Derrida e o vegetal (que logo sou)
Foto por João Antonio (Divulgação)
Na verdade, não sei bem se vou falar sobre Derrida. Talvez seja melhor confessar logo que vou falar sob Derrida. Vou falar de baixo. Um pouco como a perspectiva que Francis Ponge usa para falar das samambaias em “Rhum des fougères” (de 1942): “De baixo das samambaias e seus belos brotinhos terei uma perspectiva do Brasil?” De baixo das plantas terei uma perspectiva de Derrida?
Trata-se de um lugar mais que ambíguo – indecidível – é uma verdadeira anfibiguidade (amphibiguité), para usar um termo de Francis Ponge. Sobre Ponge, aliás, Derrida escreveu um livro, pouco comentado entre os derridianos: Signéponge. Desde o ensaio “O Homem e as coisas”, de Sartre (1944), a obra de Ponge havia abertura para especulações filosóficas em torno da questão das palavras e das coisas. Quando Derrida escreve sobre o poeta, em 1974, no entanto, sua perspectiva nada tem a ver com a mera relação entre as palavras e as coisas (ou sobre o eterno debate da primazia de umas sobre as outras e vice-versa), a não ser de forma tangencial. A tese de Derrida tinha a ver com a ideia de signature, palavra indecidível – logo intraduzível – que comporta signo, natureza e assinatura (jurídica). Derrida se questionava sobre como o nome de Francis Ponge aparece em seus textos, como assinatura; e sobre como as coisas que descreve assinam (elas mesmas) o texto de Ponge, isto é, impõe ao texto a sua contra-assinatura. A ideia de contra-assinatura se originava de um verso de François Malherbe: “Je contressigne l’oeuvre du temps” (Eu contra-assino a obra do tempo).
A partir de uma leitura de Ponge, então, queria poder desconstruir o animal de Derrida, e pensar o seu ensaio L’animal que donc je suis (O animal que logo sou) sob a perspectiva do vegetal. Isso me levaria – nos levaria – a algo como, melhor dizê-lo em francês, sem tradução, a algo como le végétal que donc je suis. O vegetal que logo sou, que logo existo, que logo sigo. Mas seria possível pensar a partir do vegetal? A partir de sua condição humilde? Num texto como “Fauna e flora”, de Le parti pris des choses (1942, traduzido aqui como O partido das coisas), Ponge estabelece uma comparação entre o vegetal e a escrita (écriture):
O vegetal é uma análise em ato, uma dialética original no espaço. Progressão por divisão do ato precedente. A expressão dos animais é oral, ou mimetizada por gestos que apagam uns aos outros. A expressão dos vegetais é escrita, uma vez por todas. Não há como voltar atrás, arrependimentos e emendas não são possíveis: para se corrigir, é preciso acrescentar. Corrigir um texto escrito, e lançado, por apêndices, e assim por diante.
Em O animal que logo sou, Derrida descreve o comportamento de desdém ou de ignorância da filosofia e dos filósofos com relação ao animal. O animal é posto na escala da subserviência e inferioridade em relação ao humano, em função da falta de razão, ou da falta de linguagem, que levam ao seu mutismo e à sua hebetude. Em Heidegger, a questão é redirecionada para o Dasein, e para a relação com o tempo. Como Derrida demonstra, quanto à pergunta se os animais “têm tempo”, ou seja, se eles experimentam a temporalidade, Heidegger simplesmente se cala. E esse silêncio de Heidegger é sintomático. A questão, como Derrida vai propor, não é a de saber se os animais têm isso ou aquilo, se eles podem pensar, sentir, comunicar-se, experimentar o tempo. A questão é saber se os animais podem sofrer. E a resposta é afirmativa, segundo Derrida. Mais do que isso, a questão para nós, a questão ética, e política, é saber de que modo administramos o sofrimento dos animais, desde a brutalidade dos matadouros até a manipulação genética – o que, aliás, também fazemos com as plantas.
Pensar a temporalidade do vegetal obriga a pensar que o tempo vegetal é pura duração (durée) na mesma medida em que é movimento. O vegetal se move na mesma medida em que vive e cresce. O movimento é a própria vida, do crescimento. Desde o momento em que o grão se abre (explode) até a queda do fruto, o vegetal se moveu e viveu no tempo. Em alguns casos, esse tempo se mede em semanas ou meses (em flores sazonais). Em outros, em séculos (1800 anos, no caso de uma sequoia). À medida que cresce e se movimenta, o vegetal se transforma e se complexifica, das samambaias às orquídeas.
A samambaia é, aliás, uma planta em que as ideias de árvore e rizoma se confundem. Lembro isso como um pretexto para trazer à baila os conceitos de rizoma e árvore de Deleuze & Guattari. Apesar de tão difundidos no meio acadêmico, a ponto de se tornarem um truísmo, do ponto de vista do vegetal a oposição não procede. De um certo ponto de vista, tanto a mangueira (árvore) quanto o mangue (rizoma) possuem estruturas semelhantes. A principal delas, é o descentramento: a estrutura dos vegetais não é “orgânica”, não pressupõe órgãos específicos que se relacionam uns com os outros através de especificidade e dependência. Nos mamíferos, por exemplo, as funções do fígado e do cérebro são específicas e insubstituíveis, tanto que a morte de um desses órgãos provoca a morte do indivíduo. Na estrutura vegetal, há milhares de fígados e milhares de cérebros espalhados por toda a planta. Não há uma hierarquia entre a raiz e o tronco, ou entre as folhas e os ramos. Há uma diferenciação de funções. Uma árvore (assim como uma planta rizomática) é uma rede de conexões, é um “coletivo”, como se diz hoje. A estrutura de uma árvore já é rizomática, no sentido apontado por Deleuze, não há hierarquia ou centro. Daí a sua força, mas também a sua fragilidade.
Não se trata apenas de lutar para proteger as florestas e as árvores, embora isso seja necessário (como fez Julia Butterfly Hill, que viveu no topo de uma sequoia de 1500 anos por 783 dias, para protegê-la do abate; assim como fez Chico Mendes). Trata-se de mudar nossa atitude diante de outras formas de vida, para saber viver em conjunto, “vivre ensemble”, “living together”, como propôs Derrida numa conferência na UC Santa Barbara (2003). “Vivre ensemble” não significa abrir mão das diferenças, nem da diferença ontológica, nem da diferença em relação ao outro. Significa, mais do que esquecer-se da diferença, superar a indiferença.
Nesse sentido, é tarefa do pensamento compreender o vegetal em sua diferença, assim como é tarefa da poesia pensar o vegetal a partir da linguagem e, sobretudo, na linguagem. Como afirma Derrida no texto sobre a poesia e o hérisson (double-bind de porco-espinho e ouriço), a poesia não é a escrita de si, mas a escrita em si (“écriture en soi”), e é essa escrita em si que pode trazer a radical diferança (différance) do vegetal para mais perto de nós. É o que Ponge faz em um texto como A mimosa (que traduzi pela Editora da UnB, 2003), em que essa curiosa planta, a sensitiva (mimosa pudica) dá origem a uma reflexão poética sobre a mímica e sobre a mímesis. Derrida define esse texto como uma “quase-halucinação mimética”, uma vez que Ponge faz com que a planta, ao ser (d)escrita, deixe no texto a sua signature: sua natureza de signo, e seu sinal de natureza. Nesse terreno pantanoso, nessa anfibiguidade em que poesia e filosofia crescem, nos interstícios da escrita-escritura, pode brotar e crescer um outro modo de pensar o vegetal, que logo somos. E, como diz Ponge, modificar nossa opinião quanto às flores, liberando-as e liberando-nos:
Para nos liberarmos, liberemos a flor. Mudemos de opinião quanto a ela. Fora desse invólucro: o conceito em que ela se tornou. Por meio de alguma revolução devolutiva, devolvamo-la, salva de toda definição, ao que ela é. Mas o quê então? – Evidentemente isto: um conceptáculo.
Assim, por (a)colher as flores da retórica, a palavra poética é um saber de cor (par coeur), como afirma Derrida (“Che cos’è la poesia?”) um saber de coração, que mais que nunca é necessário, em tempos de violência, intolerância e indiferença. Nesses tempos em que a humanidade defunta vai preparando seu próprio velório, é bom lembrarmos de trazer as flores. Esperando que ainda haja flores. E rosas. Pois as rosas, que tudo sabem, inclusive sobre perder a cabeça, nada perguntam. Assim reza a rosa de Angelus Silesius, que trago para decorar os 50 anos de desconstrução, traduzida num desvio de Babel:
Die Ros’ ist ohn warumb,
sie blühet weil sie blühet.
Sie achtt nicht jhrer selbst,
fragt nicht ob man sie sihet.A Rosa não tem porquê
Ela flore porque flore.
Não admira o seu reflexo
Nem pede que alguém a explore.
Ao fim do fim, tenho que admitir que as reflexões que apresentei estão apenas brotando, crescendo em várias direções, como uma “dialética original no espaço”. Entre outras coisas, acredito que pensar o vegetal, que logo somos, pode nos ajudar a questionar o modelo baseado no indivíduo (sustentado pelo cogito), que é o modelo animal, para um modelo de pensar baseado no divíduo – na dividuação do vegetal. Pois lá onde o animal quer se recolher em si mesmo (em último limite, no humano, no egoísmo, na acumulação), o vegetal quer dividir[-se], quer integrar-se, quer frutificar em direção ao futuro comum [avenir]. O ato essencial do vegetal é o dom, no sentido de doação (le don). E seu modo de viver é o “vivre ensemble”, “living together” se quisermos remeter, novamente, a Derrida. Há uma palavra inglesa que traduz bem isso, e que é também intraduzível: togetherness. O vegetal nos leva a pensar que há uma ética que se baseia mais em dividir mais que em reter, em acolher mais do que em escolher, em ofertar mais do que em apartar. Uma ética da generosidade, que é, em última instância, uma ética da hospitalidade. Mais não digo, senão: “olhai os lírios do campo…”
Nota bene: Devo este texto ao Filipe Ceppas, e também às conversas com Evando Nascimento (não tanto pelas flores), cujo livro Derrida e literatura me foi sempre imprescindível. Sobre a relação entre as plantas e a literatura, remeto a Plant Theory, de Jeffrey T. Nealon. Ainda, sobre o modo de ser vegetal, remeto ao belo livro Sensibilidad e inteligencia en el mundo vegetal, de Stefano Mancuso e Alessandra Viola.
ADALBERTO MÜLLER é professor de teoria da literatura na UFF. Escreveu o livro de contos Trem cinema (Megamini/7Letras) e atualmente prepara a tradução da poesia completa de Emily Dickinson. Colabora regularmente com a CULT.