O peso do cuidado: a sobrecarga de trabalho das mães na pandemia
"Mulher de fósforos", 1925, Francis Picabia (Foto: Reprodução)
“Desculpa, é que meus filhos estão aqui em casa…”. “Só um minuto, minha filha está pedindo almoço…”. “Desculpa o barulho, é que meu filho está fazendo aulas online…”.
Ao longo desses 14 meses de pandemia, muito provavelmente você presenciou uma mulher em uma reunião virtual, ou em uma aula online, ou em uma live se desculpando por ruídos, interrupções ou súbitas aparições de crianças na tela do computador. Não há motivo para desculpas, afinal, cuidar das crianças é o que suporta a sociedade. Ainda assim, o padrão de “profissional” e “profissionalismo” ignora as responsabilidades com o cuidado, o que ganha amplitude e aumenta tensões em um momento no qual a restrição de contato e as medidas de isolamento sobredosam as relações dentro dos espaços privados e o convívio com núcleos familiares diminutos.
O cuidado, historicamente invisibilizado, tornou-se pauta e mote das campanhas para redução da contaminação pela Covid-19. Mais do que isso, “cuidar” tornou-se uma atividade concentrada sobre as casas e, especialmente, sobre as mulheres, porque as possibilidades de compartilhamento dessas tarefas se restringiram. A sobrecarga das mulheres ficou patente em praticamente todas as esferas: sentimos o cansaço, as inseguranças e a rotina de trabalho quase que infinita, que exige o cumprimento das atividades remuneradas, o atendimento das necessidades da família e a atenção com a casa, com as refeições, com a higiene.
Essa carga de trabalho não teve, nem de longe, o mesmo impacto que sobre os homens. A divisão sexual do trabalho atribui o trabalho doméstico às mulheres, afastando dos homens essas responsabilidades. Não à toa, muitos deles tiveram aumento da produtividade na pandemia e pouco perceberam mudanças na dinâmica das casas.
Abordar o cuidado é fundamental para compreender a sobrecarga de trabalho das mulheres, em especial daquelas que são mães. Ainda que plural, a singularidade das experiências está imersa nas dinâmicas e tensões das relações sociais de gênero, de raça e de classe. Nesse sentido, a maternidade é parte da agenda feminista a partir de diferentes ângulos.
Ser mãe deve ser uma decisão das mulheres, não um destino obrigatório. Isso está na base das reivindicações por direitos sexuais e reprodutivos, nas quais se inclui o direito de parir sem sofrer violência obstétrica. Da mesma forma, a corresponsabilidade pelo cuidado das crianças, com os pais e as políticas públicas, é uma reivindicação para que a reprodução social do trabalho e da vida não recaia apenas nos ombros das mulheres, especialmente das mães.
Poder ser mãe e que seus filhos (crianças, jovens e adultos) permaneçam vivos é uma luta das mulheres negras nas periferias brasileiras, palco de um genocídio em curso contra o povo negro do qual a chacina do Jacarezinho, na última quinta-feira, é o absurdo mais recente. Não é possível falar em maternidade e cuidado no Brasil sem falar em luto, e a generalização desta situação na pandemia evidencia os contornos da política de morte a qual o povo brasileiro está submetido.
A pesquisa “Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela SOF Sempreviva Organização Feminista e pela Gênero e Número, entre abril e maio de 2020, revelou aspectos da realidade vivida pelas mulheres durante a pandemia, em que metade delas passou a cuidar de alguém. Apesar de a crise sanitária ter exacerbado essas responsabilidades e as tensões em torno do cuidado, ele já fazia parte da vida de grande parte das mulheres.
Conhecer a situação anterior à pandemia nos ajuda a compreender os impactos dessa crise e o aprofundamento de desigualdades. O apoio para o cuidado, por exemplo, já era insuficiente, ficando ainda mais reduzido com as restrições sanitárias. Entre as mulheres responsáveis pelo cuidado entrevistadas pela pesquisa, 42% não tinha nenhum apoio além do núcleo familiar. Dentre as que declararam ter apoio, 15% recorria a instituições e equipamentos públicos, na sua maioria mulheres brancas (56%); 12% contratava serviços para o cuidado, a maioria delas brancas (52,5%).
Alternativa para o cuidado são as redes de apoio compostas por outros parentes ou pessoas da vizinhança. Dentre as entrevistadas, 32,4% declararam contar com esse apoio, das quais mulheres negras eram maioria (55,5%). Aliás, mulheres negras também eram maioria (59%) entre as que indicaram que cuidam de crianças de fora do seu núcleo familiar.
Olhar para as experiências cotidianas das mulheres
responsáveis pelo cuidado nos leva
necessariamente à conclusão de que a vida se
sustenta pelas redes de cuidado que as mulheres
criam e mantêm, mesmo na precariedade.
O cuidado atende necessidades cotidianas, que variam de acordo com a idade das crianças. No caso das bem pequenas, a exigência é por monitoramento e atenção permanentes. Para crianças um pouco mais velhas, há a demanda por auxílio nas atividades educacionais. A alimentação, por sua vez, é uma necessidade comum, que passa pela preocupação com ter acesso à comida, pela compra e preparo dos alimentos, pela lavagem da louça e limpeza da cozinha, e pela repetição contínua desse ciclo.
As responsabilidades com o cuidado intensificam as atividades cotidianas do trabalho doméstico. E isso ficou evidente com a pesquisa. Se, em geral, as mulheres consideraram que as tarefas de preparar comida, lavar louças e limpar a casa aumentou durante a pandemia, entre aquelas responsáveis por crianças de até 12 anos foi 10% maior a proporção das que consideram que “aumentou muito” a frequência e intensidade dessas tarefas.
Vale dizer que não apenas as crianças, como também os adultos que vivem no domicílio se beneficiam desses trabalhos. Inclusive, disso depende o aumento da produtividade de muitos homens na pandemia, mencionado anteriormente. A diferença de percepções sobre o home office por gênero vem de antes da crise sanitária, pois o espaço da casa traz elevada carga de preocupação para as mulheres, enquanto os homens conseguem ficar em seus escritórios sem serem “incomodados”.
“Apesar de dividirmos as atividades, eu me sinto mais sobrecarregada pela carga emocional do cuidado com as crianças, especialmente gestão dos conflitos entre elas e uma atenção maior às variações de humor que possam ter. Além disso, minhas duas filhas estão tendo aula pela internet, o que é insano, uma delas tem 7 anos e eu tenho que ficar ao lado dela”. Esse relato de uma das entrevistadas pela pesquisa indica as muitas camadas que revestem o cuidado. Não se trata, apenas, de “fazer atividades”, mas de uma postura atenta, preocupação permanente, da antecipação das necessidades, e isso acumula em uma sobrecarga que afeta os tempos de descanso, os tempos para si das mulheres.
Além disso, a interrupção da frequência à creche e escola teve um impacto significativo no cotidiano das famílias. 72% das mulheres afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia. Isso significa uma sobreposição dos tempos do cuidado e dos tempos de trabalho remunerado, demandando a necessidade de atenção (e disponibilidade) permanente.
A percepção de 61,5% das mulheres é de que a responsabilidade com o trabalho doméstico e de cuidado dificulta seu trabalho remunerado e, para 4% delas, inviabiliza totalmente.
O cansaço à flor da pele ganha contornos ainda mais desgastantes porque vem somado à culpa e a sentimentos negativos, que apesar de fazerem parte do cuidado, a sociedade tenta constantemente esconder, afinal, o estereótipo da “boa-mulher” relaciona o ato de cuidar ao amor incondicional. Por sua vez, o “bom cuidado” muitas vezes é uma idealização a partir de experiências que não correspondem às diversidades e desigualdades entre as mulheres.
Um depoimento da pesquisa evidencia como as desigualdades marcam essa sobrecarga de trabalho das mulheres: “enquanto a classe média posta em seu Instagram como divertir uma criança, como aprender mexer com papel machê, fazer origami, receita de comida pra passar o tempo sem tédio… há pessoas que não conseguem. Nem manter as coisas limpas pois falta água sempre, não consegue acompanhar as aulas das crianças por não ter acesso a internet nem computador em casa…”.
Na busca por soluções a essa sobrecarga, diversos debates e embates revelam a complexidade do tema e questões que vão além do gênero, mas que permeiam marcadores sociais como raça e classe social. Um exemplo envolve as divergências sobre o retorno do ensino presencial nas escolas, que colocam em oposição mães esgotadas com crianças em casa e professoras, muitas das quais também são mães, que exigem segurança da vacina para voltarem à sala de aula. Outro exemplo é a luta das trabalhadoras domésticas por quarentena remunerada, enquanto muitos patrões queriam mantê-las trabalhando sem folga para evitar riscos às suas próprias famílias.
Além das casas das mulheres que podem fazer o distanciamento e trabalhar de forma remota, e das creches e escolas, redes de cuidados muitas vezes ocultas continuam relevantes. É o caso das mulheres que, na vizinhança das periferias, cuidam das crianças em um trabalho que é, ao mesmo tempo, ajuda e fonte de renda. Estas viram a demanda flutuar durante a pandemia, a depender do auxílio emergencial das vizinhas e da necessidade que elas tiveram e têm de sair atrás de emprego e renda.
Portanto, o debate sobre a sobrecarga de trabalho das mães permeia o gênero e outros marcadores sociais, como raça e classe. Suas dimensões tornaram-se mais perversas e exacerbadas na pandemia, exigindo comprometimento político para que consigamos abordar o tema e pensar soluções conjuntas, que necessariamente englobam a responsabilização dos pais pelo cuidado, bem como do Estado, das empresas e da sociedade como um todo.
Cuidar é verbo coletivo e a pandemia mostrou que todos somos vulneráveis e precisamos de cuidado, então é necessário um pacto social em torno do direito de cuidar, de não cuidar e de receber cuidado. Sem isso, nenhuma recuperação econômica será capaz de construir um “novo normal” baseado na igualdade e na justiça social.
Regina Stela Corrêa Vieira é professora da Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina.
Tica Moreno é doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo e integrante da SOF Sempreviva Organização Feminista.