Da relação entre os memes de Bom Dia e o ataque a Brasília
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A comunicação política passou por mudanças muito profundas nas últimas duas décadas. Plataformas, bolhas, robôs, algoritmos, lacração, hashtags, emojis e micro-targeting tornaram-se termos mais comuns para entender os processos comunicativos pelos quais se estruturam as disputas de poder na atualidade. Nesse cenário, chama muita atenção o papel que memes adquiriram. Circulando por aplicativos de trocas de mensagens, alimentando interações rápidas e sarcásticas em diversas plataformas e oferecendo expressões partilhadas para emoções, há uma abundância de memes nas conversas atuais sobre política.
Memes são um gênero comunicacional ágil e impactante, com capacidade viral de circulação, apesar da frequente baixa carga informativa. A metáfora empregada pela comunicóloga Anastasia Denisova é bastante precisa nesse sentido: memes são como comida de fast-food, já que vistosos e sedutores, ainda que com baixo valor nutritivo.
Fato é que se tornou quase impensável viver um evento político relevante sem ser inundado por um turbilhão de memes. Durante as eleições, em conflitos bélicos de amplas proporções, em escândalos de corrupção ou em mobilizações políticas diversas, lá estão os memes a processar socioculturalmente temas controversos e ásperos, frequentemente conferindo uma impressão de leveza à sátira mordaz.
Há quem diga que os memes não passam de conteúdo supérfluo e banal. E não estão de todo errado. Mas é justamente porque são aparentemente anódinos é que os memes são capazes de desempenhar múltiplas funções no debate político. Eles podem facilitar discussões ou interrompê-las, alimentar sentimentos de comunidade ou de rivalidade, fazer rir diante do trágico ou nutrir o ódio por certos atores e instituições. Atualizando e ressignificando fragmentos de sentido que são compreensíveis para certos grupos, memes fazem parte da maneira como sociedades contemporâneas tecem a trama de relações sociais que as constituem.
E é um erro pensar que apenas jovens se interessam por eles, como se houvesse alguma barreira geracional. Estudos como os da pesquisadora Kate Miltner, da Universidade de Sheffield, sugerem que determinados memes, como as imagens de gatinhos fofos, são especialmente compartilhados por pessoas mais velhas. Este dado chama a atenção se ladeado pelo recente levantamento que mostrou que os amotinados de 8 de janeiro presos têm, em sua maioria, mais de 40 anos de idade e utilizavam grupos de discussão em serviços de mensageria privada para fortalecer laços.
Nesse processo, é fundamental entender que memes são relevantes não apenas pelas mensagens que buscam trabalhar. Para além de seus conteúdos, eles produzem conexões entre pessoas, e essas conexões têm características específicas.
Chama a atenção, por exemplo, a forma como muitos memes conseguem atravessar as bolhas comunicacionais da atualidade, produzindo algum tipo de terreno comum em uma era de realidades paralelas. Também salta aos olhos a capacidade memética de sustentar redes orgânicas, perenes e consistentes de comunicação.
É justamente este ponto que gostaríamos de sustentar aqui, ao abordar um fenômeno particularmente forte no Brasil: os memes de Bom Dia! Eles são banais e corriqueiros e, precisamente por isso, ocupam um papel muito central na sociabilidade contemporânea. Papel este que ajuda a entender fenômenos bastante complexos do ponto de vista político, como as recentes mobilizações em frente a quartéis.
Todas as manhãs, milhões de brasileiros começam suas atividades recebendo e repassando memes de Bom Dia. As imagens com mensagens motivacionais, passagens bíblicas, fotografias bucólicas, crianças caucasianas, grafismos românticos, motivos florais, xícaras de café e animais fofinhos inundam os smartphones em um fluxo frenético de compartilhamentos orgânicos.
Grupos de família, de condomínio, de trabalho, de amigos, de associações esportivas e de discussões políticas podem ser mais ou menos intensos no intercâmbio de mensagens, mas os memes de Bom Dia são prática das mais recorrentes em vários deles, cadenciando o despertar de muitos dos cerca de 130 milhões de usuários do aplicativo no país.
Aparentemente despretensiosas, essas mensagens têm forte caráter moral e revelam padrões interpretativos profundos da cultura nacional. Elementos religiosos, a centralidade da família, o foco na perseverança individual e o patriotismo atravessam esse fluxo comunicacional delineando os contornos morais do bem viver. Imagens sacras cercadas por borboletas e flores, estradas que sugerem um longo caminho a percorrer, e eventualmente uma bandeira do Brasil “ornam” o desejar cotidiano do Bom Dia. A estética kitsch é apenas um componente retórico desses memes, somada às legendas idílicas e com forte apelo meritocrático. Como se não bastasse, a sistemática mobilização de fluxos discursivos não totalmente explícitos é um recurso político inestimável.
A relevância dessas redes ganha contornos especiais pela dinâmica comunicacional própria dos serviços de mensageria privada, como o WhatsApp, que reforçam rituais comunitários, e ao mesmo tempo favorecem a circulação viral de conteúdos multimodais. O uso do WhatsApp, é importante lembrar, embora atravesse gerações, é notório entre pessoas com mais de 50 anos de idade, como aponta pesquisa nacional recente da TeleHelp.
Durante a pandemia, com o isolamento dos estratos mais vulneráveis, o serviço se tornou ainda mais ubíquo para este grupo demográfico. Ainda que não haja dados sobre isso, a experiência cotidiana sugere que idosos são particularmente ativos no compartilhamento de memes de Bom Dia. Essa é, muitas vezes, a forma como acionam suas várias redes e se reconectam a pessoas diversas. Os memes de Bom Dia cumprem, assim, uma função fática de alimentar a conexão de forma particularmente significativa para pessoas destituídas de outras possibilidades de laço. Eles funcionam como um dispositivo de pertencimento, articulando redes em que pessoas, muito frequentemente solitárias, lembram umas às outras, todos os dias, de sua existência.
Pode soar como uma correlação pretensiosa, mas aí está a articulação entre os memes de Bom Dia e acontecimentos políticos relevantes, como as recentes mobilizações antidemocráticas em frente a quartéis militares. Por anos, tais memes exerceram um papel fundamental na conformação de valores morais conservadores e na estruturação de redes comunicacionais supostamente apolíticas.
Por tais redes circula, hoje, um volume muito grande de anedotas, conteúdos motivacionais, pets fofinhos e… desinformação. Tudo com a proteção do véu da suposta ojeriza à política. Teorias conspiratórias inundam os celulares de gente solitária que aprendeu a se rearticular ao mundo, compartilhados por e para quem não se esqueceu delas, e cotejadas por bênçãos reconfortantes todos os dias. Como não confiar em quem diz querer distância da política e ainda lembra de mim todos os dias?
Memes de Bom Dia foram substrato relevante da construção da infraestrutura comunicacional semi-invisível por onde escoa o grosso da desinformação política. E ainda difundem símbolos pátrios, cristãos, pregam o cuidado familiar, e são adornados por corações, ursinhos e belos crepúsculos.
Vendo as cenas de idosos a chorar e a gritar diante da ação da guarda civil de Belo Horizonte que desmontava o acampamento em frente ao Comando da 4ª Região Militar do Exército, lembramos dos memes de Bom Dia. Há sofrimento real naquela insanidade. Há sofrimento ligado às ansiedades de quem, na sua solidão, erigiu um mundo paralelo centrado no WhatsApp. Há tristeza não apenas pela frustração política, mas fundamentalmente por ver uma realidade se esfacelar.
Qualquer sentença típica dos memes de Bom Dia traria algum conforto. “Deus dá as batalhas mais difíceis aos seus melhores soldados.” “Não tenha medo e nem perca a fé.” Mas elas lhes faltaram. Diante de um mundo que se desintegra, sobra-lhes a dureza do real, com sua capacidade de desestabilização. Faltam, ali, os gatos fofos, as flores e o turbilhão de narrativas que projetam o mundo paralelo a que tantos foram conduzidos.
Ricardo Fabrino Mendonça é professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Viktor Chagas é professor da Universidade Federal Fluminense.