Eliane Potiguara: Antes que tudo em mim se transforme em morte
A escritora Eliane Potiguara (Foto: Alicia Peres/Divulgação)
Ao menos desde 2013, parece-me haver uma inflação no uso do termo resistência. Historicamente, quem mais resiste no Brasil são os negros e os povos originários, junto com pobres, mulheres, pessoas LGBTQIA+, ativistas empenhados e outros grupos. Como aparece a resistência em Metade cara, metade máscara (2004), de Eliane Potiguara?
Na abertura desse livro híbrido – com testemunhos, ensaios políticos, poemas… –, o texto “Invasão às terras indígenas e a migração” parte da fuga e da sobrevivência da esposa e da filha de Sepé Tiaraju, assassinado em 1756, para contar “o início da solidão das mulheres indígenas, motivada pela violência, pelo racismo e por todas as formas de intolerância”.
Por meio da cena prototípica, outras a desdobram em uma história continuada de invasões territoriais, assassinatos, incêndios de pessoas vivas, casas e florestas, desaldeamentos, escravizações, contágios por doenças letais, destruições do sagrado, contaminações de rios, migrações, separações familiares, estupros, perdição nas cidades, alcoolismo, suicídios, loucura, prostituição, tráfico de mulheres e os mais diversos tipos de violações.
A história de Marina (esposa de Sepé Tiaraju) e de sua filha é paradigmática por mostrar-se singular e coletiva: a emigração da viúva e da menina dá visibilidade ao que ocorreu com tantas outras indígenas ao longo dos tempos. Ela serve para Eliane Potiguara introduzir sua história familiar, em uma mise en abyme de uma comunidade repetidamente violentada, com um caso “comum a milhares de brasileiros, migrantes indígenas”.
Se o poema “Migração indígena” afirma “Ah!… Não sei mais continuar esses cânticos/ Porque a mim tudo foi roubado”, como é possível testemunhar? Hoje, para esses povos, cantar ou testemunhar é o mais difícil, já que a “maioria de famílias indígenas violentadas, que continuam em aldeias indígenas ou que fazem parte das famílias desaldeadas ou desestruturadas, permaneceu calada, enferma, enlouquecida, isolada na sociedade envolvente. Famílias silenciadas pela pressão política, social e econômica ou por desconhecerem seus direitos ou, até mesmo, por vergonha”.
A necessidade de tais histórias se deve ao apelo a formar comunidade: com elas, outros relatos vêm à tona. Nesse estímulo à fala das mulheres, como posto pelo poema “A denúncia”, descobre-se o que as impede de falar e o que as autoriza a fazê-lo: “Ó mulher, vem cá/ Que fizeram do teu falar?/ Ó mulher conta aí…// Conta aí da tua trouxa/ Fala das barras sujas/ dos teus calos na mão/ O que te faz viver, mulher?/ Bota aí teu armamento./ Diz aí o que te faz calar…/ Ah! Mulher enganada/ Quem diria que tu sabias falar?!”. Quem perdeu a fala é incitada tanto a denunciar a violência que a obrigou a se calar quanto a dizer o que a faz viver, dando um testemunho do “sofrer todas as dores que uma mulher pode sofrer”.
Em decorrência do testemunhar, a mulher levada a desaprender a falar transforma a dor da obrigatoriedade do calar na retomada de uma sabedoria paciente e profunda. Tornar-se testemunha é uma conquista da importância de tal acontecimento também para constituir um “inquérito” que, jurídica e politicamente interventivo, consiga “resgatar a dignidade e a cidadania dessas famílias vítimas de racismo, exploradas e escravizadas por processos colonizadores em todo o território nacional, assim como também o foram os Povos Ressurgidos e os Quilombolas”.
Enquanto, no livro, há o poema “Identidade indígena”, acrescido da dedicatória “Em memória de meus avós, escrito em 1975 (Versão indígena)”, em anos posteriores ele aparece intitulado “Em memória do índio Chico Solón” (com o qual a poeta participa da primeira Antologia poética Cult), trazendo uma nota que estabelece o poema como testemunho: “O texto é o testemunho das lágrimas de uma indígena vendedora de bananas, sua avó, a refugiada Maria de Lourdes de Souza, filha do índio Chico Solón, desaparecido das terras indígenas paraibanas por volta de 1920, quando se instalava ali a neocolonização da agricultura algodoeira causando a fuga de famílias indígenas, oprimidas pela escravidão moderna”.
A alternância do título de “Identidade indígena” para “Em memória do índio Chico Solón” sugere que o dito sobre Chico Solón é, assim como a história de Sepé Tiaraju e seus parentes, paradigmático por caracterizar o que se passa com grupos identitários indígenas na história brasileira. Subposto a “Em memória do índio Chico Solón”, o título “Identidade indígena” se faz necessário pela ameaça constante da “identidade perdida” (outro poema da coletânea).
Pai de três meninas, Chico Solón foi assassinado por uma família colonizadora inglesa ao defender terras dos povos tradicionais no Nordeste, o que levou as filhas a migrarem para Pernambuco. Como outras indígenas, uma dessas filhas, Maria de Lourdes, foi mãe solteira aos 12 anos, vítima de estupro “por colonos que trabalhavam para a família inglesa, que escravizava a população indígena no plantio do algodão”.
As quatro migraram para o Rio de Janeiro “em um navio em condições subumanas que trazia nordestinos, indígenas e negros para o Sul do país”. Chegando sem qualquer dinheiro, ficaram nas ruas. Quando Maria de Lourdes arranjou trabalho, moraram no Mangue, zona de prostituição da cidade. Sua filha, Elza, teve um casal de filhos, que não conheceram o pai, logo morto.
Como Elza era faxineira, sua mãe criou a neta, mantida reclusa por proteção às ameaças do bairro e preservação da tradição indígena no núcleo familiar. Essa menina é Eliane Potiguara, bisneta de Chico Solón, que se tornou professora, casou-se com o músico Taiguara e, quando a avó morreu, rumou ao Nordeste para conhecer a “verdadeira história” de sua família. Assumindo a herança de toda uma vida, abraçou o território ancestral e ingressou no movimento indígena, conscientizando-se de que há “O segredo das mulheres”, como no poema dedicado “À amada tia Severina, índia Potyguara, grande anciã guerreira que muito me incentivou e me amou com a força da mulher indígena”: “No passado, nossas avós falavam forte/ Elas também lutavam/ Aí, chegou o homem branco mau/ Matador de índio/ E fez nossa avó calar/ E nosso pai e nosso avô a abaixarem a cabeça./ Um dia eles entenderam/ Que deviam se unir e ficar fortes/ E a partir daí eles lutaram/ Para defender sua terra e cultura./ Durante séculos/ As avós e as mães esconderam na barriga/ As histórias, as músicas, as crianças,/ As tradições da casa,/ O sentimento da terra onde nasceram,/ As histórias dos velhos/ Que se reuniram para fumar cachimbo./ Foi o maior segredo das avós e das mães./ Os homens, ao saberem do segredo,/ Ficaram mais fortes para o amor, lutaram/ E protegeram as mulheres./ Por isso, homens e mulheres juntos/ São fortes/ E fazem fortes os seus filhos/ Para defenderem o segredo das mulheres./ Pra que nunca mais aquele homem branco/ Mate a história do índio!”.
Quando usada, a palavra resistência se impõe como uma ação diante da exposição contínua dos indígenas a todo tipo de violência: “Durante o processo de escravidão indígena, muitos pais e famílias cometiam suicídio em massa contra essa forma de opressão. Atiravam-se dos penhascos. Isso era um ato de resistência”. Como último e único modo de insubordinação e liberdade, resistir significa, aqui, preferir a morte coletiva à opressão da escravização em vida.
Há ainda a resistência dos que encontram outra saída. Eliane Potiguara afirma que “quase foi morta”, “sofreu humilhações públicas, ameaças de morte, extorsões, inclusive difamação em vários jornais”, “abuso sexual, prejudicando sua imagem moral, afetando seu trabalho, seu estado psicológico e de seus filhos, e prejudicando sua Organização”. Vulneravelmente exposta, no limite da morte, a feminista é uma sobrevivente em luta pela afirmação das indígenas e da vida dos povos originários.
Com a mais firme convicção de que “gritos não podem ir para o túmulo”, a resistência nasce “antes que tudo em mim se transforme em morte”, buscando a consciência dos povos, ações políticas, judiciais e legislativas que lhes sejam favoráveis.
Falando de si na terceira pessoa, ressalta: “Entrou para o movimento indígena, criou políticas de resistência, atuou em um trabalho de campo que beneficiou muitas pessoas, mas esbarrou com a força reacionária, política e econômica do local. Quase foi morta por querer noticiar os fatos arbitrários e trazer a conscientização dos direitos indígenas para o povo potiguara, que, na época, sofria o impacto social e ambiental do arrendamento de suas terras por fazendeiros inescrupulosos que promoviam o racismo ambiental”. Criou ainda o Grupo Mulher-Educação Indígena, ajudou a elaborar a Constituição de 1988, a fundar o Comitê Inter-Tribal 500 Anos, participa do Fórum Permanente para Povos Indígenas da ONU, de onde saiu a Declaração Universal dos Direitos Indígenas, esteve com Lélia Gonzalez em Cuba a convite do Programa de Combate ao Racismo e participou de tantas outras “políticas de resistência”.
Em passagem citada no livro, Olivio Jekupé afirma: “Perdemos nossas terras, a saúde, nossa comida, nossos rios e tantas outras coisas mais, mas uma coisa nós, índios, não perdemos, é a resistência”. Para que se possa permanecer enquanto povo, perde-se tudo, menos a resistência.
Primeira mulher indígena a publicar um livro, em seu volume da coleção Tembetá, ela ensina a todos que hoje nos ocupamos com poesia: “A literatura indígena, na verdade, nunca existiu. Ela não existe, é apenas uma estratégia de luta, um instrumento de libertação, de conscientização. Eu sempre considero que a gente precisou partir para a literatura porque não tinha outros espaços. Estava todo mundo ocupando nossos espaços. Eu vi centenas de pessoas escreverem sobre as lendas indígenas, alterando o conteúdo do texto, o final da história. Escritores que não eram indígenas, que pegavam um mito e alteravam para um texto escrito. Muda tudo. Não pode ser mudado. Aquilo é feito por indígena, alguém tem de defender esse território também”.
Texto publicado originalmente na Cult 254, de fevereiro de 2020.
Alberto Pucheu é poeta, doutor em letras e professor de teoria literária da UFRJ.