Derrida e a linguagem

Derrida e a linguagem

A relação do filósofo com o texto, a palavra e o signo

Silvia Faustino

 

Ao afirmar que “não existe o fora texto”, Derrida assume que a linguagem é o habitat natural de toda sua atividade filosófica e literária. E não é para menos: a operação de desconstrução que o tornou célebre seria impensável sem os textos, os verdadeiros objetos da desconstrução. A quase totalidade de seu trabalho se dá sobre textos escritos por outros, sobre os quais ele se debruça para efetuar a característica desmontagem da estrutura e o conseqüente descentramento de sentidos já consolidados. Nesses textos, a identificação de esquemas conceituais armados pela linguagem clássica da filosofia é só um primeiro passo, pois o que lhe importa é escrutinar as dobras do tecido da escrita para encontrar textos que lá se escondem e desvendar feixes de significados pressupostos que de algum modo teriam permanecido implícitos e ocultos. Os textos estão, portanto, no ponto de partida, em toda a travessia e na chegada (sempre provisória) das empreitadas analíticas de Derrida. Com ele cabe perfeitamente dizer que “no início era o signo”. Não por acaso, é precisamente pelo signo que sua proposta de desconstrução da metafísica logocêntrica começa, e a vantagem de começar pelo signo é precisamente a de começar pelo que essa tradição sempre considerou como secundário. Começar por aí é colocar-se, de saída, já no desvio. Como não poderia deixar de ser para quem, no fundo, respeita a tradição, Derrida opera a desconstrução do signo tomando a terminologia de Saussure como ponto de partida. 

O signo lingüístico constitui uma combinação entre o significante (a forma tomada como imagem acústica) e o significado (o conteúdo tomado como conceito), como se fossem dois lados de uma moeda. A função do signo é representar uma coisa, um referente, durante a sua ausência. Derrida, no entanto, além de se recusar a tomar o significado como uma unidade ou entidade separável do seu significante, considera que o significado não é mais que o significante posto em determinada relação com outros significantes. A conseqüência disso é que o significante, não mais se esgotando em sua materialidade, chega a absorver certa idealidade antes conferida somente ao significado. Esse alargamento do significante esboroa a diferença entre os dois lados do signo. Derrida chega a dizer que a diferença entre significante e significado não é nada e, conseqüentemente, problematiza a sua própria unidade. Que não nos enganemos, porém, tomando a desconstrução como uma destruição. Pois, longe de ser destruído, o signo será (sob nova interpretação) mantido como prioritário ao referente, e o significante como prioritário ao significado, de modo que não existirá mais a coisa em si fora das redes de remissões dos signos.

Essa nova visão do signo está na raiz da generalização da “escritura”, que a tradição metafísica também relegou ao plano secundário por não tê-la considerado como diretamente ligada a um significado ou referência, mas como mera transcrição fonética, gráfica ou alfabética. Para Derrida, no entanto, a palavra escrita estende vertiginosamente o alcance da linguagem no espaço e no tempo e assegura a comunicação do pensamento de alguém mesmo depois de sua morte (não sem expô-lo a riscos). A escritura e seus “traços” de presença será a condição de possibilidade da repetição do signo e da concepção do texto como um evento.

O enunciado segundo o qual não existe fora texto certamente não pretende confinar ninguém a uma prisão lingüística, mas abrir para as múltiplas possibilidades de entendimento pela linguagem. Aos olhos de Derrida, um texto nunca está fechado em si mesmo, permanecendo essencialmente aberto à leitura do outro. Nenhum texto prescreve uma leitura inevitável, já que a “assinatura” da autoria nunca está completa: toda assinatura é uma contra-assinatura que reúne todos os momentos da enunciação no momento único em que o escritor fecha o livro já escrito e o abre para o leitor.        

Embora tenha se dedicado a conceitos filosóficos, procurando desfazer dicotomias clássicas que enclausuram o pensamento ocidental, a escritura de Derrida dificilmente se inscreve no gênero de uma linguagem clássica da filosofia. Isso ocorre sobretudo por duas razões: em primeiro lugar, porque Derrida parece jogar a metáfora contra o conceito; em segundo lugar, porque suas análises produzem enunciados tradicionalmente inadmissíveis ao bom senso filosófico, por exemplo, quando ele fala de um passado absoluto que nunca existiu, de uma repetição originária, de um infinito finito, de um nome próprio que não é próprio etc. Em sua característica busca por clareza, o texto filosófico, quando usa uma metáfora, sempre a explora como ferramenta de esclarecimento do conceito. Mas em Derrida, as metáforas são mantidas precisamente para dar lugar à fala oblíqua, que explora conotações laterais ou sugere conteúdos sem explicitá-los. Talvez seja por isso que a escritura de Derrida tenha encontrado maior receptividade no campo da literatura que no campo da reflexão filosófica clássica.

Sílvia Faustino
é professora de filosofia na UFBA

(1) Comentário

Deixe o seu comentário

Novembro

TV Cult