Da matéria dos sonhos

Da matéria dos sonhos
Gabriel Villela investe, em 'A tempestade', em uma plasticidade fascinante (Foto João Caldas Filho)

“Normalmente, a ideia de conter toda espécie de gente em mim mesmo introduz uma vontade de me reconciliar com a natureza e assim alcançar poder sobre ela”
William Empson, a respeito da tradição pastoral

Encenada pela primeira vez na Inglaterra em 1º de novembro de 1611, tendo a corte de Jaime I como plateia, A tempestade – espécie de testamento poético de William Shakespeare (1564-1616) – está construída sobre materiais de quatro tipos diversos. A inspiração principal do texto foram os chamados “panfletos das Bermudas”, que descreviam um fragoroso naufrágio ocorrido naquelas ilhas do Atlântico em maio de 1609. Na ocasião, uma esquadra de nove navios liderada por Sir Thomas Gates e Sir George Summers saiu da Inglaterra rumo à colônia de Jamestown, na Virgínia, mas foi arrastada para as Bermudas antes de chegar ao litoral norte-americano, em virtude de inúmeros reveses causados por uma forte tempestade. Uma carta escrita em 15 de julho de 1610 por William Strachey, a que Shakespeare teve acesso, falava, inclusive, de como os sobreviventes foram hostilizados pela população nativa que habitava o local. Outra fonte da peça é “Sobre os canibais”, o famoso ensaio que Michel de Montaigne escreveu (livro 1, capítulo 30, dos Essais), a partir da leitura de muitos relatos sobre a conquista do Novo Mundo, no qual ele descreve a crueldade dos índios brasileiros, comparando-a, entretanto, à brutalidade dos colonizadores europeus. Assim, a palavra canibal teria inspirado o batismo do Caliban shakespeariano. Não tão diretas como tais referências, mas não menos importantes em sua capacidade de estimular a fantasia do bardo inglês, são as alusões que este faz ao mundo das narrativas clássicas latinas. Entre muitas citações espraiadas ao longo da peça, podemos encontrar referências à Eneida (as primeiras palavras de Ferdinando sobre Miranda – “Por certo essa é a deusa que servem esses ares” – remetem às do protagonista do poema épico de Virgílio) e às Metamorfoses (o discurso em que Próspero anuncia abandonar seus poderes ecoa o da feiticeira Medeia, presente no canto sétimo da obra de Ovídio). Por fim, Shakespeare reaproveita alguns temas de suas próprias obras, como a rivalidade entre irmãos, a usurpação do poder e a maquinação de uma vingança.

A articulação oblíqua de tais fios discursivos em uma peça bastante sintética (uma das mais curtas do cânone: 2.341 versos contra os 3.904 de Hamlet, por exemplo) não diminui sua beleza, acusa somente sua enigmática simplicidade. Razão pela qual não só muito se tem escrito sobre ela, mas também variados têm sido os pontos de vista adotados pelos encenadores que a enfrentam. A mais recente incursão de um diretor brasileiro por esse espécime teatral misterioso e fascinante é a montagem de Gabriel Villela, conduzindo um elenco de enorme talento e destacada capacidade técnica, liderado por Celso Frateschi no papel de Próspero. Ocupando a pequena arena do Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o histórico TUCA, que neste ano completa cinco décadas de uma programação cuja qualidade constitui um verdadeiro oásis para os amantes da cultura brasileira, em meio a tanta aridez advinda da indústria do entretenimento, A tempestade de Villela é daqueles programas imperdíveis e urgentes. Pela plasticidade das formas em que investe. Pela sensibilidade dos conteúdos que veicula. Pela inteligência das ideias que dela emanam.

Gabriel Villela não envereda pelo caminho, hoje óbvio, da leitura ideológica moldada pelos estudos pós-coloniais, que vê na figura de Caliban um aguerrido “herói da liberdade”, para desgosto de Harold Bloom. Embora o teatro seja uma máquina incessável de significados que saltam do palco em direção à realidade social mais ampla, não se pode negar que a causa primeira a que tais significados devem servir é mesmo a causa artística e cultural, a partir de cujo núcleo se pode atingir, obviamente, epicentros políticos, sociais, ideológicos… Inverter tal movimento, entretanto, quase sempre soa equivocado. Assim, as duas grandes qualidades da montagem capitaneada pelo diretor mineiro são, respectivamente, o envolvimento com a forma romanesca da obra e a exploração de seu inequívoco caráter metateatral.

Em relação à primeira dessas características, a despeito de seus contornos tragicômicos (os temas que antes haviam municiado tragédias insuspeitas aqui se convertem na harmonia e na conciliação típicas da comédia), A tempestade não dissimula sua filiação central à tradição do romance pastoril – o que convida o diretor a dar vazão sobre um palco, uma vez mais, a sua portentosa imaginação poética, cultivada pelo convívio com as paisagens mineiras e com o que elas lhe conferiram para o entendimento telúrico do interior do Brasil. Assim, o projeto de Gabriel Villela parece querer atenuar em Shakespeare o registro amargurado identificado por Otto Maria Carpeaux (“Enfim, ‘la vida es sueño’: The tempest ainda é paródia amarga, dessa vez do utopismo renascentista que acreditava em paraísos e só encontrou Calibans”), a fim de fazer sobressair seu tom de utopia campestre. Cenografia, figurinos, maquiagem, música, iluminação, adereços e objetos de arte deixam-se contagiar pela visão idílica de um Brasil de outrora – lírico, sentimental, bucólico, comunal –, entrevista na nobre simplicidade com que se lida com a fábula shakespeariana, extraindo dela uma atmosfera cativante e bastante original.

Chico Carvalho interpreta Ariel, o espírito benfazejo que ajuda Próspero em sua empreitada (Foto João Caldas Filho)
Chico Carvalho interpreta Ariel, o espírito benfazejo que ajuda Próspero em sua empreitada (Foto João Caldas Filho)

Estimulada por um texto cujo registro sensorial é inequívoco, a encenação requisita a todo momento – em igualdade de condições com a visão – a audição do espectador, fazendo com que o belo trabalho musical e vocal construído (a cargo de Babaya, Marco França e Francesca Della Monica) se constitua na expressão física de uma escuta shakespeariana de contornos bem brasileiros. Se Caroline Spurgeon afirma ser a sensação auditiva o símbolo da obra (“É o sentido do som que é assim ressaltado, pois a peça em si é uma perfeita sinfonia de sons…”), a exploração de uma sonoridade brasileira, que passa por canções folclóricas e por Villa-Lobos, evidencia nossa vocação para o romanceiro inculto, cujas marcas de oralidade o aproximam tão bem do cancioneiro popular.

Já, em se tratando da metateatralidade, se constantemente Shakespeare brinda sua plateia com uma peça dentro de outra, em A tempestade ambas se tornam a mesma coisa, levando o espectador a assistir a duas representações simultaneamente: a peça propriamente e a urdidura dramática tramada por Próspero para se vingar de quem o traiu no passado, o que faz com que Northrop Frye afirme “que o teatro é a personagem central em Shakespeare”. Pois bem, Gabriel Villela expande essa natureza metalinguística da obra, fazendo o senso de teatralidade que ele domina tão bem eclodir em múltiplas e variadas direções. Gabriel é dos nossos diretores aquele que talvez melhor encarne o conceito barroco do mundo como teatro, invertendo no palco os polos da realidade e do sonho e às vezes até parodiando a si mesmo. É engenhoso pensar que o casal de enamorados Miranda e Ferdinando, muito bem defendidos por Letícia Medella e Marco Furlan, possa aqui se encontrar com o Romeu e a Julieta do grupo Galpão, ungido pela impostação da voz, pela linguagem corporal, pela imemorial canção Flor, minha flor. Embora não escape a ambos também serem alvo do arremedo – por parte de Caliban, naturalmente – da melodiosa canção que no cinema serviu de trilha para a história dos amantes de Verona.

Para exercitar esse senso de teatralidade vibrante e lúdico é preciso contar, naturalmente, com um elenco inspirado. A montagem serve de homenagem a um ator paulistano talvez “incorpóreo” aos olhos da indústria cultural, e que por isso mesmo emprega sempre seu firme talento a serviço de um repertório teatral de altíssimo nível: Celso Frateschi. O Próspero que ele constrói é tirânico, benevolente, severo, sábio, irônico e lírico na medida certa. Trata-se de um ator de energia criativa pulsante, mas não arrebatada – o que confere a seu estilo de interpretação uma dimensão política muito especial em virtude da inteligente recusa ao personalismo. A dupla de personagens que Próspero encontra ao chegar à ilha, Ariel e Caliban, está muito bem representada pelos talentos de Chico Carvalho e Helio Cícero, respectivamente. O trabalho do primeiro presenteia a plateia do começo ao fim da peça, dada sua magnética presença e a bela expressividade de sua voz. A larga experiência do segundo faz de Caliban o personagem complexo que ele precisa mesmo ser: taciturno e maligno, mas igualmente infantil e medroso. “Nada amando, a tudo temendo”, como lhe caracterizou o poeta W. H. Auden, em O mar e o espelho. Admirável também é o modo como a encenação leva a dupla de personagens Trínculo e Estéfano a se servir, respectivamente, do imenso talento cômico de Dagoberto Feliz e Romis Ferreira. Ambos exercitam um raro tipo de comicidade nos dias de hoje, que troca a histrionice pela alegria, recuperando um veio muito antigo na tradição do humor. Completam o elenco Leonardo Ventura (Alonso), Rogério Romera (Antonio), Felipe Brum (Sebastian) e Rodrigo Audi (Francisco), bastante afinados com a coralidade e a atmosfera lúdica que se pretende alcançar.

O Próspero de Celso Frateschi alterna tirania e benevolência em doses muito bem calibradas (Foto João Caldas Filho)
O Próspero de Celso Frateschi alterna tirania
e benevolência em doses muito bem calibradas (Foto João Caldas Filho)

A presente montagem de A tempestade constitui o retrato de um diretor que parece sempre estar pensando nos tempos de antes de nascer (ecoando a mesma nostalgia de Mário de Andrade), obstinado por uma saudade do Brasil que é alinhavada em cada obra de seu repertório. Aliás, cumpre notar que Northrop Frye atribui ao nome da peça uma rica etimologia, filiando-o tanto ao termo latino tempestas como ao seu derivado francês temps. Próspero e Gabriel Villela seriam, assim, sábios observadores do tempo. Entretanto, a saudade aqui é dinâmica e jovial, não implicando nenhum tipo de tormenta do espírito. Onde outros talvez vejam tempestade e ímpeto o diretor enxerga somente uma tempestade em copo d’água (a expressão é dele mesmo, registrada no programa do espetáculo). Por não levar o maior dramaturgo do ocidente muito a sério é que o diretor é capaz de extrair tantos bons efeitos dessa montagem, prestando um delicioso tributo ao mundo do teatro. Se “a ação de A tempestade parece nos mostrar tanto a ilusão da realidade como a realidade da ilusão” (uma vez mais, Frye), a montagem de Villela nos faz acreditar em uma realidade ilusória dupla: a de um teatro comunal e a de um Brasil paradisíaco. Que ainda nos divertem. E que, por ora, recusamos serem alvos de nossa desilusão.

A TEMPESTADE
Quando:
Até 22 de novembro; sextas às 21h30, sábados às 21h e domingos às 19h.
Onde: Teatro Tucarena – rua Monte Alegre, 1024, Perdizes – São Paulo
Quanto: R$ 50 (sex), R$ 50 e 70 (sáb e dom)
Info: (11) 3670-8453


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