Aventuras da desobediência

Aventuras da desobediência
O filósofo francês Frédéric Gros: Se há contrato social, “somos nós que queremos fazer política juntos” (Foto Frédéric Stucin)

 

Triste espetáculo seria dado pelos leitores deste livro, se acaso se contentassem com a posição de espectadores. Assistindo às múltiplas formas de obediência e aceitando as que o autor considera inaceitáveis, duplicados no papel de coadjuvantes, os leitores teriam saltado, sem perceber, da plateia para o palco onde se vai prolongando a grande e monstruosa peça da obediência. Um dos pressupostos de Desobedecer – assim no livro como no ato de leitura que ele implica – é que essa visão teatral da obediência não apresenta – antes, limita-se a silenciar, a representar – exigências intransferíveis, tais como a de tomar a palavra, ter a coragem de dizer a verdade, assumir a responsabilidade pela verdade que se diz… Exigências demais, provavelmente, sobretudo para aqueles “atores” que só podem ser mencionados entre aspas, pois têm não apenas injuriado e agravado a miséria dos atores de verdade, como têm sustentado a farsa e silenciado a catástrofe de uma democracia acrítica.

Desobedecer significa, portanto, aprofundar os porquês da obediência, desenvolvendo formas específicas do inaceitável. Significa, ao mesmo tempo, defender a ideia de democracia crítica – no caso em pauta: uma combinação peculiar de exercícios de liberdade, igualdade e solidariedade, com o imperativo da desobediência política. Significa, ademais, propor um tipo de iniciação à resistência ética. Não há dúvida de que existem, no livro, muitas formas instigantes de reversibilidade, da submissão à rebelião, da subordinação ao direito à resistência, do conformismo à transgressão, do consentimento a uma certa acepção de desobediência civil. Nelas, os venenos de aceitação mítica e ideológica é que permitem extrair, a cada caso, um antídoto próprio. Sucede que cada antídoto formula, por seu turno, o problema de novos e distintos níveis de obediência-limite, ora nos âmbitos da vivência social ou familiar, ora nas esferas da experiência econômica ou política.

Quem se aproxima do núcleo de sentido da submissão, por exemplo, nele encontra o elemento da rebelião social do homem escravizado, assim como é chamado a considerar o nível de uma superobediência da servidão voluntária, no questionamento e na desmistificação operados por La Boétie. Quem se descobre na passagem da subordinação familiar ao direito de resistência, é interpelado a pensar a experiência-limite da filha de Édipo, Antígona, nas leituras de Hegel, Hölderlin, Lacan, George Steiner. Quem ultrapassa o conformismo, aproxima-se do ponto de transgressão em que é preciso interrogar, com Hannah Arendt, o processo Eichmann, que “continua a obcecar a reflexão ética contemporânea porque põe em movimento a dialética vertiginosa da responsabilidade e da obediência”; perguntar-se também, com Günther Anders, pelo processo da modernidade técnica como fermento do totalitarismo, levantando a questão dos efeitos éticos da extensão da máquina. “Fragmentação das tarefas, segmentação das atividades, o mundo técnico-burocrático fabrica indivíduos moralmente anestesiados”.

Depois da submissão, da subordinação e do conformismo, quem explorar o quarto núcleo de sentido da obediência, onde cada um obedece e consente como cidadão, chegará ao ponto de inflexão em que a política é entendida como articulação racional de um “querer-viver juntos”. Percorrendo os modelos de Hobbes, Locke e Rousseau, diremos com Frédéric Gros que, se há contrato social, “somos nós que queremos fazer política juntos”; mas se o contrato em causa não for fraudado, diremos que se trata de fazer, sobretudo, “comunidade política”. Os movimentos de desobediência civil – os coletivos de contestação, não os protestos atomizados – estão convidados a acompanhar o autor no capítulo “A caminhada de Thoreau”, no qual se apresenta não somente a vida selvagem de um “ícone da ruptura” ou de um “símbolo da subversão”, mas a caracterização da ideia mesma de desobediência: como irredutível a casos de objeção de consciência (Arendt, Rawls); como possibilidade de encontrar na desobediência “o princípio de uma conversão espiritual” (Tolstoi, Gandhi, Martin Luther King); como ato de um “sujeito indelegável”, aquele cuja fórmula é resumida exatamente pelo próprio Thoreau (“Se não for eu, quem o será em meu lugar?”) e cuja réplica ecoa há muitos séculos, na voz de Hilel, o Ancião: “Se eu não for por mim, quem o será? Se eu for só por mim, quem serei eu? E se não agora, quando?”.

Democracia transcendental, portanto? Neste passo a resposta seria “sim”, conquanto atravessássemos o pensamento de Kant e a releitura de Foucault, sem perder de vista o que remanesce de subversivo na forma ambivalente da recusa socrática. Pois é justamente essa luz grega que o livro sugere e vai reencontrar na lição de Merleau-Ponty: “Sócrates tem uma maneira de obedecer que é uma forma de resistir”. O passo seguinte consiste, agora, em dar a palavra ao autor: “o demônio socrático permite abordar o que eu chamo de ‘dissidência cívica’. Entendo por isso uma desobediência que não é forçosamente sustentada pela consciência nítida de valores transcendentes, pela convicção, esclarecida por um sentido moral superior, de leis que dominam a humanidade e o tempo. O dissidente faz sobretudo a experiência de uma impossibilidade ética. Ele desobedece porque já não pode continuar a obedecer”. Diferentemente do objetor de consciência, que desobedece em nome de uma obediência superior, o dissidente cívico é aquele que “faz a experiência súbita do intolerável e se conscientiza. Ele experimenta uma impossibilidade que o obriga à ruptura: não é possível continuar! O ‘não’ da dissidência cívica é um não em dobro: impossível não fazer. O dissidente não pode continuar a não dizer e se calar, fingir não saber, não ver. Essa dupla negação da dissidência não é dialética, não produz a afirmação como realização e síntese. Ela provoca ruptura, estrondo”.

Se nunca é cedo demais para ser livre, se nunca é tarde demais para fazer a coisa certa, a prova dos nove dessa negação não dialética se daria no caso da desobediência ao poder formal (pseudoinstitucionalidade governamental, jurídica e parlamentar), assim como se daria no caso não menos concreto do poder real (a economia política em exercício). Um hegeliano em dissidência poderia, de resto, apreciar esta última passagem do veneno ao antídoto. Em suma: manda quem não deve, desobedece quem tem juízo.


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