Devir Espantalho

Devir Espantalho
Ray Bolger como o espantalho no filme “O mágico de Oz”, de 1939 (Foto: Divulgação/MGM)

 

Produzindo um espantalho

Fazer o outro dizer o que ele não disse, criar um personagem em cima de uma pessoa real e agir como se esse ente imaginário estivesse presente – é disso que se trata na falácia do espantalho, uma das mais famosas na arte de vencer debates sem precisar ter razão.

Baseada na criação de um duplo, é esse personagem ficcional que deve ser atacado no lugar da pessoa real. É essa pessoa, cujo corpo e cuja presença são como que jogados fora, que é transformada em um boneco num jogo de argumentos. O ônus por ter sido transformada em espantalho é totalmente dela. O arguidor torna-se um embusteiro no momento em que refuta a posição do duplo, ou seja, atacando uma posição que não é defendida pela pessoa real. A falácia não é simplesmente o argumento, mas toda a situação do argumento, como vemos acontecer com as fake news, pela qual entramos no devir espantalho na era da desinformação planificada.

Falácias tendem a criar uma espécie de ilusionismo lógico. O truque da falácia do “homem de palha”, como é também conhecida, está em se bater num suposto argumento fraco deixando de lado a complexidade do argumento realmente dito que, em geral, não seria fácil de refutar.

Assim como se coloca palha dentro de uma roupa para simular a presença de um ser humano, a falácia do espantalho surge quando palavras são colocadas na boca de alguém. Esse alguém continua ali, mas uma presença espectral vem à tona. Num mundo sem ética, em que a subjetividade não é respeitada nem em seus dizeres, a espantalhificação é o destino.

Fabricando a subjetividade das massas

Subjetividades sempre foram fabricadas, ou seja, elas sempre obedeceram aos desígnios do poder e sua capacidade de projetar. Desígnio e desenho têm a mesma raiz e ambos confluem na palavra “design”. Expressões como “processos de subjetivação” e “processos de dessubjetivação” sinalizam para designs da subjetividade na contramão do que a noção de sujeito pretendia promover. Herege, insubmisso, desobediente, o sujeito sempre perturbou a ordem, estragando seu projeto desenhado à régua. A “regula” beneditina era um símbolo de disciplina e o sujeito era, muito antes do que os europeus chamaram de modernidade, o antagonista, o diabo encarnado que contrariava todos os projetos.

Na contramão, a subjetividade foi produzida na sujeição a fim de evitar a insubmissão do sujeito. Uma verdadeira “decoração subjetiva” conforme interesses de classes, gêneros, raças e plasticidades corporais passou a valer como “humanidade”. Capacitismo, gordofobia, racismo, assim como misoginia, lesbofobia e transfobia fazem parte do sistema da opressão estética a perseguir corpos. Já Kant, ao falar de gênero, afirmava a correspondência entre a nobreza de caráter e vestimentas austeras dos homens, enquanto admoestava as mulheres a parecerem belas e se comportarem como se fossem burras para fazer jus a uma ideia de natureza feminina e, desse modo, agradar a ordem patriarcal.

O devir espantalho está em curso deixando para trás velhos projetos para o que veio a ser chamado de humano. É a “desnaturação” (a perversão da coisa em si mesma transformada em mero aparecer) além de uma “desnaturalização” (o cancelamento da evidência da noção) da espécie humana o que vemos acontecer por meio da passagem do que seria meramente humano, carnal e mortal, ao tecno-humano definido como ciborgue, certamente ainda mortal, mas não do mesmo modo. Não é por acaso que a morte, assim como a vida, se torna culturalmente menos importante nesse momento, sendo afastada da cultura pela tecnologização dos corpos e pela sobrevivência também tecnológica das imagens dos mortos (vide as holografias amplamente utilizadas pela indústria cultural da música e pela publicidade), constituindo a tecnoespectralidade de nossa época.

Embora o “humano” seja uma ficção cada vez mais abandonada, o apelo, por vezes patético, por “humanização” segue proclamado diante da barbárie institucionalizada. O amálgama entre carne e tecnologia instaura o “corpo” como ser protético. Através da categoria do ciborgue, aprendemos a aceitar uma terceira natureza (não mais a natura naturans, não mais a natura naturata dos antigos) em que somos um com as próteses, ou seja, vivemos a vida inorgânica em nós. Da perna mecânica à tela de televisões, aparelhos celulares e computadores, nosso corpo se expande para além do que um dia foi concebido como indivíduo do qual nasce a figura do sujeito contra a qual muitos se insurgem hoje.

O que se passa com o corpo acontece ao mesmo tempo com a subjetividade. A prótese corporal encontra sua correspondência na prótese mental ou cognitiva. A inteligência artificial se orienta para substituir o pensamento humano, mas é também a sensibilidade que tem sua condição alterada quando o corpo se une à máquina. Podemos falar de uma sensibilidade artificial, ou seja, a velha sensibilidade orgânica passa à insensibilidade da máquina que já era simulada pelas perspectivas racionalistas que fizeram sucesso na era do patriarcado capitalista.

Agora, uma sensibilidade artificial deve acompanhar a noção de inteligência artificial e o design passa a ser o novo domínio do conhecimento e do poder, mas ele atinge também o indivíduo na mira da manipulação programada pelo sistema. Colaborando ou não, corpos e mentes, pensamentos e sensibilidades serão manietados no capitalismo estético e hipersensível que se apresenta como a melhor forma de vida.

A extinção da subjetividade se esconde atrás da anunciada extinção da espécie e pouco importa aos cidadãos desavisados, antes adestrados para defender seus próprios algozes. O devir espantalho segue expondo-se como perda da capacidade de pensar reflexivamente, de discernir e de sentir. Emoções são transformadas em mercadoria. A aniquilação do que se compreendia no passado como vida interior faz parte do programa. O espantalho humano é a figura que emerge na ordem subjetiva caracterizada pela negação e pelo esvaziamento do sujeito.

O devir espantalho é o resultado dos processos de subjetivação e intersubjetivação por esvaziamento do pensamento, da sensibilidade e da capacidade de agir. Isso quer dizer que, por mais que estejamos na era das massas, quando a maioria abdica de si para fazer parte do coletivo, o indivíduo ainda é o alvo preferencial do sistema. Todas as tecnologias anatomopolíticas e psicopolíticas de convencimento são usadas para associá-lo à massa. O processo de mimetização programada estética, moral e politicamente, pelo qual cada indivíduo se torna idêntico ao outro e anulado em si mesmo, visa levar cada um a fazer parte do rebanho. As massas só podem existir se os indivíduos interiorizam verdades que garantem a adesão. Indivíduos diferentes, insurgentes, desobedientes, que agem contra o sistema da violência esmagadora de corpos que vai da opressão à matança, são massacrados de maneira escalonada para a manutenção da ordem.

O devir espantalho corresponde a um novo estado subjetivo, cognitivo e político pelo qual se instaura uma paradoxal ontologia da desontologização. Na lógica da produção em massa do espantalho individual, ordem é o nome filosófico para plantação. O indivíduo em seu devir espantalho tem a tarefa de parecer humano e afugentar intrusos, ou seja, evitar que os pássaros da diferença apareçam e ocupem a ordem ou se insurjam contra ela.

O espantalho serve à ordem sem a menor chance de vir a compreendê-la, o que o impede de questioná-la. Não sendo o escravizado, nem o robô, o espantalho é a figura que protege a ordem com seu próprio corpo, carne e roupa, gesto e ação. Foucault falava em disciplina e controle, em monastério e quartel, assim como Bourdieu falou em escola e televisão. Hoje é nas academias de ginástica e nas redes sociais que o corpo é levado pelo vento. O indivíduo que “puxa ferro” nas salas de ginástica ou que preenche com silicone os lábios e peitos inadequados à economia estética da medida esforça-se pela adequação mimetizadora. A soldadificação do corpo humano visa fazer do corpo um capital a serviço de uma indústria da vida caricaturizada e preenchida subjetivamente pelas imposições do patriarcado capitalista e racista.

A instância psíquica é extirpada do corpo em devir espantalho, restando arremedos de subjetividade. Caricaturizada, a subjetividade que resta reflete a perda da autonomia subjetiva e sua substituição pelas mais diversas formas de consumismo linguístico em um cenário de ventriloquacidade geral. Repetir o que outros dizem e fazem é preciso, na escola e na rede social, na esfera privada e na pública.

Em Psicologia das massas e análise do Eu, Freud se perguntava pelas razões que levavam alguém a abandonar sua autonomia e entregar-se à massa. Trata-se de um processo programado. O ser humano se deixa esvaziar subjetivamente, perde sua interioridade e aceita ser preenchido por algo que se pode definir como “palha linguística”, subproduto da linguagem que resta após tessituras publicitárias que aniquilam o pensamento reflexivo.

Convidados a deitar no confortável acolchoado inflamável que é a palha linguística composta de restos de linguagem usados para forrar, preencher, acolchoar e, sobretudo, dar conforto, perdemos a nós mesmos em cinzas. Feita de falas e discursos estereotipados, senso comum, falácias e todo tipo de mistificação, a palha linguística é o preenchimento subjetivo perfeito para o novo ser humano sob o jugo do neoliberalismo. Leve e vazia de conteúdo, a palha linguística, com a qual são preenchidas as subjetividades esvaziadas, oferece conforto emocional e espiritual suficiente e se afasta do caráter trágico da existência.

Giorgio Agamben, ao refletir sobre a inessencialidade da singularidade e se perguntando sobre o reino ao qual ela pertence, fala do “qualquer” (Quodlibet) como o “ser tal qual é” de uma “comunidade que vem”. A palavra que torna a singularidade universal, por incluí-la numa classe evidenciando a propriedade comum, é o exemplo, esse misto de universal e singular, habitante da inessencialidade. Exemplos da comunidade que vem, para Agamben, são os tricksters, os cartoons, os ajudantes, os vagabundos. Não importa o que sejam, todos serão espantalhos, personagens estereotipados na ilusão de serem singulares e originais.

No futuro, a luta contra a hegemonia do espantalho será trabalho de uma minoria cada vez mais reduzida, quanto mais raros forem aqueles que permanecerem desejando ser eles mesmos. O desejo por autonomia subjetiva, a experiência espiritual que envolve ser si mesmo e capaz de reconhecer a alteridade, será uma espécie de luxo na era da estandartização do espantalho levado pelo vento da indústria cultural.

Marcia Tiburi é filósofa, artista plástica e professora universitária. É autora de diversos livros, dentre eles Como conversar com um fascista (Record, 2015) e Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve (Nós, 2023).


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