Devaneios em torno de uma psicanálise errante
No trabalho com as imagens, no contato com o movimento dos 24 quadros por segundo, percebemo-nos como psicanalistas que o mundo questiona e interroga.
“Deambular por uma cidade qual um caminhante solitário e por essas errâncias ir descobrindo o que nunca vemos. Instaurar um olhar, carne do mundo de uma cidade cotidiana que se torna estranha, estrangeira. Experiência única do sair pela rua procurando encontros com nossos personagens.”
Assim começa o ensaio que publiquei no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre1, falando da experiência que tivera no decorrer da pesquisa que fizéramos, eu e minha equipe, para a realização do documentário Dizem que sou louco (1994).
A experiência do sair para a rua e ser fisgado pelo evento serve-me de paradigma na minha reflexão a respeito das relações entre psicanálise e cultura: sair do contexto instituído da clínica, da comodidade de nossos consultórios, e, com nossa maleta viajante de psicanalistas, ir até o mundo. Nomadismo necessário onde, com um jeito a ser inventado, somos obrigados a pensar a clínica a partir do contato com o asfalto, com a poeira, com os acordes dissonantes da contemporaneidade.
Fomos para a pesquisa na rua, eu e minha equipe, composta por psicanalistas da Estação, Cooperativa de Acompanhamento Terapêutico2. Na busca de quem seriam os personagens que a cidade nomeia como sendo o louco de rua, passávamos por uma perambulação sempre reiniciada. A perambulação, o errar pela cidade contemporânea, a experiência do indeterminado, a perda do chão do conhecimento. Devaneios de psicanalistas em errância…
Talvez apenas a errância possa definir a relação entre psicanálise e cultura. Se não for assim, corremos o risco de transformar nosso conhecimento em armadura empobrecedora e reducionista, o mundo da cultura passando apenas a ilustrar o que já sabemos.
A inserção da psicanálise na cultura, ou a cultura pensada pela psicanálise, ou a psicanálise pensada a partir da cultura, ou o fazer cultura do lugar de psicanalista – questões distintas. No flu-xo das publicações que vêm surgindo, na riqueza dos trabalhos, há uma prolixidade de posições.
Uma clínica do social não implicaria, necessariamente, pensar a psicanálise inserida na cultura? Parece-me inadequada a restrição do termo “clínica do social” para trabalhos mais comunitários, com inserção social mais clara. Uma reflexão necessária, a relação entre a clínica e a inserção no mundo da cultura. Inserção inevitável, para todo e qualquer psicanalista. Afinal – longe da psicanálise qualquer posição essencializante –, o inconsciente é histórico. Nesse sentido, toda a clínica é uma clínica do social.
Em nossa experiência pelas ruas, a escuta se deu em meio de buzinas, burburinho, fuligem. Lutamos por uma escuta e pela possibilidade da fala. A transferência se instalava assim que mostrávamos que queríamos escutar. Sentíamo-nos responsáveis pelo que desencadeávamos em nossa escuta.
Dessa experiência surgiu a proposta de equipes itinerantes, inseridas no barulho da cidade e que pudessem trabalhar pelas ruas afora. Uma escuta possível em meio de um real ensurdecedor. Poder ouvir apesar dos ruídos. Afinal, em nossos consultórios, não são os ruídos do manifesto que nos impedem a escuta do inconsciente?
São os instrumentos que temos como psicanalistas que nos guiaram, seja na rua, seja na montagem de todos os documentários.
Depois, em uma supervisão, a idéia de pesquisar como vivem aqueles que manuseiam o concreto da morte em seu dia-a-dia. Mais uma vez, o mundo de fora entrava pelas quatro paredes que circundam o tradicional divã de psicanalista. Na escuta da escuta, ouvi sobre um pedreiro que trabalhava em cemitérios, fiquei tocada, surgiu a interrogação sobre o que é a vida e a morte em alguém que tem o minuto a minuto da vida permeado pela morte. Em nosso mundo, onde a morte é tema-tabu.
Só a certeza de que a câmera funciona como um anteparo ao olho/visão, levando à constituição do olhar, permitiu-nos fazer o documentário Artesãos da morte.
Descobrir que o olhar constrói inserções no sim-bólico: nosso olhar/escuta permitia o aparecimento de uma linguagem que já estava lá, silenciosa.
Dar voz aos que não têm voz, olhar o que a visão não alcança. Dos nomeados como “loucos de rua” àqueles que, porque convivem (vida junto) com o cadáver, são discriminados. O coveiro que relata que foi abrir crediário, uma vendedora saiu correndo quando soube que trabalhava no cemitério… Ou o administrador que afirma convictamente que para os coveiros os cheiros não incomodam, é um trabalho como qualquer outro. Na fala diante da câmera, a dor do testemunho cotidiano onde o som do choro sofrido ecoa permanentemente, a pergunta sobre como se instrumentar para agüentar, a busca da religiosidade, do ritual.
Lembro aqui o começo do livro A trégua, quando Primo Levi descreve seu encontro com uma criança em uma enfermaria: “Hurbinek era um nada, um filho da morte, um filho de Auschwitz. Aparentava três anos aproximadamente, ninguém sabia nada a seu respeito, não sabia falar e não tinha nome…(…) Estava paralisado dos rins para baixo e tinha as pernas atrofiadas…; mas os seus olhos, perdidos no rosto pálido e triangular, dardejavam terrivelmente vivos, cheios de busca de asserção, de vontade de libertar-se, de romper a tumba do mutismo. As palavras que lhe faltavam, que ninguém se preocupava de ensinar-lhe, a necessidade da palavra, tudo isso comprimia seu olhar com urgência explosiva: era um olhar ao mesmo tempo selvagem e humano…” Com os cuidados de um dos doentes que se dedica inteiramente a Hurbinek, vai surgindo uma palavra, vão surgindo palavras articuladas. “Hurbinek continuou enquanto viveu, as suas experiências obstinadas.” Assim conclui Primo Levi esse pedaço de seu relato: “Hurbinek, que tinhas três anos e que nascera talvez em Auschwitz e que não vira jamais uma árvore; Hurbinek que combatera como um homem, até o último suspiro, para conquistar a entrada no mundo dos homens, do qual uma força bestial o teria impedido; Hurbinek, o que não tinha nome, cujo minúsculo antebraço fora marcado mesmo assim pela tatuagem de Auschwitz. Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”.
No documentário, o testemunho daqueles que não têm voz, aqueles que a sociedade excluiu.
Mas, o labiríntico mundo vai propondo caminhos e descaminhos: durante a realização do Artesãos da morte tive a terrível experiência de, dentro de um grande cemitério em São Paulo, ver uma arma apontada cintilando ao Sol e, com minha família, passar por um assalto. Foi a partir do assalto que pude perceber como, no decorrer das filmagens, a convivência com a morte havia banalizado os cemitérios, retirando o sagrado e o estranhamento. O assalto me fez redimensionar a construção da linguagem do próprio documentário. Devo ao assaltante e a sua arma tanto nossas vidas como a forma final do meu filme. Era preciso resgatar o sagrado, o inomeável.
A partir da visão da arma reluzente dentro de um cemitério, em um domingo ensolarado, decidi propor o documentário Arma na mão. Aí, o trabalho com nossa história, com medos e horrores. Fomos por entre quartéis, clubes de arma, conversas com juízes, polícia militar. Em meio disso tudo, também o encantamento com o Fórum em Defesa da Vida pela Paz, do Jardim Ângela, que passei a freqüentar. O Jardim Ângela é vizinho dos bairros Capão Redondo e Jardim São Luiz. São bairros onde há o a maior índice de mortes violentas do mundo todo. O Fórum em Defesa da Vida foi criado há oito anos tendo como tarefa organizar uma caminhada em direção ao Cemitério São Luiz todo dia 2 de novembro, Dia de Finados. No Cemitério São Luiz são enterradas, tradicionalmente, as vítimas da violência, é para lá que a polícia leva. Ou seja, é um cemitério que abriga os excluídos, aqueles que não têm onde ser enterrados.
O Arma na mão deu origem ao Alma na mão, com imagens captadas na caminhada e em outro ato público promovido pela ONG Sou da Paz.
Para Walter Benjamin, a história não deve ser vista como o fluxo contínuo dos acontecimentos, mas como algo que arranca do fluxo. A tarefa ética de qualquer historiador (e, por que não, do psicanalista…) seria libertar o objeto singular do fluxo. A história, em Walter Benjamin, é tensa, imprevisível, como o acontecimento que pode resgatar sentidos ocultos.
Gewalt, em alemão, significa tanto violência como força, opondo-se à noção de justiça. O fato é que sentimentos involuntários e instante revolucionário convergem, aponta-nos Olgária Mattos3. Deixa de haver um destino histórico. É preciso deixar-se levar pela imprevisibilidade do instante. O tempo do relógio é diferente do tempo do calendário. O revolucionário transgride o tempo homogêneo, irrompe no que se repete.
Poder viver essa experiência do instante em um deixar-se levar por o que do mundo nos olha. Tem sido assim a experiência de, como psicanalista, ir para o mundo e fazer documentários. E, uma vez no mundo, ele nos olha. E os instantes, que felizes acasos nos propõem, vão acontecendo.
Em meio do turbilhão que vai do silêncio do consultório ao burburinho da rua ou ao clima de roça dos cemitérios, passando mesmo pelo possível estalido de uma arma de fogo, fui procurada pela artista plástica Nazareth Pacheco, que me pedia que eu escrevesse o texto para o catálogo de sua nova exposição. Não conhecia Nazareth nem sua obra. Encantei-me com ambas. Nazareth transformou o sofrimento vivido precocemente no corpo em uma obra magistral – as cirurgias pelas quais passou, seu corpo inteiramente reconstruído transformaram-se em jóias e vestidos de gilete e material cortante. Agora o respeito para com o singular que brota de um corpo mutante agudizando questões do erógeno.
Na nova exposição de Nazareth, cortinados de gilete e miçangas rodeiam uma cama de acrílico – o brilho sedutor impenetrável. Concomitantemente, acontecia uma exposição retrospectiva com toda sua obra. Havia prazos, as exposições terminavam: fizemos o vídeo Gilete azul. Não podia deixar passar as exposições sem que delas fizesse o registro. Quando Nazareth remontaria os infinitos cortinados de gilete? E Nazareth, no vídeo, nos fala de como os balanços onde as crianças brincavam eram objetos proibidos – hoje seus balanços e bancos de jardim são forrados com pregos pontiagudos. O feminino e a sublimação orientaram tanto meu texto para o catálogo como a construção do vídeo. Recentemente, no Festival de Vitória, comentaram quanto o fato de sermos psicanalistas –eu e minha equipe4 – marca esse vídeo e dá uma especificidade ao nosso trabalho dentro do cinema.
Agora, com David Calderoni5– autor da idéia original – e mais uma outra equipe, um trabalho com José Agrippino de Paula, que quer filmar em super-8 o Passeio no Recanto Silvestre, o nosso registro de seu processo e o filme mais o filme do filme. José Agrippino novamente sujeito de uma obra? Um filme-intervenção.
Assim é que nesse contato com o mundo vou me definindo como uma psicanalista que faz documentários. Minha deam-bu-lação entre a privacidade do consultório e o estar por aí. E, no final e a exposição de meus filmes em salas de cinema ou festivais.
Essa experiência tem me levado, radicalmente, à idéia de que é o “sítio do estrangeiro”, usando a expressão tão cara a P. Fedida, que nos define como psicanalistas. Esse lugar que é lugar nenhum. Esse não-lugar nos define, o desenho das palavras levando ao nascimento das representações. O inconsciente ótico de que falava Walter Benjamin em relação à fotografia agora é operado em fluxos de intensidades infindáveis.
No trabalho com as imagens, na construção do documentário, no contato com o movimento dos 24 quadros por segundo, percebemo-nos como psicanalistas que o mundo questiona e interroga. Não é disso que se trata quando falamos de psicanálise e cultura?
Miriam Chnaiderman
psicanalista, ensaísta, documentarista. Membro do Departamento de Psicanálise do Inst. Sedes Sapientiae; Doutora em Artes pela ECA-USP. Vários ensaios publicados sobre arte e psicanálise em coletâneas ou revistas. Livros publicados: O hiato convexo: literatura e psicanálise (Brasiliense) e Ensaios de Psicanálise e Semiótica (Escuta). Dirigiu os documentários Dizem que sou louco, Artesãos da morte e Gilete azul
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1 Alguns dos pontos aqui desenvolvidos foram inicialmente abordados por mim no ensaio “Imagens flutuantes – tapetes voadores de uma psicanálise errante” in Correio da APPOA, Porto Alegre, n. 82. – ano IX, agosto.
2 Formaram parte da equipe do filme: Deborah Sereno, Eliane Berger, Leonel Braga Neto, Marta Okamoto, Maurício Porto e Regina Hallack.
3 Olgária Mattos, Os arcanos do inteiramente outro. São Paulo, Brasiliense, 1999.
4 Havíamos fundado a Cia. Desmanche – Psicanálise e Cinema, naquele momento composta por: Deborah Sereno, Leonel Braga Neto, Marta Okamoto, Miriam Chnaiderman, Nayra Ganhito, Regina Hallack.
5 David Calderoni, psicanalista e compositor, procurou-me após ter assistido ao programa em que Pedro Bial entrevistava José Agrippino, encantado com a lucidez de sua fala sobre a própria loucura. Quando procuramos José Agrippino e ficamos sabendo do seu desejo de trabalhar com o mesmo super-8 com que trabalhara na década de 70, procuramos Rubens Machado, pesquisador e curador da Mostra do super-8 promovida pelo Itaú Cultural. São parte da equipe as psicanalistas Noemi Moritz Kon e Noemi de Araújo
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Olá presados e autor deste comentário gostaria se possível de uma ajuda para um artigo com o tema: o divã itinerante um tema tão rico e puco explorado pelos profissionais da referida matéria em questão agradeço pela atenção um forte abraço