Dez anos depois, passando a limpo o pensador da desconstrução
O filósofo Jacques Derrida (Reprodução)
Depois da morte do filósofo Jacques Derrida, em 2004, muitas homenagens ao seu pensamento, à sua obra e à sua figura foram organizadas, escritas, publicadas. Entre tantos reconhecimentos – muitos deles não colhidos em vida – coube ao alemão Peter Sloterdijk publicar Derrida, um egípcio: o problema da pirâmide judia (Estação Liberdade), livro em que a filosofia de Derrida é articulada com sete outros grandes pensadores. Logo nas primeiras linhas, Sloterdijk escreve que Derrida “foi o Hegel do século 20”. Hegel não apenas como o nome próprio de um grande filósofo alemão, mas indicação de culminância, esgotamento e nada mais a ultrapassar.
Dez anos depois da morte de Derrida, seus herdeiros, comentadores e leitores estão ainda diante da tarefa de levar adiante um pensamento que carrega tanto as marcas do auge da filosofia do século 20 quanto de seu possível fim. Aqui, que não se enganem os críticos. Trata‑se do fim de um certo tipo de filosofia, não da destruição da experiência filosófica, mas sobretudo de sua possibilidade de renovação.
Este dossiê em torno da obra do filósofo franco‑argelino – que fez do seu lugar de marginal à Europa uma questão filosófica para o eurocentrismo e cujo judaísmo impulsionou sua crítica às origens gregas do pensamento – começa com artigo de Rafael Haddock‑Lobo no qual apresenta o pensamento da desconstrução como “tentativa de empreender um sistema de pensamento sempre aberto, que nunca se enclausura em uma fórmula ou um método, e por essa razão necessita de uma arquitetura estratégica, para fugir da economia conceitual tradicional da filosofia, que sempre levaria o pensamento de um filósofo a fechar‑se em torno de seu próprio sistema”. Empreender um sistema de pensamento aberto foi o gesto ético‑político com o qual Derrida confrontou a tradição filosófica e, sobretudo, pares metafísicos que restavam intocados.
É desses pares que fala a filósofa argentina Mónica B. Cragnolini em sua entrevista concedida a Carla Rodrigues. Para Mónica, é o par humano/animal e todas as suas implicações ético‑políticas que ainda interpelam os pesquisadores da obra de Derrida. “Trabalhar nesse ponto de injunção entre o humano e o animal, no trato de pessoas, no que se trata os viventes humanos como animais” é o que Mónica considera tarefa. Como pensadora latino‑americana, Mónica também observa a importância, no continente, de ler um pensador das margens, com o qual se pode questionar o eurocentrismo e a história da violência colonial, que aqui se singulariza nas políticas de dominação dos indígenas e dos negros.
Seguindo no tema da dominação, o artigo de Olgária Mattos mostra como são borradas as fronteiras que pretendem separar o helenismo do judaísmo. Para isso, ela remonta a um texto de Derrida sobre o filósofo judeu‑lituano Emmanuel Lévinas e retoma as perguntas: “Nós somos gregos? Nós somos judeus? Mas quem, nós?”. Ao trabalhar numa aproximação entre Derrida e o judaísmo, tanto a partir de sua articulação com Lévinas como a partir de uma ligação com o filósofo judeu‑alemão Walter Benjamin, Olgária acentua o quanto o pensamento da desconstrução é crítico de um ideal de origem que estaria implícito na violência desse “nós”.
Desconstrução da origem, da linguagem “própria”, abertura à alteridade, pensamento que a partir da margem interroga a ideia de centro: são heranças de um filósofo cuja abertura de pensamento foram perturbações da ordem que marcaram sua abordagem desconstrutiva, como lembra Alice Serra em artigo sobre as ligações entre Derrida e arte. “O pensamento desconstrutivo não visa puramente a uma inversão, a uma desordem, mas aponta para as fraturas e incongruências já inerentes ao que se apresenta de forma harmônica e solidificada”, escreve ela. Por esse caminho, Derrida faz da arte “um âmbito privilegiado” que, pontua Alice, “assim como a alteridade, apresenta essa peculiaridade de perturbar sistemas de pensamento, deslocar lugares e hierarquias, convocar a pensar o que não pode ser apropriado pela filosofia”.
Por fim, no confronto permanente com aquilo que não pode ser apropriado, Derrida encontra‑se com a ciência, suas pretensões de objetividade, tema do artigo de Fernando Fragozo. Aqui, estamos diante de um crítico da tradição de pensamento que entende o conhecimento racional como “um processo gradativo que, aos poucos, caminharia na direção de uma totalização unificadora que seria capaz de explicar tudo o que existe: nós, a natureza, a realidade em geral”. É nesse ponto que se pode voltar à comparação com Hegel. Ao desconstruir qualquer pretensão de explicar tudo o que existe, Derrida se inscreve na história da filosofia do século 20 como o pensador que, ao mesmo tempo, nos põe diante de um esgotamento – o conhecimento totalizante e homogêneo sobre o que quer que seja – e do auge da exigência ético‑política de inventar novas formas de fazer filosofia.
CARLA RODRIGUES é professora de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de Duas palavras sobre o feminino – sobre ética e política em Derrida (NAU Editora, 2013) e vice-coordenadora do laboratório Khôra de Filosofias da Alteridade, dedicado a pesquisar o pensamento de Jacques Derrida
RAFAEL HADDOCK-LOBO é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do laboratório Khôra de Filosofias da Alteridade