Desejo de concretude

Desejo de concretude

Eduardo Socha

Hoje quase convertida em mote publicitário, a máxima “Deus reside no detalhe” era tida por Adorno como preceito de seu pensamento. Daí porque, para o filósofo, se mostrava suspeita toda tentativa de compreensão fechada do mundo por meio de uma rede prévia de conceitos, cujas malhas, excessivamente largas, deixariam vazar o próprio fundamento maleável da realidade. Boa parte da filosofia recente percebeu que um sistema de conceitos e de categorias universais, em sua predisposição transcendental, retém apenas o entulho grosso das ideias prontas; ao forjar a realidade de cima para baixo em vez de acompanhar pacientemente o movimento de seus detalhes, tais ideias abrem caminho para o dogmatismo e para a arrogância do pensamento. Decretam, do alto, uma verdade última, e em seguida despencam na ribanceira de um mero jogo formal e abstrato.

Na direção oposta a esse impulso sistemático do pensar por conceitos fechados, o ensaio seria aquele gênero de escrita a um só tempo filosófico e literário que, sem dispensar o rigor de conceitos universais, opta livremente por se submeter aos detalhes equívocos da realidade, por dar acabamento teórico a suas filigranas, desejando escutar as contradições de seus murmúrios. O ensaísta abandona o afã de descrever, no âmbito da teoria, uma verdade última e eterna, para encontrar no transitório, no fragmentário, no contingente, seu plano formal de reflexão. Pretende achar aí uma centelha da verdade, que de antemão reconhece ser sempre fugaz e aberta. “O ensaio”, resumia Adorno, “não quer procurar o eterno no transitório, mas sim eternizar o transitório”.

Sabemos que, embora o gênero tenha sido historicamente aviltado pelos filisteus de plantão, a tradição do ensaísmo no Brasil já é sólida o bastante para desencorajar uma simples enumeração de autores ou mesmo um comentário crítico de sobrevoo. Digamos somente que, seja em revistas especializadas e suplementos culturais, seja em parcela significativa da produção acadêmica atual, o ensaísmo brasileiro parece ter encontrado em definitivo seu espaço.

No interior desse espaço, como podemos entender o lançamento de E Livre Seja Este Infortúnio, último livro de Francisco Bosco, autor que vem procurando expandir o campo reflexivo do ensaísmo entre nós? A pergunta aqui não é performativa e merece ser refeita: o que o autor quer com este livro? O leitor não se engana quanto à intenção do livro de ensaios anterior. De cara, o título Banalogias é altamente ousado e direto. Com a foice do precioso neologismo, o autor quer extrair logos daquele solo, pouco cultivado pelo pensamento, dos fenômenos mais ordinários do cotidiano. Sua proposta vai no sentido de oferecer a dignidade da especulação mais paciente a algo que não ultrapassaria dois parágrafos em revistas de fofoca ou de comportamento. Mostrando a extensão temática quase infinita do gênero, Banalogias apresenta, entre a ironia e o rigor reflexivo de seus ensaios, os fragmentos de uma improvável “psicologia da acne”, uma “ética da gafieira”, uma “ontologia do golaço”, um sentido para compreendermos as metamorfoses de Michael Jackson, um estudo sobre o famoso “vou te ligar, com certeza”, aquele “indireto afetivo na linguagem do carioca” (que, com certeza, nunca vai ligar). Banalogias, em sua proposta arriscada e bem-sucedida, diz claramente a que veio.

Caso concreto
Mas o que deseja E Livre Seja Este Infortúnio? Nuno Ramos, na orelha do livro, aponta para esse estranhamento do leitor que vê seu tapete puxado a todo momento: “Que livro é este que estou lendo, afinal? O que ele quer?”. Pois não se trata de um livro de ensaios sobre facetas sociais do cotidiano. Seria um conjunto de textos coordenados por um mesmo eixo teórico em movimento, feito basicamente de dois conceitos: os conceitos de ato e de real, retirados da psicanálise lacaniana. Na apresentação do livro, Bosco diz “na bucha” que pretende examinar concretamente o seguinte problema: “As pessoas mudam?”. Um problema tão enigmático quanto genérico.

A singularidade desse exame, porém, não consiste tanto na escolha do problema, mas no peso atribuído ao advérbio “concretamente”. Antes de expor de maneira pedagógica a estrutura do livro (que se divide em quatro “conjuntos” acrescidos de um prólogo e de um epílogo), Bosco adverte logo na primeira frase que “este livro é atravessado por um desejo de concretude” e que “isso basta para apresentá-lo”. Ou seja, o que importa no uso dos dispositivos conceituais de ato e real é esclarecer o problema tal como ele aparece no “caso concreto” (naquele sentido que os juristas dão à expressão).

O “caso concreto” pode ser então a narrativa do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, ou do filme Igual a Tudo na Vida, de Woody Allen, mas também pode ser a condição dos filhos de pais famosos, a decepção amorosa vivida por um amigo ou uma transformação pessoal narrada em registro poético. Neles, assistimos, na prática, a um processo de “concretização” do binômio conceitual lacaniano.

Essa transversalidade dos assuntos, sua apropriação justa e não escolástica do pensamento alheio, a versatilidade de uma escrita segura em primeira pessoa que vai da descontração da mesa de boteco ao tom acadêmico mais consequente, tudo isso participa, sem dúvida, da melhor tradição do ensaísmo. E não seria exagerado dizer que E Livre Seja Este Infortúnio consegue encaminhar uma nova e surpreendente ordenação dos objetos que se propõe a debater. Afinal, o ensaio é, segundo Lukács, precisamente aquilo que ordena “de uma nova maneira as coisas que em algum momento já foram vivas”.

Ocorre que se, por um lado, a dispersão desses objetos da realidade, dando a sensação de que muitos outros poderiam ser analisados, garante o compromisso com o “desejo de concretude” do livro, por outro, sua ordenação forma aquele labirinto que nos faz perguntar continuamente por seu sentido (no fundo, “que livro é este?”). No entanto, quando menos esperamos, o autor parece nos entregar o fio de Ariadne.

Pois, lá pelas tantas, passamos a nos perguntar se a constante remissão às noções de ato e de real e a sobreposição de camadas de significação acumuladas de um ensaio para o seguinte não seriam elas mesmas iluminadoras da proposta mais íntima do livro. Isto é, se o livro não estaria revelando em sua própria tessitura as marcas de um ato (na coragem de publicá-lo, pelo alto grau de exposição individual) e as de um convite à experiência do não simbólico, do não imaginado, enfim, do real (ao se coadunar de forma deliberada e negativa com a opacidade de sentido, em seu próprio “desejo de concretude” que não hesita embaralhar os gêneros tradicionais).

É um livro estranho e revelador. Sua estranheza talvez constituísse um sentido crítico de segunda ordem, à maneira das peças de Beckett cujo sentido é colocar em cena a crise de sentido. Mas aqui o jogo acontece em outro campo, um campo no qual podemos entrever, finalmente, o que o autor quer com este livro. Sua estranheza é fundamentalmente ascética. E “ascese”, como o leitor descobrirá, não é um conceito gratuito. Trata-se de um conceito decisivo para aquele que acredita que a verdade, sempre fugaz e antidogmática, possui uma finalidade em si.

Eduardo Socha é doutorando em filosofia pela USP

E Livre Seja Este Infortúnio
Francisco Bosco

Azougue 160 págs. – R$ 38

(4) Comentários

  1. É, Eduardo Socha, ainda o “detalhe” é todo o fundamento e nos engana como se fosse a essência. Lembra-me uma frase do Parreira, técnico de futebol, sobre o dito “o gol é apenas um mero detalhe do jogo”. Ainda não li o livro, mas sei que não só lerei, mas o levarei comigo por muito tempo. Sei que devemos respeitar os acasos, outro mero acaso quando este ‘existe’, este assunto é mais que um sinal de atualidade rondando nossas necessidades, é a própria nos oferecendo nosso verdadeiro quinhão de liberdade.
    “Banalogias” que enfim pode ou vai escancarar a face do país das bananas, bundas e servidão voluntária. Este país é o nosso Brasil, que enganados não passam de detalhes de um futuro próspero e real.

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