Democracia em debate

Democracia em debate

CULT convidou também três pensadores brasileiros para falar sobre o atual estágio da democracia: o cientista social Michael Löwy, estudioso importante do marxismo, radicado na França, leciona no CNRS (Centre National de Recherche Scientifique) em Paris; Fábio Wanderley Reis, cientista político e professor emérito da Universidade Federal da Minas Gerais (UFMG); e Renato Lessa, professor de teoria política do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). Löwy e Wanderley Reis discutem a consolidação da democracia brasileira, a posição do país em relação ao quadro político latino-americano e a possível falência conceitual da democracia. Renato Lessa analisa as possibilidades de realização de uma democracia plena no Brasil.

CULT – O senhor acredita que as instituições democráticas brasileiras, 25 anos após o fim do regime militar, estão efetivamente consolidadas?

Michael Löwy – As instituições estão consolidadas, mas se trata de uma democracia de baixa intensidade, em que a maioria da população, os trabalhadores da cidade e do campo participam muito pouco das decisões sobre os rumos do país. As grandes decisões econômicas são tomadas por uma pequena oligarquia de banqueiros, empresários, fazendeiros e políticos profissionais a seu serviço. No momento, não parece haver risco de intervenção militar, mas a cúpula das Forças Armadas continua exercendo seu veto a iniciativas que visem à denúncia dos crimes da ditadura militar.

Fábio Wanderley Reis – A aposta de que a democracia brasileira se acha consolidada se justifica, não obstante a reserva trazida por fatos como a queda, a certa altura do século passado, de democracias que pareciam seguras. O grande fator de instabilidade institucional na periferia do capitalismo mundial na segunda metade do século 20, os efeitos domésticos do enfrentamento socialismo-capitalismo e da Guerra Fria, especialmente com o protagonismo político dos militares, foi superado. Além disso, passamos bem pelo teste de ver um partido de ideias socialistas e radicais e um líder com o background de Lula chegar à Presidência da República e ter êxito como presidente. Apesar das crises e turbulências (que vêm sendo processadas institucionalmente, o que em si mesmo é um avanço e favorece a consolidação institucional), a experiência resultou tanto em necessário aprendizado de moderação e equilíbrio, de um lado, quanto, de outro, na afirmação mais nítida da “questão social” na esfera político-eleitoral, legitimando-a e justificando a expectativa de que continue a ocupar lugar importante na agenda do país.

CULT – Como o senhor enxerga nosso atual quadro político, se comparado àqueles dos demais países latino-americanos e dos demais países emergentes?

Michael Löwy – O Brasil é um dos países do continente – junto com o Chile e o Uruguai – que têm um governo de centro-esquerda,  de corte “social-liberal”, que garante os interesses das classes dominantes, mas procura ao mesmo tempo tomar iniciativas assistenciais em favor das camadas mais pobres da população. Em relação aos regimes repressivos e alinhados com o imperialismo – Peru e Colômbia – é um progresso. Mas contrasta muito com o radicalismo dos governos anti-imperialistas – Venezuela,  Bolívia, Equador – que tratam de romper com a oligarquia e buscam uma alternativa ao neoliberalismo, colocando no horizonte histórico o socialismo do século 21.

Fábio Wanderley Reis – De um ponto de vista latino-americano mais amplo, o aspecto a ser ressaltado é a irrupção do que alguns têm chamado de “populismo carismático”, com figuras como Chávez, Morales, Correa e mesmo Lula. Com todas as reservas que se queira ter quanto à turbulenta experimentação institucional envolvida, a herança continental de desigualdade permite vê-la como fatal e, ao cabo, positiva. Quando nada, os casos atuais não apresentam algo que as análises clássicas do antigo populismo latino-americano destacavam, ou seja, o fato de que os líderes que apelavam às massas eram figuras de elite, dando saliência ao elemento de manipulação e fraude que o rótulo de “populismo” costuma carregar: ressalte-se que temos tido redistribuição econômica real, mesmo que incipiente, nos países “populistas” de agora, e que o apoio à democracia tem crescido neles juntamente com a redistribuição. E é bem claro que o “modelo” lulista se afasta dos traços mais problemáticos dos outros casos, prescindindo da retomada anacrônica da retórica socialista e orientando-se, ao contrário, de modo que favorece a inserção internacional propícia do país.

CULT – Diante de acontecimentos como Guantánamo e mesmo a precarização ética que se observa no comportamento do atual presidente da Itália, o senhor acredita que vivemos uma crise de determinação de sentido, talvez uma falência conceitual, de democracia?
Michael Löwy – O que aconteceu nos Estados Unidos na era Bush foi um completo esvaziamento da democracia, da qual só  ficou a casca formal, sem nenhum conteúdo democrático verdadeiro. Guantánamo foi a manifestação mais evidente disso. Na Itália e em vários outros países da Europa assistimos a um monopólio oligárquico do poder de uma máfia capitalista controlando os meios de comunicação e impondo sua vontade sem nenhum respeito pelas liberdades democráticas. Mais uma vez se observa a regra de que o capitalismo não tem nenhuma afinidade com a democracia, só tolera certas formas democráticas na medida em que não afetam seus interesses fundamentais.

Fábio Wanderley Reis Creio que Guantánamo sugere coisas muito mais importantes a respeito do que as deficiências éticas de um Berlusconi. O edifício institucional da democracia deve poder prescindir da virtude dos agentes e ter condições, ao contrário, de processar institucionalmente o comportamento aético, como propõe, em particular, a perspectiva dos “pais fundadores” da democracia dos Estados Unidos. Mas o que Guantánamo e coisas correlatas representam é algo que compromete diretamente as próprias instituições da democracia, com base na ideia do “Estado de exceção” e das restrições ao Estado de direito que ele supostamente justificaria. Acho muito preocupante que mesmo um líder com a sofisticação e o perfil singularmente positivo de Obama não possa senão acolher prontamente as restrições contidas no papel de “comandante em chefe” que o militarismo estadunidense impõe ao presidente do país, sendo levado já a tomar posse com uma “guerra de Obama” a ser vencida e não só a recuar da disposição de garantir os direitos individuais dos alcançados pela “guerra ao terror” de Bush, mas também a ter seu governo recorrendo a retórica análoga à dos israelenses em Gaza a propósito de ações militares norte-americanas no Afeganistão e tratando como irrelevante, no limite, o fato de que bombardeios norte-americanos matem mulheres e crianças.

CULT – É possível uma democracia plena em um país de capitalismo semiperiférico e com um nível de desigualdade social como o Brasil?

Renato Lessa – Na verdade, o que hoje definimos como “democracia” só foi possível em sociedades de tipo capitalista, mas não necessariamente de livre mercado. De modo geral, a democratização das sociedades impõe limites ao mercado, assim como desigualdades sociais em geral não contribuem para a fixação de uma tradição democrática. Penso que temos de refletir um pouco a respeito do que significa “democracia”. Para mim, não se trata de um regime com características fixas, mas de um processo que, apesar de constituir formas institucionais, não se esgota nelas. É tempo de voltar a Espinosa e imaginar a democracia como uma potencialidade do social que, se de um lado exige a criação de formas e de configurações legais e institucionais, por outro não se pode parar.

A democratização no século 20 não se limitou à extensão de direitos políticos e civis. O tema da igualdade atravessou, com maior ou menor força, as chamadas sociedades ocidentais. Em outros termos, o socialismo foi – e deverá ser, sustento eu – uma força fundamental na democratização de sociedades que, embora não socialistas no sentido expresso nas cartilhas, acabaram por adotar valores, instituições e políticas de solidariedade e de equidade social. O estado social dos anos 1950 a 1970 resulta dessa incorporação de perspectivas igualitárias. Gosto de dizer que em vários países ocorreu um “efeito esquerda” e, se não tomou o Palácio de Inverno, introduziu limites ao mercado e fixou em nosso mapa civilizatório o caráter inegociável da igualdade como valor.

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