Da religiosidade à responsabilidade

Da religiosidade à responsabilidade

O nome ético de Deus, segundo Emmanuel Lévinas

Rafael Haddock-Lobo

Em 27 de dezembro de 1995, no Cemitério de Pantin, Jacques Derrida dava adeus a Emmanuel Lévinas. Lendo o texto que escrevera ao longo da noite, assim que soube da morte do amigo, Derrida dizia ter de pronunciar uma palavra de adeus, uma palavra a-Deus, para Deus e diante de Deus, tal como o filósofo lituano ensinara. Esta simples palavra, que Lévinas ensinou a pensar de outra maneira, seria a máxima representação da ética, pois é o que, na falta do outro, me obriga a responder por ele, por quem não mais responde. Em outros termos: a ser responsável.

E isso porque, para Lévinas, se toda relação com o outro é marcada pela distância infinita que nos separa, por uma relação abso-lutamente assimétrica, então o que se apresenta no rosto de todo outro que se apresenta a mim, a todo aquele que me convoca à responsabilidade, é justamente essa infinitude, este princípio de alteridade absolutamente outro. Este Todo Outro (que, para Lévinas, nada mais é que o nome ético de Deus) é esta instância misteriosa que apenas me obriga a receber o convite a assumir para mim o compromisso com todo aquele que bate à minha porta.

A tarefa de Lévinas não é nada modesta: a princípio, seu objetivo era o de traduzir para o idioma grego (ou seja, para a linguagem filosófica) certa tradição judaica, mais precisamente aquela marcada pela injunção abraâmica do “eis-me aqui”. Nos termos de Derrida, recebemos uma herança que é da ordem de um “sim incondicional”, um pensamento que pretende abalar o eixo da filosofia e voltá-la à ética.

Crítica ao sagrado

Mas deve-se ressaltar aqui que, pouco tempo mais tarde, a própria palavra “ética” seria abandonada por Lévinas, justamente por ela ainda se referir a uma noção por demais ocidental. É nesse sentido que Lévinas passa a adotar o nome “santo” para significar esta relação com o outro. Isso porque “santidade” (kadosh em hebraico) quer dizer “separação” e passa a configurar a infinita distância que separa o eu e outro, pelo qual sou responsável e obrigado a responder-por. Com isso, ele empreende uma crítica ao que chama de “sagrado”, ou seja, a estrutura religiosa que sacraliza a alteridade e impede uma verdadeira relação com isto que escapa à qualquer estrutura. Na verdade, esta crítica ao sagrado pode ser estendida à qualquer estrutura religiosa, que sempre seria tal aprisionamento, bem como qualquer instituição.

Para o filósofo lituano, como se pode ver em Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (uma de suas grandes obras, junto a Totalidade e infinito), o sentido do pronome “eu”, no acusativo do imperativo abraâmico “eis-me aqui”, remete à responsabilidade pelo outro, mas isso como reflexo do laço religioso entre homem e Deus. Para Lévinas não se pode falar em “eu” senão como uma espécie de “eu convocado” pela própria convocação, à qual só se pode responder “sim”, convocação esta que me obriga a comparecer e a me tornar responsável por este outro que, ao mostrar, já apagou todos seus rastros, sem que eu jamais possa ver sua face.

Nos termos desta outra ética proposta pelo filósofo, seria através de uma certa “economia do rastro” que o rosto do outro aparece a mim. Esta “epifania do rosto do outro” (um rosto sem face, pois representa a face de qualquer outro que me convoque) é o que Lévinas vai chamar do brilho do rosto do outro que, no entanto, não permite que eu o veja senão como um rastro, como momento fugaz que sempre já passou e que nunca pode ser pensado como presença.

Máxima expressão de Deus

Tudo isso pode parecer um pouco estranho ou enigmático. E talvez seja, já que o intuito do filósofo é o de sustentar certo mistério no pensamento, que nunca soube suportar o indizível. Mas se o enfoque deste pensamento, no final das contas, volta-se para a responsabilidade, isso pode ficar mais fácil de se compreender.

Se o que há é uma infinita distância entre eu e outro, então não se pode mais falar de nenhuma espécie de “presença” ou acesso total nesta relação. De certo modo, o que Lévinas quer apontar é que o outro, mesmo nunca estando presente a mim, continua a ser o que me convoca à responsabilidade e ao responder-por. Este princípio de alteridade absoluta (o caráter totalmente outro do outro) que se reflete no rosto de qualquer outro é, na verdade, a máxima expressão de Deus: o Todo-Outro.

E quando Lévinas aponta a este “nome ético de Deus”, ele quer reforçar a idéia de que mesmo Deus deve também ser pensado para além da ontologia (o pensamento do Ser) e da teologia (o pensamento de Deus) e visto sob a égide da ética (o pensamento do Outro). E, com isso, pode-se voltar àquela ótica do rastro que se antecipou: como outro rastro ou, talvez mais ainda, como a -atividade produtora de rastros (sendo o rastro de todos os rastros), Deus também não pode ser pensado nos moldes da presença. E isso a ponto de Lévinas dizer que o que se entende por “ser criado à imagem e semelhança de Deus” nada mais quer dizer que o fato de sempre nos encontrarmos no seu rastro. Para ele, o Deus revelado da nossa espiritualidade judaico-cristã conserva todo este infinito da sua ausência que, como se viu, existe na própria ordem pessoal.

No próprio capítulo 33 do Êxodo já se pode ler algo semelhante: “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode me ver e continuar vivendo”. E Iahweh disse ainda: “Eis aqui um lugar junto a mim; põe-te sobre a rocha. Quando passar a minha glória, colocar-te-ei na fenda da rocha e cobrir-te-ei com a palma da mão até que eu tenha pas-sado. Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, não se pode ver”. Lendo esta passagem, Lévinas vai dizer que se Deus se mostra apenas em seu rastro, o imperativo de “ir na Sua direção” consiste, então, em não em seguir esse rastro, mas sim ir em direção aos outros, aos existentes. Em uma palavra: em vislumbrar o brilho no rosto do outro.

“Meu filho é um estranho”

É assim que, em uma das metáforas mais belas do pensamento levinasiano, o filho aparece como a expressão máxima do aprendizado ético. Ele é o verdadeiro outro, pois é o inesperado, que está além de todos meus planos. Nas palavras de Lévinas, como uma vinda além-do-possível e além-dos-projetos, como se prenuncia na Bíblia quando, em Isaías 49, lê-se que “meu filho é um estranho”.

Mas o fato é que este filho não é apenas um estranho porque não pode ser “meu”, e sim porque esse ente é um eu que também sou “eu”. Haveria uma certa alienação nesta relação de paternidade ou de maternidade, pois o filho é um eu estranho a si, ao mesmo tempo que sou eu me estranhando a mim mesmo nele. Para Lévinas, na paternidade ou na maternidade, o eu liberta-se de si mesmo, sem deixar de ser um eu, porque este outro eu é seu filho. O pai não produz ou causa simplesmente o filho: ser seu filho significa ser um eu no seu filho, estar substancialmente nele, sem, no entanto, nele se manter identicamente. Não há identidade: o filho, como o futuro, é inevitável, desconhecido e inesperado.

Mas isto não desresponsabiliza de modo algum o pai ou a mãe, pois, ainda assim, trata-se de uma escolha, uma decisão. Eu devo escolher meu filho, meu filho que é sempre único, enquanto ele permanecerá sempre exterior a este que o escolheu. E o filho é sempre filho único porque é sempre um filho “eleito”, e só assim o amor do pai ou da mãe realiza a única relação possível com o outro. O que Lévinas quer dizer é que, em alguma medida, todo amor deveria se aproximar deste amor paterno ou materno no qual o filho é único para si porque é único e eleito por seu pai e por sua mãe.

Mas aqui se deveria perguntar o seguinte: porque esta metáfora do filho torna-se tão insistente na ética levinasiana? (E tem-se que se reforçar que se trata de uma metáfora, pois, em outros momentos, como em Humanismo do outro homem, Lévinas vai falar da obra de arte como isto que, de certo modo também liberta o eu de si, por ser algo que vai do eu para o mundo, sem mais ser “posse” do eu.) O filho, ou o terceiro para ser mais fiel ao léxico levinasiano, é a figura mesma da responsabilidade, ponto em que Lévinas quer chegar para, com isso, tornar o próprio pensamento filosófico responsável. Mas como? Se todo filho é filho único, o mundo torna-se então um mundo de irmãos: eu sou único entre meus próximos, como irmão entre irmãos, e eu sou eleito. Em que sentido, dever-se-ia perguntar? Como posso eu ser eleito entre os iguais? Segundo este pensamento, a resposta a esta questão encontra-se no fato de que eu devo manter-me voltado eticamente para o rosto do outro. O que se entende por “fraternidade” é a própria relação com o outro, em que se realiza, ao mesmo tempo, minha eleição e a igualdade entre todos.

 

Ética e justiça

Na ética de Lévinas, o Todo-Outro nada mais é que o fato de que em todo o outro Deus está presente. Diante Dele, todos somos seus filhos únicos, eleitos por ele, irmãos entre irmãos, posto que Sua palavra está presente no rosto de todos e já se encontra, originalmente, no mandamento “ama teu próximo como a ti mesmo”. E isso, nos termos concretos, práticos desta outra ética, que apenas quer despertar a possibilidade da bondade no mundo, diz respeito ao tão falado “amor ao próximo”. Tal amor, o amor a todo aquele que me aparece, é fruto de uma experiência radical como este terceiro levinasiano. É esta experiência radical que se tem do filho (ou da obra de arte) que pode mostrar ao eu a possibilidade da bondade e a urgência da justiça.

E é por isso, finalmente, que a ética delineia seu caminho desta religiosidade (para além da religião) à responsabilidade. A equação desta ética do infinito resulta, então, na sentença de que “a relação com o outro é justiça” – definição esta que será tão cara a Derrida e que possibilitará cada vez mais um tratamento político, a partir desta ética tão difícil e provocadora como nos legou Emmanuel Lévinas.

Rafael Haddock-Lobo é pesquisador pós-doutor da USP e autor de Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas (PUC-Rio/Loyola)

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