Crônica musical em Lisboa

Crônica musical em Lisboa
"O fado", do pintor português José Malhoa, 1910 (Foto: Reprodução)

 

É brasileiro, já passou de português
Noel Rosa

Recentemente, ao retornar de um compromisso acadêmico na Espanha, tive a oportunidade de visitar Lisboa. A capital portuguesa, sempre enigmática e surpreendente, brindou-me com um episódio que não me poderia furtar a narrar.

Aconteceu em uma casa de espetáculos de fado que me tinha sido muito bem recomendada. Naquela noite, entre as apresentações que se sucediam, acompanhei com especial atenção um trio composto por cantora fadista – de aparência, aliás, tão bela quanto o timbre de sua voz – acompanhada de um violonista (eles diriam guitarrista) e de um executor do instrumento conhecido como guitarra portuguesa.

A guitarra portuguesa é talvez o mais lusitano dos instrumentos musicais. Descende do cistre renascentista, que teve forte presença nas cortes de toda a Europa, mas também nos desafios e algazarras típicos dos ambientes populares. O cistre é ele próprio o elo perdido de uma antiga família de instrumentos de braço com cordas que inclui a cítola medieval e a cítara grega, ambas, por seu turno, ancestrais distantes do alaúde turco e, também, do bandolim – este velho conhecido da música brasileira.

Ao lado da técnica vocal dos fadistas – com seus vibratos, apogiaturas e outros ornamentos que traem a influência dos cânticos mouriscos –, a guitarra portuguesa confere ao fado sua sonoridade característica, capaz de tocar no íntimo os espíritos dotados de sensibilidade musical e poética.
E lá estava eu, em silêncio, a saborear uma sequência de fados quando achei que um deles, interpretado magistralmente pela vocalista, e cujo título não posso agora precisar, parecia-se em sua melodia com o Fado Tropical, de Chico Buarque e Ruy Guerra.

No intervalo do espetáculo, ao passar pelo lugar em que os músicos se apresentavam, passou-me pela cabeça perguntar:

– Vocês conhecem o Fado Tropical, de Chico Buarque?

A cantora fez sinal negativo com a cabeça. Já o titular da guitarra portuguesa decretou:

– Conheço, sim, mas o Fado Tropical não é um fado.

Clima grave. Fiquei olhando para ele um pouco desnorteado, sem reação.

Limitei-me a perguntar:

– Por que não?

Ele não se fez de rogado.

– No Fado Tropical, a estrutura melódica e harmônica assemelha-se à do fado, mas a estrutura poética não é de fado. Por dois motivos: 1) o fado, na sua estrutura poética, não possui refrão; 2) no fado, a música é feita para a poesia.

Pensei primeiro no último argumento.

– Mas a primazia da poesia sobre a música realmente singulariza o fado? Não há outras músicas que são feitas para a poesia? Veja, por exemplo, o gênero que no Nordeste brasileiro denominamos repente: nele, a prioridade da letra sobre a música surge cristalina.

Ele não respondeu, incomodado. Enquanto isso eu pensava no primeiro argumento, que me parecia realmente desafiador. Puxei de meus alfarrábios mnemônicos, algo dos antigos estudos de teoria literária, e logo lembrei que o formato não apenas dos versos, mas também das estrofes e refrões, é basilar para a definição da estrutura poética. Por ali nenhum questionamento seria frutífero. Joguei então, meio que à queima-roupa, talvez para ganhar tempo, um pedido de confirmação:

– Então não existe nenhum fado com refrão?

Ele balançou a cabeça negativamente, depois me olhou e galhofou:

– Te peguei, hein?

Foi então que a cantora fadista, que assistia a tudo em silêncio, resolveu entrar na conversa, felizmente em meu socorro. Se eu houvesse apelado à Imaculada Conceição, pensaria estar diante de um milagre.

– Pensando bem – disse a vocalista do grupo –, acho que existem, sim, alguns fados com refrão.

O guitarra portuguesa voltou-se a ela:

– Tem razão, mas não são fados tradicionais, só fados.

E eu, fênix rediviva:

– Mas não disse que o Fado Tropical era um fado tradicional, só um fado. Seria até difícil ser um fado tradicional se não é de Portugal.

Ele assentiu com a cabeça. Aproveitei para baixar a temperatura:

– Mas entendo seu ímpeto em defender a cultura portuguesa. Você está certo!

Ele gostou e retribuiu:

– Agora… Quer saber? Tem um compositor brasileiro que compôs um fado tradicional.

Mais do que eu, parecia que a abóbada celeste indagava:

– Quem?

– Um tal de… Vinicius…

– Vinicius…?

– Vinicius de Moraes! Ele tem um ótimo fado tradicional chamado Saudades do Brasil em Portugal!

– Ah, claro! Vinicius é o mentor estético e político do Chico Buarque. O do Fado Tropical, lembra?

O show ia recomeçar. Todos se sentaram e as luzes se apagaram.

Cumprimentei os músicos cordialmente e me afastei. Executaram-se mais três ou quatro belos fados. Eram os últimos da noite.

Paguei a última taça de vinho e resolvi sair. Na passagem para a rua, encontrei novamente o guitarrista. Ele fez questão de me cumprimentar:

– Olha, mas eu gosto muito do Chico Buarque, viu?

E elogiou o Chico. Citou várias músicas. Comecei a pensar naquilo como um pedido de desculpas. E passei à ofensiva.

– Veja, gosto muito da forma como você defende a cultura do seu país. Como afirmei antes, você é que está certo! Mas, se me permite uma recomendação, nunca diga que o Fado Tropical não é um fado. Sabe por quê? Porque ele é a possibilidade de ampliação do fado para onde ele deve prioritariamente ser levado, pela óbvia proximidade, inclusive linguística: os 210 milhões de habitantes do Brasil. Se do ponto de vista estético não é exatamente um fado, do ponto de vista político precisa ser. E, na minha modesta impressão, é a política que deve comandar a estética, não o contrário. A defesa das raízes culturais é fundamental, sim, mas não podemos deixar de atentar às possibilidades de ampliação. Mesmo porque nenhuma cultura resiste e sobrevive se não vai além de seus próprios limites.

Ele sorriu, e o sorriso parecia sincero. Despedimo-nos, então – provavelmente para sempre.

Cheguei de volta ao hotel já tarde da madrugada, embriagado e com sono. Mas a curiosidade não me deixou dormir. Precisava ouvir a tal Saudades do Brasil em Portugal, de Vinicius, canção da qual não me recordava.

Encontrei-a rapidamente na internet. Como em muitas de suas músicas, também nesta Vinicius faz um breve preâmbulo – espécie de mensagem introdutória não cantada, mas falada por sobre a melodia já em execução. Ei-la:

“Depois da marcha de rancho que eu fiz com o João Sebastião Bar, a maior ousadia que eu cometi na minha vida foi fazer um fado brasileiro [risos]. Mas foi sincero, foi honesto. Não sei se é fado, não sei se não é. Foi feito com amor. Chama-se Saudades do Brasil em Portugal.”

Vinicius teria gostado de saber o que me disse, sobre seu “fado brasileiro”, o guitarrista de Lisboa. Pois, como parece claro, o “poetinha” mostrava-se cauteloso em classificar aquela canção como um fado. E a meu ver ele tinha razão: do ponto de vista da estrutura poética, sim, é um fado – até mesmo tradicional. Mas a melodia é por demais chorada e açucarada… está mais para Garrincha do que para Cristiano Ronaldo.

Aliás, sob o aspecto estritamente melódico e harmônico, tenho a impressão de que o Fado Tropical se parece mais com um fado do que a canção de Vinicius. E foi assim que me veio à cabeça uma última indagação: quem teria composto a melodia dessa canção? O brasileiro Chico Buarque ou o luso-moçambicano Ruy Guerra? Fiquei apreensivo com o que o Google me revelaria, mas encarei a consulta. E, ao contrário do que seria mais intuitivo, a música era de Chico, a letra de Ruy Guerra.

Fui dormir com uma única certeza: o amigo da guitarra portuguesa estava corretíssimo em seu arrojo nativista. Sem a completa imersão no contexto intelectual, sensorial e moral de Lisboa – esta cidade tão enigmática quanto surpreendente –, ninguém jamais conseguirá compor um autêntico fado.


Fábio Palácio é jornalista, mestre em Semiótica (PUC-SP) e doutor em Comunicação (USP). Formado em Percepção Musical pela Escola de Música Lilah Lisboa (conservatório de São Luís – MA) e pofessor do Departamento de Comunicação Social da UFMA.

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