Cruzando fronteiras entre as tradições
Bento Prado Júnior em Maintenon, França, 1972 (Arquivo da família)
Como filósofo, Bento Prado Júnior nunca apreciou muito fronteiras demasiadamente bem estabelecidas entre diferentes domínios. Como demonstrou Paulo Arantes no ensaio a ele dedicado em seus estudos sobre a formação da cultura filosófica da USP nos anos 1960, Bento inicia seu itinerário filosófico procurando relativizar a linha divisória entre literatura e filosofia, mesmo que movido pelo projeto pessoal de conciliar o interesse juvenil pela primeira e o compromisso profissional com a segunda. Após uma tese ostensivamente mais tradicional em história da filosofia dedicada a um filósofo clássico (Bergson) – mas que a um exame mais atento já revelava uma vocação subterrânea para a heterodoxia –, ele dedicaria anos de considerável esforço a Rousseau, um filósofo bem mais fluido na sua tramitação entre os gêneros da escrita (romance, ensaio, dissertação, autobiografia).
Essa atitude manifesta nos primeiros passos de sua carreira intelectual continua a se fazer sentir na sua obra tardia, inclusive na publicação póstuma de seu trabalho inconcluso sobre as formas de expressão da ipseidade que agora vem à luz. Chamam a atenção o cuidado e a sutileza no trato com a filosofia analítica, num filósofo com a formação que Bento recebeu tanto no Brasil quanto na França, inteiramente alicerçada na assim chamada tradição “continental”. A referência aqui é à bipartição tradicional, entre duas culturas filosóficas características do pensamento ocidental ao longo do século 20: a tradição continental europeia, sobretudo francesa e germânica, com sua ênfase na fenomenologia, na hermenêutica e em certa visão da história da filosofia, e a tradição analítica ou “insular” (devido a suas raízes nas ilhas britânicas), mais focada na lógica, na análise da linguagem e na filosofia da ciência. Por mais artificial que seja, essa repartição organizou boa parte do trabalho filosófico durante o século passado e, mais importante talvez, a percepção desse trabalho, de seus agentes e de suas filiações, tanto intelectuais como políticas, com todos os estereótipos que daí resultam (a filosofia analítica como “positivista”, “cientificista” e “conservadora”; a filosofia continental como “humanista”, depois “pós-humanista” e “radical”, etc.). A percepção dessa divisão era tão arraigada, de fato, que deu origem a esforços explícitos para superá-la mais para o final do século, buscando aproximar ciência e fenomenologia, fenomenologia e filosofia da ação, hermenêutica e filosofia analítica da linguagem.
O trabalho de Bento Prado Júnior sobre a ipseidade manifesta notável despreocupação com essa bipartição tradicional. Os personagens centrais das partes efetivamente redigidas do trabalho são luminares da tradição analítica, como Peter Strawson e Gilbert Ryle. Mas estes são abordados desde a perspectiva da sua recepção de uma das realizações má- ximas da tradição continental, a saber, a filosofia transcendental kantiana. Embora a aná- lise dessa recepção seja abertamente crítica, ela jamais a desqualifica. Ao contrário, toma como ponto de partida o reconhecimento de seu valor intrínseco, do qual se espera que possa fazer avançar a reflexão sobre o argumento transcendental e análise categorial em suas repercussões sobre o problema em foco: a significação do si-mesmo e a questão do sujeito na contemporaneidade. Trata-se em suma de avaliar o seu “alcance”, antes de apontar os seus “limites”. Com esse encaminhamento, Bento parece estar se alinhando com os esforços de aproximação entre as duas tradições mencionadas acima – e ele, de fato, as menciona em seu texto. O interessante, contudo, é que essa tomada de posição é bem mais antiga em seu itinerário intelectual e, na verdade, antecede os esforços mais característicos nessa direção encontráveis na literatura, pelo menos até onde é do meu conhecimento. Ela data, pelo menos, da segunda metade dos anos 1970, e está relacionada com outro aspecto da produção de Bento Prado Júnior em que sua aversão a fronteiras demasiado claras também se manifesta, a saber, suas contribuições à filosofia da psicologia e da psicanálise.
A reconstrução do itinerário intelectual e da evolução da obra de um pensador tende a dar a impressão de um percurso lógico, em que as diversas etapas estabelecem vínculos inteligíveis entre si e se justificam mutuamente. Essa aparência, porém, é muito mais um resultado do nosso esforço de compreender e narrar do que do encadeamento dos próprios acontecimentos. Na verdade, a sucessão destes últimos está muito mais na dependência do acaso e das circunstâncias do que normalmente gostamos de admitir. Em outro trabalho (“As ficções do interlúdio: Bento Prado Júnior e a filosofia da psicanálise”), procurei situar o lugar da interpretação filosófica da psicanálise no contexto mais amplo do trabalho filosófico de Bento Prado, tentando mostrar como a posição singular e ambígua da psicanálise no cruzamento entre ciência, filosofia e literatura fornecia uma chave para compreender a relação entre os estágios iniciais e tardios de seu percurso. Ainda acredito que isso faça algum sentido, mas os aspectos acidentais desse mesmo percurso talvez sejam mais úteis para compreender seu interesse pela filosofia analítica.
Após seus anos de exílio na França, nos quais o essencial de seu trabalho sobre Rousseau foi realizado, Bento foi convidado, em 1977, a ingressar na Universidade Federal de São Carlos, convite que aceitou também por razões políticas, porque, na ocasião, seria o primeiro professor cassado pelo golpe militar a ser recontratado por uma universidade pública. Ali, no entanto, não havia curso ou departamento de filosofia. Na verdade, o único curso da área das humanidades na época era o curso de Pedagogia. O ponto forte da UFSCar era a área de Engenharia e Tecnologia, como é até hoje. Bento, então, ingressou num dos Departamentos que se encarregavam da condução do curso de Pedagogia. Havia dois: o Departamento de Tecnologia Educacional, que congregava o pessoal mais estritamente relacionado à área de Educação, e o Departamento de Fundamentos Científicos e Filosóficos da Educação (DEFUCIFE). Este último tinha um pouco de tudo, reunia todos os professores não diretamente vinculados à área de Educação no seu sentido mais técnico; havia sociólogos, advogados, muitos psicólogos e, entre todos esses, também alguns filósofos.
Dentro desse grupo eclético, Bento procurou com quem dialogar e trabalhar academicamente em conjunto. Além dos poucos filósofos de formação, o grupo com melhor formação científica e interesse teórico eram os psicólogos do DEFUCIFE. Com eles, mais o pessoal da filosofia e outros interessados, teve início um seminário regular, que passou por obras clássicas de interpretação filosófica da psicologia. Em entrevistas posteriores, Bento relataria como uma das suas escolhas recaiu sobre o clássico The Concept of Mind de Gilbert Ryle, além das incursões que o linguista francês Émile Benveniste fizera pela psicanálise, entre outros. A escolha fazia sentido: os psicólogos engajados no seminário tinham basicamente uma formação e uma prática de pesquisa comportamentalista, e a proposta de Ryle, assim como sua visão da psicologia, já fora descrita como uma espécie de behaviorismo lógico e filosófico. Desse seminário, resultou a criação do Laboratório de Epistemologia da Psicologia e da Psicanálise, que formalizou institucionalmente as atividades de grupo. Resultou também a coletânea Filosofia e comportamento, organizada por Bento Prado e publicada pela Editora Brasiliense em 1982, em que diversos participantes contribuíram e na qual também alguns dos primeiros trabalhos de Bento sobre a filosofia da psicologia apareceram (“Hume, Freud e Skinner” e “O neopsicologismo humanista” tinham aparecido na revista Discurso em 1980 e dois trabalhos sobre o behaviorismo tinham sido publicados nos Cadernos de Análise do Comportamento em 1981 e 1982). Mais tarde, a criação do Centro de Lógica e Epistemologia e da especialização em Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise na Unicamp contribuiria para colocar também a psicanálise na agenda filosófica de Bento Prado Júnior, com todo o impacto que isso teve no fomento dessa área de pesquisa no Brasil.
Nas mesmas entrevistas em que descreve esses episódios, Bento Prado também aponta que foi aí que se iniciou seu trabalho mais sistemático com a filosofia analítica, seu interesse pelo pensamento de Wittgenstein, com o convite a especialistas da área e a organização de cursos e seminários sobre o tema no recém-criado PPG em Filosofia e Metodologia das Ciências da UFSCar, que iniciou suas atividades em 1988. Mas na coletânea de 1982 já aparecia o trabalho “A imaginação: fenomenologia e filosofia analítica” – depois republicado em Alguns ensaios (1985) –, em que o recurso ao capítulo de Ryle sobre a imaginação no The Concept of Mind permitia uma retomada e uma atualização do trabalho anteriormente empreendido sobre a teoria rousseauísta da imaginação e, antes dele, do diálogo de Bento com a filosofia da imaginação de Sartre. É esse trabalho que reaparece nos esboços do livro sobre a ipseidade que chegaram até nós, assimilado, revisado e expandido para formar o segundo capítulo da primeira parte, “Ryle e o retorno a Aristóteles: o esquecimento de Kant na análise categorial”. Mais uma evidência de que receptividade à filosofia analítica, ainda que crítica, e a disposição para tomá-la como ponto de partida para o que seria seu empreendimento filosófico final têm suas raízes no trabalho com a filosofia da psicologia e da psicanálise que se iniciou no final dos anos 1970.
Essa constatação, por si só, teria ainda algumas lições a dar à filosofia da psicanálise nacional, que se filia às contribuições de Bento Prado, mas que ainda dialoga majoritária e quase que exclusivamente com a tradição continental, sobretudo a de expressão francesa, ignorando valiosas contribuições da filosofia analítica que podem ser rastreadas pelo menos até os anos 1940. Mas é noutra direção que eu gostaria de concluir. A criação do PPG em Filosofia e Metodologia das Ciências na UFSCar abriu espaço também para a filosofia da mente e para a epistemologia das ciências cognitivas – temas caros à tradição analítica –, com as quais Bento tampouco deixou de contribuir, ainda que menos intensamente. Isso transparece no primeiro capítulo da segunda parte de Ipseitas, intitulado “O lugar do cogito na filosofia analítica e nas ciências cognitivas” (além disso, Bento, por exemplo, debateu pessoalmente com John Searle, e uma referência ao mesmo aparece na parte programada, mas não realizada, do livro). Nela, para além da crítica ao naturalismo rasteiro e arcaico de certas versões das cognitive sciences, Bento também se refere ao “evidente interesse (tanto científico quanto filosófico) dessa nova literatura”, e a filósofos como Barbaras e MerleauPonty que buscam “no ser vivo um caminho para superar a oposição metafísica entre o idealismo e o naturalismo” ou que vão “na direção de uma nova ideia de natureza que pode acolher, sem conflito, a ideia de subjetividade ou de ipseidade como algo mais que um mero epifenômeno”. Essa tem sido, precisamente, uma das vertentes de meus projetos de pesquisa nos últimos anos. Embora, à época que Bento elaborava essas ideias, eu fosse seu colega na UFSCar e assistisse ocasionalmente a seus cursos e palestras, passou-me completamente despercebido que pudesse estar perseguindo uma sugestão sua, até pôr de novo os olhos nesses seus manuscritos.
Em seu livro Grande Hotel Abismo, de 2012, Vladimir Safatle republicou como excurso um texto anteriormente publicado num volume em homenagem a Bento Prado Júnior, então recentemente falecido. Ele justificava essa republicação dizendo: “Se foi com surpresa que descobri apenas a posteriori como boa parte das questões que procurava trabalhar estava presente em Bento Prado, foi porque esqueci que a verdadeira influência é algo que trabalha em silêncio. Esse excurso é, assim, uma maneira de reconhecer uma dívida”. É do mesmo tipo de reconhecimento que se trata aqui: homenagear um filósofo retornando mais cuidadosamente a suas sugestões. Em vez do elogio protocolar, a evidência prática e concreta da fecundidade de um pensamento.
RICHARD THEISEN SIMANKE é doutor em Filosofia pela USP e professor associado do Departamento de Psicologia da UFJF