Depois de tudo, ainda é sobre a minha mãe: “No muro da nossa casa”, de Ana Kiffer

Depois de tudo, ainda é sobre a minha mãe:  “No muro da nossa casa”, de Ana Kiffer

 

No dia 9 de novembro de 2024, assisti ao filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, deputado cassado, sequestrado, torturado e assassinado pela ditadura militar em 1971. No dia seguinte ao filme, li a matéria de André Bernardo, pela Deutsche Welle, na UOL: “Filme Ainda estou aqui: ficção e realidade da ditadura”. Em dado momento, o texto comenta sobre o novo livro de Marcelo Rubens Paiva: “O Novo agora começa onde Ainda estou aqui termina”. Em seguida, o comentário do autor sobre o Novo agora: “Não é mais um livro sobre a minha mãe. É sobre o que veio depois […]”. No dia 10 de novembro, no dia seguinte ao que assisti a Ainda estou aqui, li No muro da nossa casa, de Ana Kiffer, recém-publicado pela Editora Bazar do Tempo. Minha leitura aconteceu nesse tempo do só-depois: foi quando vi que No muro da nossa casa é exatamente “sobre o que veio depois”. Mas é justamente por ser “sobre o que veio depois” que ele é, ainda, “um livro sobre a minha mãe”.

No filme Ainda estou aqui, a protagonista é Eunice Paiva, mãe de Marcelo. No livro No muro da nossa casa também temos o ponto de vista de uma mãe. Em ambos os casos, é preciso destacar um elemento crucial que diz da importante escolha de contar a história da ditadura militar a partir da figura da mãe como personagem principal e não coadjuvante. Se no livro Ainda estou aqui somos conduzidos pelas lembranças de uma criança, No muro da nossa casa quem conduz é a ausência de lembrança de uma criança que ainda estava na barriga da mãe. Uma lacuna radical convoca uma mulher a voltar para o ventre da mãe para que seja possível escrever sobre o que nunca viu. Por isso, nesse livro, não lemos lembranças, porque sequer houve memória. Não ter memória não é esquecer o que um dia já foi lembrado, é nunca ter lembrado, como se nunca tivesse existido. No muro da nossa casa é a invenção ética de uma memória: “porque nasci sem memória, escrevo”. Escrever como um ato de fazer existir, um ato de reconhecer a existência, como quem nomeia um bebê que acabou de nascer.

No muro da nossa casa não está exposto o retrato da “família perfeita” da zona sul carioca que, antes de ser destruída pela ditadura militar, estampava sorrisos em fachadas de casas de classe alta. No muro da nossa casa não é uma história que romantiza “mulheres de maridos” que, contra elas e à revelia delas, as estereotipa e as enclausura no mito da mulher “guerreira” ou da “fortaleza” que não quebra e segue inabalável “apesar de tudo”. No muro da nossa casa é a exposição corajosa e radical de sentimentos contraditórios, paradoxais, em suas complexidades, como sempre o são, sem moralizações: um marido foi preso e uma mulher, grávida e mãe de outras crianças, não faz juras de amor e espera docilmente por ele, sente raiva por ter sido deixada sozinha grávida e com outras crianças: “Queria saber onde você estava, e ao mesmo tempo queria te matar. Como me deixou viver aquilo sozinha?”. O cerne do paradoxo está exposto em cada letra desse fraseio como um piche no muro que jamais se apagará não importa o quanto esfregar.

Um dos compromissos desse livro não é resolver as contradições, os paradoxos, os conflitos, mas expô-los, com a humanidade que merecem se tratados. Uma mãe é presa grávida e, na prisão, quer e não quer que o bebê nasça. Sentimentos assim, contraditórios, sem idealizações, sem romantizações, são expostos nas letras corajosas desse livro como as entranhas que nos constituem. No muro da nossa casa há o abalo de estruturas, queda de ideais, desconstrução de mitos. Essa não é uma história de heróis: “Essa história esquecida e desimportante – sem glamour, sem exílio, sem dinheiro, sem amigos, sem heroísmo, sem morte – é também a história de muitos, é quase a história de viver num certo Brasil”. Do mesmo modo, esse livro não se esquiva de mostrar a diferença entre o sonho e a revolta, entre o homem que pôde sonhar e a mulher que não teve direito ao sonho porque foi devorada pela pobreza indigesta da vida e só lhe restou a raiva. “O fraseio passou a ser um estilo impossível pra mim. Se escrevo, corto. Ou apago.”. Como escrever quando o fraseio se torna impossível? Esse livro escreve com e contra o apagamento.

No muro da nossa casa está exposta a dor de uma mulher que cai de joelhos sob o peso de uma muralha que ela carrega não nas costas, mas na barriga, com a barriga. No muro da nossa casa é a tentativa de dar corpo ao que foi partido para sempre. Dar corpo, aqui, significa inventar um corpo, falar com os pedaços, falar aos pedaços, deixar que os pedaços falem. Aqui, uma mãe morta ganha boca e testemunha pelos dedos da filha: “Segui viva, criei três filhos, me mantive ao lado do teu pai, para que ele se reerguesse […]. Teu pai passou a vida trabalhando, quase não o víamos. A força de reconstrução, que não sei como ele encontrou, não foi a mesma que a minha. Uma coisa me partiu tão profundamente […]”. Há um muro que se interpôs entre uma mãe e uma filha. Falar sobre o muro é encará-lo no ato de encenar uma conversa nunca antes existida entre uma mãe e uma filha. Falar sobre o muro é falar sobre a censura, sobre o apagamento, sobre uma educação pelo chumbo, sobre uma pedagogia pelo peso da letra que se fez muro.

No muro da nossa casa é a história de uma mulher, de uma mãe, de uma filha; de um ventre, de uma célula, de uma cela, de uma casa, de um país. O muro é o ponto que, ao mesmo tempo, articula e separa o dentro e o fora. Essa divisão estrutura o livro: dividido em partes que são atos. Por um lado, atos remetem os Atos Institucionais promulgados na ditadura; por outro, os ATOS desse livro derrubam esses AI’s, a partir de uma estrutura que mostra que algo precisa ser montado. Uma escrita põe em ato o seu processo, expõe a sua feitura: “Retiro os personagens inventados para ficarmos só eu e você, aqui.”. É preciso montar uma cena, criar uma dramaturgia para poder entrar em casa, entrar na história, entrar em cena, pôr em ato.

No ATO I, o cenário é uma “cela mínima”. A história acontece pelos olhos da mãe que miram dedinhos que um dia vão escrever o que nunca viram e o que nunca souberam, porque só é possível escrever essa história a partir do não visto e do não sabido, uma vez que não se trata de ver nem de saber. Atos depois, uma filha que nunca viu o acontecido, que sofre de vista cansada, só vê pelos dedos: assim se faz a escrita desse livro – pela visão dos dedos que um dia apareceram como miragem para a mãe. Foi preciso passar da visão ao tato para tatear uma história.

No começo, a mãe diz: “Eu era um ser infecto”. Do infecto ao infeto, da putrefação à gestação: lá onde o guarda “olhava com desdém para a minha barriga”, uma mãe gestava um bebê que, mais tarde, só-depois, iria fazer nascer de novo, pelas letras, outra mãe, outra mulher e outra filha. Na “cela mínima”, a barriga se faz muro: “Os muros da cela e a minha barriga murando o meu contato com o mundo”. A “cela mínima” também é um ventre: entre a cela e a célula, entre o cerco e a unidade estrutural de um ser vivo, o corpo que gesta faz muro ao corpo indigesto da “sentinela”. O paradoxo também se faz entre as diferentes posições: o corpo gestante, fortificado, duplo, que barra o horror (“meus dois corpos”) e o frágil corpo murado: “eu mesma como um muro, inerte, gélida, dura”.

No muro da nossa casa ecoa a repetição das vítimas torturadas: “eu não sei”. É nesse não saber que se estrutura esse livro. Nesse eco podemos escutar Tamara Kamenszain, em que o eco do não saber remonta à censura, ao silêncio sepulcral de uma família, de uma casa que se tornou um cerco, um gueto, além de outras escritoras que escreveram sobre os efeitos de regimes autoritários sob o ponto de vista de uma criança, na condição de filhas, como Hélène Cixous e Sarah Kofman, por exemplo. Pelo ponto de vista de uma filha, a mãe traz uma voz que ela escutava da cela ao lado: “juro pela minha mãe que não sei”. O que é jurar pela mãe? Prestar um testemunho é sustentá-lo em sua pedra angular, em seu ponto fundamental, em sua espinha dorsal. O que dá suporte a um testemunho? O que se porta para sustentá-lo? Na página seguinte, lemos: “Todo mundo tem uma mãe, que mesmo morta é testemunho. O meu bebê, já não sei se teria uma, tampouco sei se, neste caso, era testemunho a mãe ou o bebê”. O livro é exatamente essa “boca do testemunho” – para falar com Tamara Kamenszain – da mãe que fala pelo bebê, pelos dedinhos do infans que dariam contorno a uma letra se alfabetizando por uma língua que passaria pelo pai, que passaria pela mãe, mas, “depois de tudo”, seria passada, sobretudo, de filha para mãe, nessa transmissão às avessas.

Na filha que gesta a mãe, o bebê é testemunho dessa mãe que se sustentava como testemunho nesse bebê. O que dá sustentação a um testemunho de uma mãe que não pode testemunhar é o não saber de uma mulher sobre se seria ou não uma mãe para esse bebê, sobre se esse bebê teria ou não uma mãe. Na filha que gesta a mãe, uma filha porta a mãe: presta-se a escrever com mãos raladas pela camada áspera do muro cujo peso que, confundindo-se com o peso da barriga, pesou sobre a mãe grávida que, em um ritual repetitivo e desesperado, empenhou-se em apagar letras que se impuseram como chumbo. Uma filha que porta uma mãe presta testemunho ao emprestar seu corpo a outro corpo, doando-se à invenção de uma mãe, à invenção de mãos que portaram um peso insuportável. Portar o insuportável não é apenas gestar uma nova mãe, é voltar ao ventre para escrever: “Fazendo tremer o corpo da letra, me entreguei de novo ao seu ventre, mãe”. Ao gestar uma mãe, uma filha também nasce de novo, em um nascimento conjunto, testemunhado, porque compartilhado: “Estamos nascendo de novo, mãe”.

Um encontro marcado entre aquelas que nunca tiveram esse encontro só foi possível por um compromisso de sentir na pele, com o corpo, com a ponta dos dedos, a história da mãe, para que, passada através de suas mãos, a filha pudesse finalmente dar suporte a ela, não como quem carrega o peso sozinha, mas como quem dá lugar, como quem dá passagem, para poder atravessar – um muro. Dar lugar na história, na cena, na vida daquela que era murada em sua própria existência, daquela que não sentia que tinha um lugar nem em sua própria casa. Dar lugar a uma mãe que possa dar lugar a uma filha, como um diálogo que dá passagem, abre caminho, faz passar adiante, dá lugar ao encontro: “sonho que esse livro passe de mão em mão, de mãe em mãe […]. Entre mães e filhas, entre filhas e mães”.

Nesse livro passamos por significantes como “murmurar”, “murrar”, “murar”, “muro”. Se um dia a letra se fez muro chumbado, a autora recorre a outra letra para murrar o muro. Murmurar uma língua para murrar o muro e se encontrar com a mãe implicou buscar a voz de Marguerite Duras, aquela que fez tema de seus livros o paralelo entre a colonização francesa na Indochina e a difícil relação entre mãe e filha como duas lógicas devastadoras: “Vou ler Uma barragem contra o Pacífico, buscando a voz dela, que sempre me nutriu de pesadelos férteis e risos congelados, te chamo para dançar comigo, pacifico tudo o que posso […]”. Em Duras, uma mãe ergue uma barragem contra um oceano e uma filha ergue, com a escrita do livro, uma barragem contra o transbordamento da mãe. Enquanto Duras foi ninada pelos gritos da mãe, “os pesadelos férteis” nutriram outra filha para fazer da barragem uma barra contra o muro e escutar o murmúrio de uma canção de ninar que a transportasse para uma “barraca de camping” em que ele pudesse voltar a se aventurar com a mãe.

Esse livro trabalha com o tempo da vigília, o tempo do despertar, o tempo do adormecer, o tempo dos sonhos e dos pesadelos. Neles, as crianças dormem na repetição do refrão: “As crianças dormiam. As crianças dormiam”. Enquanto as crianças dormem embaladas pelo refrão, uma mãe acorda e dá de cara com um muro, e faz de um ritual o seu refrão de sobrevivência: “Apenas repetia, tenho que acabar com tudo antes que as crianças acordem.”. Antes que as crianças acordem, uma mãe limpa a sujeira de um país exposta no muro de uma casa. Uma mulher, esposa e mãe, foi brutalmente lançada na vigília: “de camisola, de joelhos na calçada, esfregando feito louca um muro manchado”, como peregrinos que expiam pecados repetindo ladainhas, orações, sacrifícios, modos de pagar penitência: “Ajoelhada como uma virgem revolucionária que nunca fui. Fui aquela que mastigou a raiva até quebrar os dentes”.

Penso na mulher de Lot, a inominada, condenada a virar pedra ou estátua de sal porque fitou a catástrofe, desobedeceu, olhou para trás, mirou a cidade em chamas: “É preciso ainda olhar pra trás, e ver o que não deixaram ser visto”, diz a mãe. Penso na imagem de Medusa associada ao horror da petrificação e do emudecimento enquanto, em verdade, ela foi uma mulher vítima do horror do estupro, da transformação em monstro, da mutilação, da decapitação de sua cabeça que passou a ser usada como arma por um homem que virou um dos heróis fundadores da mitologia ocidental. Penso nas mulheres que todos os dias dão de cara com o horror, sem desviar dele, e precisam se a ver com essa pedra, com esse muro gigantesco que se impõe no meio do caminho de suas vidas. Penso na expressão “empurrar com a barriga”, conferindo um sentido positivo a ela: uma mulher empurrar um muro com uma barriga; uma barriga grávida deslocar um muro, ser mais forte que ele: “Carrego, fincadas no corpo, todas as mulheres do mundo que arriscaram ver e atravessar os muros”, diz a filha. Nesse momento, a filha é a mãe, é a mulher de Lot, e ela gesta todas que viram e pagaram um preço irreparável com seus próprios corpos.

Entre o sono e o sonho das crianças, uma mãe acorda e dá de cara com o horror: vira pedra, vira muro, paga o preço da mulher de Lot, “a mulher do marido”. Na verdade, lançada à vigília, ela nunca pôde acordar. Pelos dedos da filha, uma mãe desperta, desloca-se, empurra um muro com uma barriga: essa é a força dessa escrita. “Os meus braços ainda doem enquanto escrevo”. Na página seguinte, as letras não estão em itálico, não estão inclinadas como estiveram ao longo das primeiras 18 páginas do livro. Na página seguinte, lemos uma segunda voz: “Enquanto escrevo também, mãe.”. Além da dor nos braços enquanto escreve, o que se herdou? A raiva, “o amor pelas letras, o apagar, e o grafar”.

Qual é o preço do apagamento? Toda uma vida. Muitas vidas que entraram e não entraram nesse livro. Porém, quanto mais essa mãe tenta apagar, mais seu corpo se mistura às letras, ao que escorre das letras, misturando-se à mancha impossível de ser apagada. Quanto mais tenta apagar, mais o apagamento escreve. O apagamento deixa marcas que escrevem no que resiste ao apagamento: a “tinta insolúvel”, o sangue e a letra vermelha. O vermelho das letras se mistura ao suor de mãos que esfregam insistentemente: o que escorre, o que resta? As impurezas de um muro e de um corpo. Escreve-se com as entranhas: escreve-se com o resto – elevando-o ao ponto de letra que não derruba, fabula, fazendo do resto uma causa, fazendo da muralha da penitência o lugar da profanação, da rasura, da reescrita da história. Como nascer “depois de tudo”?

“Sempre me senti como uma parte do depois de tudo. Sem geração, sem filiação, sem partido, sem grupo, sem grandes mestres.”. Só se pode nascer no tempo do só-depois: só-depois elaboramos, só-depois simbolizamos, só-depois nos perguntamos sobre o nosso lugar na história, só-depois nos perguntamos sobre o nosso lugar na casa: aquela em que podemos habitar não porque ela fixa um destino (“Olhei para o muro como se ele fosse um oráculo, o fim da linha do trem, o destino se cumprindo: nada nunca mudaria.”), mas porque permite estar de passagem, como na barraca de camping, fazendo uma travessia – “depois de tudo”.

Entre suas partes e o partido, entre um “pedacinho do antes” e “uma parte do depois de tudo” (“Ainda sequer sonhava, mas já era comunista. Era um pedacinho do antes.”), a filha herdou uma parte como dívida: “carne hostil que foi batida antes da hora”. Sobreviveu ao abatedouro dividida entre um antes e um depois, nascida do depois, mas trazendo o antes fincado na carne. Partida entre uma “parte do depois” e um “pedacinho do antes”, toma partido, acerta as contas. A partir do ATO II, duas vozes se diferenciam graficamente: uma mãe e uma filha conversam. Só-depois: nasce um diálogo. Só-depois há a separação da fusão para que duas possam existir em seus lugares e darem passagem a uma travessia compartida. Só-depois é possível instaurar o divisor de águas, um antes e um depois que inaugura um nascimento.

O segundo ato desse livro dá lugar à existência de uma mulher, uma mulher que existe sem ser a mulher do marido, uma mulher que tem uma história: “Eu não era a noiva promissora, parte das elites políticas que o seu pai frequentava. Frustrava o sonho da sua avó: eu era pobre. Carregando sangue negro e indígena, ela me chamava ‘lá vem aquela negrinha’”. Uma mulher que existe sem ser a mulher do marido, existe “num pequeno intervalo”: “[…] O seu pai. Eu, a sua mulher, o que acabei sendo toda a vida, como uma condição inquestionável, salvo por um único momento, do qual você se lembra, usei botas, fiz terapia e quis me divorciar. Existi para mim num pequeno intervalo”. Existir num pequeno intervalo entre um “pedacinho do antes” e uma “parte do depois”. Existir num pequeno intervalo que faz perguntar: que abismo separa as histórias que cada um e cada uma carrega dentro de uma mesma casa?

O que fica ilegível na frase escancarada do muro? O que, nessa frase exposta na fachada, não pode ser lido? A mãe diz: “Não era apenas uma frase. Estávamos sendo banidos.”. O banimento, o bandido (“bandido comunista”), a dívida, a mora, a demora, a morada. Como rasurar e adiar a sentença de morte como um oráculo que pudesse ser interpretado e não que fixasse o destino traçado? Como deslocar um muro, como mover uma montanha? Com os dedos de uma filha que colocam outras letras sobre as letras de chumbo: “mãe, este livro é o muro que reescrevemos juntas. […] Estamos colocando outras letras sobre essas. Estamos escrevendo sobre o muro”. Escrever sobre o muro, por sobre o muro. Como traçar uma letra por sobre uma linha dura?

Antes da escola, a alfabetização chegou pela mãe sob o efeito da lição da “pátria amada mãe gentil”. A educação chegou pela pedra, pelo muro, pela “carne hostil”: “antes de entrarmos na escola você nos treinou, a mim e aos meus irmãos, para não olhar, não ver, não ouvir, não dizer”. Contra esse treinamento, não desviar do horror, encarar o muro, expõe um dos conflitos mais importantes entre mãe e filha que esse livro não se esquiva, coloca em ato: “você me ensinou a mentir, e também a dizer toda a verdade só pra você. Como num sofisma, vivi sem saber em qual momento deveria seguir esse ou aquele caminho. Errando por excesso de sinceridade, ou mentindo para mim mesma”. Nesse acerto de contas de uma filha com uma mãe, de uma filha consigo mesma, acerta-se as contas com os muros que estruturam o imaginário de uma cultura: o mito da “força inabalável” que se encontra no imperativo do “Nunca desistir”, o mito obsessivo e opressor que estrutura o imaginário coletivo em torno de mulheres, mães, pobres, vítimas da ditadura e demais vulnerabilizados por violências que a cultura determinou que “têm que dar conta de tudo”, “haja o que houver”, “incondicionalmente”. Não. Esse livro revela que esse mito é uma prisão: “Uma força inabalável no sonho nunca realizado, uma espécie de célula impenetrável como a prisão de vocês, que guardei comigo. Nunca desistir.”. Uma frase abala a estrutura. Uma frase demole uma casa. Uma frase derruba um país. Uma palavra mata.

A letra assume-se como marca, impressão, rasura, ranhura e “concreto armado”: “Toda letra é um pouco como um concreto armado, me confundo com o muro, com a sua barriga, para dissolver o duro, e inventar aquele jeito de dançar nas feiras públicas; a frase e o som do mundo que não ouvimos. Porque o muro se interpôs.”. No começo do ATO III, a mãe diz: “Tudo começava pelo olhar”. Se uma mãe ficou presa à vigília, aos olhos que a vigiavam, uma filha escreve “sobre eles, sobre nós, para tentar acordar, e dizer”. Mas aqui o acordar se faz com o sono, o sonho, o pesadelo e a vigília, uma vez que não havia um “eu” consciente: “Existe um eu dentro do ventre? Como posso escrever em forma de feto?”. Como contar uma história quando não há um “eu” consciente, mas que foi profundamente marcado por impressões que ficaram inscritas para sempre? Cenas primitivas, diria Freud, em que estamos ausentes enquanto um “eu”, mas que nos constituem, nos estruturam e deixam marcas. No muro da nossa casa é a escrita das impressões dessas marcas que agora são escritas como testemunho do que nunca viu nem ouviu. Aqui, escreve-se com um olho só (“Vi tudo com um olho só, mãe”), escreve-se com dedos que enxergam, escreve-se de ouvido: “Escrevo de ouvido, porque a imagem do muro criou um furo, no meio do fraseio, da minha cabeça, um vazio, no meio do peito, virei um algo duro como um muro que tenta escrever, sem saber se morri ou não naqueles dias, naquele ano. Ou depois.”. Se uma frase mata, outra faz nascer. Talvez um dos melhores acertos de contas desse livro seja uma frase escrita “só para ouvir”, sua pedra angular, sua força vital, sua linha cruzada entre o dedo e o ouvido, sua linha cruzada que vem da escuta intervalar dos mortos ou das linhas das mãos desses dedos que enxergam: “Vou escrever este livro só para ouvir você dizer: minha filha”.

No muro da nossa casa é um romance de formação: a gestação, a infância, a adolescência, a entrada na universidade, a trajetória de uma vida na trajetória de um país, uma filha que nasceu “depois de tudo” e começava sua formação com as Diretas Já. Que romances de formação formaram os anos de chumbo? Os “anos do romance de uma formação” foram atravessados pela Educação Moral e Cívica, em que crianças aprenderam o que é sinônimo: “sinônimo de total abuso físico”. Formar-se nas letras, pelas letras, com as letras: OSPB, DOPS, AI – aprender a contar até 5: “minha filha, fui preso com o AI-5”. No ATO V, lemos: “O meu olhar melancólico, tinha cinco anos”.

Nesse livro que expõe os conflitos, como cartas na mesa, acerto de contas, como quem se pergunta ‘qual é a minha parte nessa história?’, uma filha interroga a sua formação pelo que foi transmitido pela mãe: “Aqui começa a sua história, mãe: mentir como método”. Uma filha aprende a ter que contar toda a verdade só para a mãe. Uma filha se interroga: “Será que querer a sua verdade também não é um pouco como a tortura, mãe? Você sempre me exigiu dizer a verdade”. A tortura acontece de muitas formas, inclusive, como projeto pedagógico: uma pedagogia da violência é transmitida por uma formação, por uma alfabetização, por um vocabulário, pela língua. A tortura disciplina corpos, hábitos, interpõe-se brutalmente como muro nas relações afetivas, familiares, interpessoais. A tortura vira um método de educar, de formar: “Fui acreditando, sem saber, ao longo da vida, que o interrogatório era um método, que a palavra teria que ser sempre verdadeira”. Por isso, aqui não lemos verdades nem mentiras, uma vez que isso já seria o método da tortura: aqui lemos “a vida que a escrita dá” – essa sobrevida.

“Quero encontrar a língua da menina, a língua do p de pato, de pai”, diz a filha. Nessa formação, há o que se herdou da mãe e há o que se herdou do pai. Dentre as diferenças que separam essas heranças, talvez haja um ponto de encontro de uma transmissão. Entre as letras apagadas pela água da mãe e as letras afogadas pela água do mar que invadia a cela em que o pai estava, há na “língua do p” muito mais que uma língua do pai: há uma língua materna. Do pai, a filha guardou as palavras “prisão e poesia”. Descobriu que ele “escrevia poemas sobre o mar, na cadeia onde ficou preso, que era uma fortaleza”. Se a filha sente uma “beleza” “por trás das grades das palavras: poesia, prisão e pai”, há uma ambivalência nesse entrelaçamento: elas também aprisionam. “Por que essa língua é tão dura?”, pergunta a filha no próximo Ato. “[…] Dura porque pedra e prisão falam a língua ingênua do p, inconsciente, desmaiada pela tortura, sem saber de si”, responde a mãe. A “língua do p”, de pai, de prisão e de poesia é uma língua “inconsciente”, “sem saber de si”, como uma lalíngua que retumba no corpo restos de uma língua materna. Lalíngua, lalação, ladainha como a língua da mãe contra o muro, a língua do corpo grávido da mãe contra o peso da letra de chumbo. A água suja misturando-se ao suor da mãe, misturando-se ao peso da barriga, ao ventre aquoso. A língua afogada do pai e a língua da mãe encharcada de água suja de tinta entrelaçam o vermelho da língua do pai, o vermelho da letra que resiste ao apagamento, o vermelho do sangue e o vermelho do ventre.

Essa “língua do p” só é a língua do pai enquanto também é uma lalíngua que ecoa os resíduos de uma língua materna que se depositaram no corpo. Voltar a uma língua da infância para falar sobre o que nunca foi falado na infância se passa por uma “língua do p”, de pai, no ponto em que ela se encontra com o que se depositou de uma língua materna que já não é a língua da mãe nem a língua do pai, mas o ponto de encontro de seus resíduos, de seus restos, de suas impurezas, de suas letras afogadas e de suas letras encharcadas com água, suor, sangue e tinta. É essa língua que extrai água da pedra, que extrai a pedra da loucura para que seja possível falar, sonhar, atravessar, dançar.

A partir da extração do suor das mãos que tentavam apagar a língua da linha dura da letra fincada no muro – enquanto misturava-se ao vermelho da tinta – e a partir da extração das letras afogadas “sem saber de si”, essa língua que extrai a pedra só pode escrever com esses restos, com esses resíduos que se depositaram “sem saber de si”, com as marcas impressas que reverberam em um corpo que estava ausente enquanto “eu”. Por isso, a matéria-prima dessa escrita é a fina matéria viva que nos conecta aos nossos mortos e ao que nunca presenciamos com o saber: o sonho, a imaginação, a invenção.

Depois de tudo, uma filha vai chegando ao final desse livro: “meu pai ainda está por aqui”. Depois desse “ainda estou aqui”, uma filha, tão cansada, “depois de tudo”, finalmente consegue dormir. Antes do fim, um pai comparece quase sem memória, “desorientado”. Passado, presente e futuro entrelaçam-se. Depois de tudo, é preciso preparar o começo: “Sinto em minhas mãos as cordas e os pinos das nossas barracas. Espero o terreno para montá-la”. Se Tamara Kamenszain, sob o efeito também de uma experiência do exílio, criou um “tetinho armado no deserto” (em Solos y solas), Ana Kiffer, sob o efeito da experiência do “in-xílio”, tem a impressão de que passou todo esse tempo em barracas: “nos tornamos nômades imaginários, sem nunca termos saído do lugar. Desse deserto imaginário e real fiz a minha primeira infância. Tenho hoje a impressão de que passei todo esse tempo em barracas”. Atravessar um muro, atravessar uma casa, atravessar a barragem contra a mãe e encontrá-la nas barracas de camping compartilhando travessias. No fim, o começo: no último ato, testemunhamos o nascimento de uma mãe e de uma filha: “Agora é outro ato, o de nascer de novo”.

Danielle Magalhães é doutora em Teoria Literária pela UFRJ e autora dos livros Ir ao que queima e Vingar.

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