De Jean para Jean

De Jean para Jean
O autor haitiano Jean D’Amérique (edouard caupeil/divulgação)

És o andante, o caminho
E és o único destino.
Neste caminho, que é o teu,
Não te percas, não te desvies.”
Suhrawardi, em O faminto, Nahal Tajadod

Estamos todos aí, no meio do caminho dessa vida vinda antes de nós.
Estamos todos no meio. Quem chegou e quem faz tempo que veio,
ninguém no início ou no fim.”
Arnaldo Antunes

O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui.”
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Querido Jean D’Amérique,

Escrevo-te de São Paulo, cidade onde vivo hoje, mas trago em mim Alagoinhas, no interior da Bahia, onde nasci em 1974. Tu nasceste 20 anos depois, em Porto-Príncipe. Entre nós, o Atlântico e um intervalo de tempo, mas também uma ferida comum: a colonização, a escravidão e seus fantasmas ainda vivos. É estranho e bonito te escrever esta carta sem nunca termos lido um ao outro – ao menos até aqui. Nossos nomes se encontram antes de nossos livros, e esse “Jean” que partilhamos também vem da colonização e, mais fundo, de São João Batista, figura bíblica do anúncio e do deserto.

Li tuas peças Ópera poeira e A catedral dos porcos [publicadas em volume único pela Ars et Vita, com tradução de Prisca Agustoni] como quem reencontra uma voz que, embora estrangeira, me soava familiar. Em A catedral dos porcos, percebi um templo profanado por corpos famintos, híbridos, humanos e animais misturados na mesma lama. A fome geme sob a pele, e nem a reza apaga o cheiro do sangue, escreve uma de tuas personagens – uma linha que atravessa o leitor como atravessa a cena. A alegoria é feroz: a catedral, que deveria abrigar o sagrado, se transforma em palco da degradação coletiva, mas o horror que denuncias carrega, paradoxalmente, uma centelha de redenção.

Já em Ópera poeira, a cena se passa no silêncio e na ruína: Cantamos para que as cinzas se lembrem de que um dia foram fogo. Poeira que sufoca e, ao mesmo tempo, revela o desejo obstinado de existir. Essa ópera feita de restos, de fantasmas, de vozes quase apagadas, ergue com palavras um lamento e uma esperança – canto fúnebre e resistência. Vi ecos desse repertório cultural que me atravessa – do candomblé aos becos da cidade – emergirem também nas tuas duas peças.

Enquanto lia, recordava meus contos de O anonimato dos afetos escondidos, escritos sobre Salvador, a cidade mais negra fora da África. Também ali a violência colonial ainda pulsa, ainda produz hierarquias e apagamentos. Nossos textos, embora distintos, se encontram neste gesto de dizer o indizível: dar corpo e voz aos que a História tentou enterrar no silêncio. Tuas personagens, como as minhas, são pobres, pretas, periféricas, às vezes quase brancas; são LGBTs, crianças, mães, exilados – todos atravessados por um mundo que insiste em lhes negar humanidade. Porém, tanto na tua escrita quanto na minha há algo que resiste: um resto de beleza, uma fagulha de desejo, um humor que sobrevive à tragédia.

O verso de Caetano e Gil que cito na epígrafe desta carta vem de um rap composto por esses dois pais fundadores da música popular brasileira. “Haiti” trata da violência racial que ainda grassa no Brasil, em particular em Salvador, cidade da qual também sou cidadão. A música nos convida a subirmos no adro do casarão colonial onde hoje funciona a Fundação Casa de Jorge Amado e vermos, do alto, a hierarquização da violência policial a partir do colorismo que marca a população da capital baiana. Imagino que tu saibas: Jorge Amado é um dos grandes medalhões da literatura brasileira e, sobretudo na fase menos panfletária, ajudou a compor a Bahia mítica, com olhar generoso sobre as resistências populares e os milagres que ocorrem nos terreiros de candomblé. O mesmo repertório ancestral – e também o dos próprios colonizadores, afinal falamos e escrevemos na língua deles que hoje é nossa – se insinua em tua dramaturgia.

Também sou artista visual. E acredito que essa necessidade de atravessar linguagens – de escrever, de pintar, de falar, de encenar – nasce justamente do que o colonialismo, a escravidão, o classismo e a homofobia recalcaram nos que vieram antes de nós e, portanto, em nós. O que nos foi negado por séculos retorna como urgência expressiva e se multiplica em talentos que desafiam fronteiras entre as artes. O talento da tua dramaturgia é inegável; e este sujeito que te escreve, que ama o teatro, ainda não teve a coragem de publicar nenhuma de suas peças – embora já tenha visto discursos seus (meus) encenados. Quem sabe um dia eu dirija uma peça tua antes de publicar uma minha? Seria uma bela ocasião para que nosso encontro aconteça também no palco.

Não te escrevo para me louvar em ti nem para te louvar em mim. Escrevo para reconhecer no teu gesto aquilo que já estava em mim e que estará, espero, em outros depois de nós. Escrevo para afirmar que nossas vozes, ainda que nascidas em geografias e tempos distintos, são ecos de um mesmo trauma histórico e de uma mesma potência criadora. Somos, cada um à sua maneira, filhos de um Haiti que é e não é aqui. A frase de Caetano e Gil nunca me pareceu tão verdadeira: o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui.

Talvez o que nos una, Jean, não seja apenas o nome ou a origem comuns de nossas feridas, mas a escolha de fazer da linguagem um corpo insurgente. Tu escreves em francês e em crioulo; eu, em português e na cadência da música popular brasileira. Tu misturas teatro, poesia e rap; eu cruzo prosa, ensaio, música – e, agora, artes visuais. Ambos, em alguma medida, buscamos nos reinventar na intersecção entre o sagrado e o profano, entre a violência e o afeto, entre o lamento e a festa.

Escrevo-te, mas também escrevo a quem me lê: que encontrem na tua arte – e, quem sabe, na minha – o convite para habitar um lugar incômodo e necessário, onde o horror do passado se revela presente, mas onde também lateja o sonho de futuro. O meio do caminho, como disse Arnaldo Antunes: estamos todos no meio, ninguém no início nem no fim. Talvez por isso, nossas obras se encontrem no entrelugar, nesse “meio” em que a dor e a beleza coexistem e anunciam que outra história ainda pode ser contada.

Com afeto e reconhecimento,

Jean Wyllys

Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Autor de Falsolatria (Nós e Edições Sesc São Paulo, 2024), entre outras obras de não ficção. Acaba de lançar o livro de contos O anonimato dos afetos escondidos (Tusquets, 2025)

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