculina faz das mulheres “uma cópia do positivo da dominação”; a mulher, como um particular, é um momento do todo e sua falsidade está na autoafirmação de sua liberdade, assim como de sua natureza.
O que, na sociedade burguesa, ousa ser chamado ilusoriamente de natureza, portanto, não passa, para Adorno, de uma cicatriz resultante de uma mutilação/castração social. O mesmo pode ser dito da pretensa liberdade sexual e laboral “conquistadas” – e aqui está radicada a desconfiança de Adorno para com os movimentos sociais de sua época. O fato de que hoje podemos encontrar algumas mulheres (ainda poucas, é verdade) entre os homens – na política, na academia, nos bares e nos negócios – não nos diz sobre suas emancipações, senão sobre sua adequação cada vez maior a um sistema em que “as mulherezinhas são os homenzinhos” em um sentido avançado.
Para Adorno, não há liberdade possível, para qualquer gênero, classe ou grupo social, nesta sociedade. A busca de liberdade no interior desse sistema está prenhe de seu oposto, a não liberdade. O fato de que as pessoas estão divididas em gênero, classe, religião, cor da pele ou sexualidade diz sobre um sistema de dominação que, para se autossustentar, abre espaço para que o excluído se adapte com muito mais afinco como uma de suas peças de engrenagem, de modo a se sentir, ou ao menos parecer, incluído; num movimento dialético contínuo no qual se inclui para excluir e vice-versa ao identificar-se com o poder enquanto tal. É por isso que o conceito adorniano de não idêntico, sua ideia de constelação, assim como sua preocupação com o corpo e a sensibilidade foram apropriados, ainda que de forma experimental, por autoras feministas como chave de leitura mostrando afinidades entre o pensamento de Adorno e suas preocupações.
O feminismo não é um movimento unívoco, menos ainda fixo e estagnado. Dentro da própria teoria crítica, esse pensamento se constrói com nomes como Judith Butler, Nancy Fraser, Seyla Benhabib, sem que respostas definitivas sejam dadas. Assim como para Adorno, não se trata de encontrar respostas finais ou descobrir uma verdade que se coloque em termos absolutos. O feminismo surgiu da experiência nesta sociedade, ele é ao mesmo tempo seu sintoma e diagnóstico. Campo de pesquisa e política, ele nasce de um movimento da história em busca de autorreflexão. Na articulação entre a experiência da história e o movimento do pensamento, aproxima-se da ideia de Adorno que, em sua Dialética negativa, enfatiza a importância da experiência no pensamento crítico para realização de suas questões.
É justamente nessa obra que Adorno aponta para o fato de que o filósofo precisa abrir mão de uma crença ingênua de que seria possível compreender o mundo apenas a partir de lápis, papel e uma coleção de obras; embora o “deserto de gelo dos conceitos” precise ser enfrentado, do mundo não se conhece nada sem o mergulho em seus detalhes concretos. É por isso que poucos filósofos são de fato capazes de abarcar o que é ser mulher no capitalismo tardio – menos por conta de uma suposta condição ontológica, porque não são mulheres, e mais porque se mantêm dentro desse sistema, sendo incapazes de uma aproximação desprovida do olhar estereotipado que Ziege e Leeb apontam perpassar suas análises.
É também na Dialética negativa que Adorno elabora seu conceito de não identidade, tão importante para o pensamento feminista e suas análises dos essencialismos e das políticas de identidade. A categoria mulher definitivamente não é unívoca e os feminismos negro e indígena provam o quanto é espúria a identificação incondicional das mulheres, na medida em que obscurece grande parte da qualidade distintiva das experiências e da opressão. Na dialética adorniana, o papel central é ocupado pelo conceito de contradição, de significado duplo.
Trata-se, em primeiro lugar, da contradição entre o conceito e aquilo a que ele se refere: o conceito é sempre, em parte, diverso do seu objeto. Quando digo “sou mulher”, o conceito de mulher aponta em direção a algo que vai além de mim individualmente, sem que se compreenda o que é exatamente esse elemento a mais, ao mesmo tempo em que carrego características distintivas que não são abarcadas por esse conceito. Além disso, a contradição se refere à preocupação com a natureza contraditória da realidade em si mesma, das variadas formas desse ser mulher nessa sociedade, não a despeito de suas contradições, ou apesar de suas contradições, mas exatamente por conta de suas próprias contradições imanentes. Adorno pode ter falhado, inicialmente, em sua tentativa de compreender o “caráter feminino”– e ele não foi o primeiro. Mas deixou boas pistas de questões que precisamos nos fazer.
Deborah Christina Antunes é professora da UFC/Sobral, bolsista produtividade FUNCAP.
> Compre a versão digital do Dossiê “Adorno e a reinvenção da dialética”
> Assine a CULT digital e leia na íntegra todos os textos da edição 215
> Compre a edição 215 em nossa loja online