Daniel Rezende: “O Filho de Mil Homens me deixou fora da minha zona de conforto”

Daniel Rezende: “O Filho de Mil Homens me deixou fora da minha zona de conforto”

Daniel Rezende é um dos únicos brasileiros indicados ao Oscar. Foi em 2004, pela montagem de Cidade de Deus. Hoje, aos 50 anos, abandonou a montagem e já tem uma sólida (e diversa) carreira como diretor – de Bingo aos infantis da Turma da Mônica. Seu filme mais recente é também o mais grandioso – O Filho de Mil Homens, adaptação do livro homônimo do escritor Valter Hugo Mãe, que está na Netflix. Daniel leu o romance em 2020, durante a pandemia, e se encantou pelo texto poético do autor. Quando soube que os direitos do livro já haviam sido comprados para uma adaptação brasileira, se ofereceu para dirigir o filme, que tem Rodrigo Santoro encabeçando um elenco formidável. Ele recebeu o repórter Miguel Barbieri para um bate-papo num café no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde reside há mais de dez anos.

Você concorda que O Filho de Mil Homens é seu filme mais ambicioso?
Com certeza, foi o filme que me deixou mais fora da minha zona de conforto. Eu sempre busco projetos que eu não tenho a menor ideia de como eu vou fazer porque, se eu sei, não tenho a menor vontade de realizar.
Bingo, de 2017, era um projeto muito ambicioso porque foi meu primeiro filme como diretor. Turma da Mônica – Laços, de 2019, também tem seu lugar de ambição. O Filho de Mil Homens é meu trabalho artístico mais maduro e ousado. Eu gosto de fazer um cinema que tenha profundidade dramatúrgica aliado à boa qualidade de realização e que, ao mesmo tempo, sejam espetáculos cinematográficos. É um filme mais poético, mais silencioso, que exige mais do espectador, mas, tampouco, é um filme nichado ou hermético. Ele vai totalmente na contramão do que se está produzindo no cinema brasileiro e, principalmente, na Netflix.

Como foi a aceitação da Netflix ao projeto?
Antes da Netflix, preciso mencionar as produtoras Biônica Filmes e a Barry Company, que acreditaram que o livro poderia se tornar um filme relevante. E a Netflix topou a ousadia de investir e acreditar num projeto que é muito diferente do que eles têm produzido. A plataforma tem filmes de comédia, de ação, de true crime, mas
O Filho de Mil Homens alarga a diversidade, o que é ótimo para o mercado brasileiro.

Estou certo em dizer que O Filho de Mil Homens é o primeiro filme brasileiro mais intelectualizado ou menos popular produzido pela Netflix?
Acredito que sim porque a Netflix queria mesmo algo mais autoral e, para que as portas se abram para esse tipo de cinema, é preciso que ele vá muito bem na plataforma. Entre as produções brasileiras da Netflix, a gente encontra comédias, ficções científicas, dramas românticos, como
Caramelo, mas só O Filho de Mil Homens estreou no cinema, o que é um bom indicador. Como é um filme com o selo Netflix, tive que apresentar e aprovar tudo com eles, desde o roteiro até o elenco. Mas eu tive autoria e liberdade.

E como está sua expectativa em relação à audiência?
Caramelo, por exemplo, foi um sucesso no mundo todo. O cinema brasileiro está em alta e, talvez, um filme puxe o outro. Eu sei que O Filho de Mil Homens não é um filme para todo mundo, mas quem gosta de um cinema mais poético, mais contemplativo, a chance de o público gostar é grande.

Como foi a escolha do casting, que mistura grandes nomes, como os de Rodrigo Santoro e Johnny Massaro, como atores pouco conhecidos?
Enquanto eu escrevia o roteiro, eu pensei no Rodrigo Santoro porque ele fez uma participação no filme
Turma da Mônica e eu queria trabalhar novamente com ele. Além de ser um patrimônio cultural do Brasil, o Rodrigo é sensível, gosta da arte, do afeto e é muito dedicado. Eu mandei o roteiro, ele disse que queria fazer, mas não tinha a menor ideia de como construir o personagem. E, realmente, o Crisóstomo é um personagem difícil. O filme flerta com a fábula e o realismo mágico e para o Crisóstomo virar um estereótipo era muito fácil. A gente precisava humanizar o personagem. O Johnny Massaro também já estava na minha cabeça. Também queria trabalhar com a Grace Passô. Para o restante do elenco, foram feitos testes e o que me conquista, à primeira vista, é o olhar do ator.

Valter Hugo Mãe disse que o filme ficou melhor do que o livro. Concorda?
Eu não fiquei triste com esse depoimento dele. O filme foi feito com carinho, dedicação e respeito à obra e meu desejo era agradá-lo. Eu encontrei com ele só duas vezes, antes da Flip, em agosto de 2025, e Valter escolheu não participar da adaptação. Disse que sabia escrever livro, mas não sabia fazer cinema. Achei bastante generoso.

Você fez muitas mudanças do livro para o cinema?
O filme aposta mais no silêncio, me distanciei das palavras do Valter e deixei menos verborrágico. Transformei a poesia literária em poesia visual. Tirei personagens, mas criei um passado para o Crisóstomo, algo que não existe no livro. Acredito que o filme seja uma leitura pessoal minha.

Por ter no filme tem um personagem homossexual e uma mulher com nanismo, houve uma preocupação de ter uma consultoria para não retratar as minorias de maneira equivocada?
O filme trata de homofobia, machismo, capacitismo, de vários tipos de preconceito e, durante a criação do roteiro, eu chamei pessoas com nanismo, por exemplo, para saber o que as incomodava. Convidei também diretores da comunidade LGBTQIA+ para ler o roteiro e saber se o personagem estava bem representado. Houve um trabalho muito grande de humanizar essas personagens.

Ficou frustrado de o filme não ter sido o escolhido para representar o Brasil no Oscar 2026?
Tem coisas no mercado de cinema que são inexplicáveis. Eu, acho, por exemplo, um absurdo premiar
Oppenheimer com o Oscar de melhor filme, já que ele vangloria o homem que criou a bomba atômica. Às vezes, você tem o filme certo no momento errado. Meu filme poderia ser lançado em janeiro e entrar na seleção para o Oscar 2027? Poderia. Mas ser diretor de cinema é lidar com as frustrações. Então, eu prefiro ver de outra maneira. Estamos em 2025, lançando um filme artístico, poético, que fala de acolhimento, de pertencimento, e é lançado pela Netflix mundialmente. Isso já é uma conquista muito grande.

Como foi ser indicado ao Oscar, aos 28 anos de idade, pela montagem de Cidade de Deus?
Cidade de Deus foi o primeiro filme que eu montei. Até então, só tinha montado comerciais e videoclipes. E eu achava que ninguém iria ver porque achava violento e, naquela época, a gente estava na retomada do cinema nacional. Mas eu nunca fiquei tão feliz de estar errado. Eu cresci em Guarulhos e ficava na fila do cinema para ver filmes dos Trapalhões. Como poderia imaginar que, um dia, eu seria indicado ao Oscar? Era algo muito fora da realidade. Ao mesmo tempo que soube da indicação, descobri que iria ser pai e isso me ajudou a não cair no deslumbramento.

O que aconteceu com sua carreira após o Oscar?
Fui chamado para fazer a montagem de um filme da franquia Star Wars, de A Supremacia Bourne e até o diretor Terrence Malick me convidou duas vezes antes de eu, finalmente, conseguir montar para ele A Árvore da Vida. Eu escolhi não morar nos Estados Unidos, talvez porque o garoto de Guarulhos não queria ser montador para o resto da vida. Demorou alguns anos, mas consegui construir minha carreira como diretor. E, mesmo sendo um diretor que faça sucesso, você sempre tem que recomeçar do zero no próximo projeto. O primeiro Turma da Mônica fez 2,2 milhões de espectadores e a gente não conseguia financiamento para o segundo filme, tanto que acabamos fazendo com 70% do orçamento.

Eu acho que o Brasil tem carência em algumas áreas de cinema, como em roteiro, e me dá a impressão de que todo estudante de cinema quer ser diretor. Concorda?
Eu acho que é uma verdade, mas não uma verdade absoluta. Todo mundo quer ter autoria, o que é normal. Eu vejo pessoas estudando e se apaixonando por outras áreas. Eu queria contar histórias e fui muito feliz como montador, mas chegou uma hora em que não dava mais para ficar numa sala sozinho olhando para um monitor. E, é claro, existe o glamour de ser diretor, sem saber que são grandes a ralação e a frustração.

Você acha que esse atual boom do cinema nacional vai permanecer?
O nosso mercado tem uma dificuldade muito grande de pensar a longo prazo, de fazer um planejamento, porque a gente não consegue conversar sobre o que é fazer uma economia criativa no país. Quando a gente implode o nosso mercado cultural, a gente passa a ser colônia de novo. A gente só importa. Eu acho que
Ainda Estou Aqui e O Agente Secreto são casos isolados de sucessos de bilheteria, mas acredito que um filme brasileiro puxa o outro. E ainda existe o preconceito. A gente não conseguiu lidar como nossa questão escravocrata, ainda não sabemos o que somos como país.

Miguel Barbieri é jornalista e crítico de cinema

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