A defesa da democracia e o programa da esquerda

A defesa da democracia e o programa da esquerda
Bolsonaro quer dar um golpe à moda antiga e a parte da elite que o confronta procura forma jurídica para depô-lo (Agência Brasil)

 

A eleição de Bolsonaro e, principalmente, o seu governo representam uma reação, à direita, à ordem institucional da Nova República. O marco e o eixo do arranjo que organizou o país após a redemocratização foi o da Constituição de 1988. Alcunhada de Cidadã, jamais cumpriu a promessa de enfrentar os graves problemas estruturais herdados da ditadura militar – e, mais amplamente, da nossa história nacional. Em três domínios específicos esta ordem institucional atual é muito precária: econômico, político e social.

Na dimensão econômica, o país experimentou três grandes processos ruinosos. Baixíssimo crescimento, desindustrialização e declínio da produtividade – com exceção do núcleo moderno da agropecuária. Na dimensão política, tivemos a consolidação do presidencialismo de coalização com o predomínio, até 2018, de três partidos, PT, PSDB e PMDB, num regime marcado pela presença de um Estado incompetente, um regime federativo incapaz e um crescente incremento da interferência do poder judiciário na vida social e política (mas omisso na economia, consentâneo com a sua mediocridade). E na dimensão social, o predomínio da ideia falsa de “inclusão” sem alteração do fulcro causal da exclusão, a nossa indecente desigualdade.

Passados um ano e meio de governo Bolsonaro, é possível discernir sua agenda reformista. Em economia, foi aprovada uma reforma da previdência – necessária em função da transição demográfica do país, mas cujo ônus do ajuste recaiu exclusivamente sobre os trabalhadores. Esta reforma era apresentada pela elite brasileira, com sua conhecida falta de projeto nacional e fixação em ajuste fiscal, como o principal mecanismo para a atração de investimentos estrangeiros. Fracassou completamente. Os grandes meios de comunicação e os agentes do financismo que fizeram enorme campanha pela reforma não tratam mais do assunto. Na dimensão política, o cenário tem sido o da custosa tentativa de romper com o presidencialismo de coalizão. O presidente vem testando o seu sonho de retorno ao regime da ditadura militar de 1964. E na dimensão social ocorreu um movimento de ressignificação, substituindo o discurso da “inclusão” pela defesa de valores morais vinculados a setores tradicionais da sociedade brasileira, irritados com as pautas do cosmopolitismo “bem pensante”.

A conjuntura transcorria oscilante entre normalidade, disfuncionalidade e tensão até a eclosão da pandemia do coronavírus quando Bolsonaro se opôs frontalmente às orientações de autoridades sanitárias, intensificando o estresse político do país. Desde então, uma série crescente de conflitos, estimulados pelo presidente, passou a antagonizar o poder executivo e os defensores da ordem institucional que sustenta o status quo. Bolsonaro deseja dar um golpe à moda antiga e a parte da elite que o confronta procura forma jurídica para depô-lo, tendo em vista a dificuldade do impeachment, dada a indisposição do parlamento e a cooptação do Procurador Geral da República, Augusto Aras. Mas a despeito do acirramento dos ânimos, um curioso e até agora inabalável consenso sobre a ordem econômica unifica os dois lados do embate. Nem a gravíssima situação da pandemia serviu para alterar a sensibilidade dos contendores em relação aos fundamentos institucionais de nossa economia.

A solidez do programa econômico do establishment pode ser facilmente percebida na concordância entre Paulo Guedes, Rede Globo e boa parte da mídia, Armínio Fraga, ministros do STF, Rodrigo Maia. Até representantes da esquerda convencional são atraídos para o consenso pela concessão marginal de cunho “redistributivista”, feita em nome da lógica da compensação em prejuízo da reorganização da estrutura produtora de exclusões. O amálgama desta aliança é mais de natureza psicológica do que intelectual, até porque a pandemia forçou reorientação, em sentido oposto ao do consenso, nas políticas econômicas na maior parte do mundo.

Mas no Brasil persiste a crença de que experimentar alternativas exige processos para os quais o país não tem preparo nem maturidade, e que, portanto, o mais seguro é fazermos o “dever de casa” sob a orientação cosmopolita das grandes metrópoles, onde está a cabeça de nossas elites. Esse sentimento foi acentuado pela experiência negativa do governo Dilma, confundindo sua incapacidade para realizar uma alternativa com a comprovação da inviabilidade de o país reorganizar institucionalmente sua economia de mercado.

A ameaça bolsonarista à democracia deve ser encarada pela esquerda como uma oportunidade para reorientar sua relação com a ordem pós-88. O primeiro passo implica a compreensão clara de que parte da vitória eleitoral de Bolsonaro representou um repúdio à incapacidade da Constituição de melhorar substantivamente a vida da maioria dos brasileiros. Trinta e dois anos são suficientes para enxergar sem rodeios que o Brasil continua sendo um país majoritariamente constituído por subcidadãos. Subcidadãos que divergem do que pensa a elite e a classe média “civilizadas” sobre as políticas públicas destinados somente a eles, já que classe média e elite fazem de tudo para fugir daquelas políticas.

A esquerda precisa entender que sua principal tarefa é prover capacitação habilitadora para transformar a experiência rotineira da maioria dos brasileiros, uma mistura de humilhação, bloqueio e batalha. O espírito da ação do Estado junto à maioria deve ser o de ajudar a reagir às circunstâncias, ser agente e ter condição de inovar. A massa pobre e trabalhadora até aceita o “pobrismo” como mal menor, mas seu horizonte de expectativas já se transferiu do espírito caridoso do catolicismo para o da autoconstrução individual do pentecostalismo.

Nas circunstâncias do Brasil atual, a educação, entendida como preparo efetivo dos brasileiros, é a esfera mais importante pensada no bojo de uma grande virada em termos de projeto de desenvolvimento, que não temos há muito tempo. Mas, para cumprir esta tarefa, o centro da discussão deve se deslocar da ideia de “inclusão” quantitativa num sistema incapaz de ensinar satisfatoriamente, para o da reorganização da estrutura institucional que sustenta o sistema, onde a ênfase será na qualidade. Ao invés de se preocupar com a demanda, como na Nova República, focar na oferta. Essa reorientação tem dois grandes obstáculos: 1) custa muito dinheiro e nossa elite não vislumbra apoio a projetos arrojados, como se em matéria de educação o estilo de política pública “redistributivista” pudesse funcionar no Brasil; 2) custa muito conflito político para mudar a estrutura imprestável, enfrentando sindicatos de professores e funcionários que agem em defesa de seus interesses muitas vezes chocando-se aos interesses dos alunos e da sociedade, sendo geralmente contra processos de mudança.

Sem a conexão programática com a maioria, a defesa da democracia como sistema político preferível à ditadura fica muito fragilizada e a esquerda vira refém do centrismo inconsequente. Para não aparecer aos olhos da maioria como ilusionista (mesmo que bem intencionado) ou extravagante (defensor de minorias cujas questões e vocabulários são amplamente rechaçados pelos seus supostos beneficiários), a esquerda não pode mais contemporizar com o regime de rentismo “redistributivista” – e seu sócio menor, o corporativismo – que afundou o país na Nova República.

Carlos Sávio G. Teixeira é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).


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