Crises cíclicas

Crises cíclicas

Biblioteca Becei, de Paraisópolis, passa por dificuldades, mas se mantém de pé

Eduardo Fonseca
Fotos: Alessandra Perrechil

De tempos em tempos, a história se repete: a Biblioteca Escola Crescimento Infantil (Becei) de Paraisópolis, bairro carente da zona sul de São Paulo, enfrenta uma de suas crises cíclicas em que patrocínios e apoios tornam-se escassos. Durante esses períodos, as contas são postergadas, assim como o conserto das infiltrações nas paredes fica para mais tarde. “Ultimamente, não temos verba para nada”, comenta Claudemir Cabral, 29 anos, que há 14 fundou na sala de sua casa uma biblioteca improvisada que hoje conta com 11 mil títulos – uma quantidade que poderia ser muito maior, caso o espaço físico fosse mais adequado, “pois doação de livro é o que não falta”.

Se o acervo que começou com apenas 15 livros hoje se encontra em seu limite, o mesmo se pode dizer da estrutura física da biblioteca que, desde sua fundação, em 1995, já recebeu mais de 600 mil visitantes devidamente registrados. Porém, desde que foi encerrado o convênio com uma empresa belga no ano passado, que lhe garantia certa quantia todo mês para honrar os compromissos financeiros, a Becei anda mal das pernas. Hoje, está com a internet e o telefone cortados – “A Telefônica não ajuda em nada!” –, sendo que um dos computadores que permitia acesso gratuito à internet está à venda.

A biblioteca possui, sim, muitos colaboradores, de voluntários, que ministram cursos semanais de reforço escolar e espanhol, a empresas, como a Casas Bahia, que doou diversos móveis, e a Sabesp, que cobra uma taxa simbólica de água, “algo que a Telefônica também poderia fazer, mas não faz”. Por sorte, a Telefônica é uma exceção, pois normalmente quem conhece o espaço logo quer ajudar. Foi o caso de Lily Marinho, viúva de Roberto Marinho, fundador do império de comunicação Globo, que esteve pessoalmente no local depois de ler sobre a iniciativa nos jornais. O problema, conforme aponta Cabral, é que a ajuda normalmente é esporádica, o que faz com que a biblioteca viva sem poder planejar muito seu futuro. “É sempre assim, as crises vão e vêm de acordo com a periodicidade em que a gente sai na mídia”, revela. Conclusão: só boa vontade não basta para manter em boas condições um local que rendeu, e ainda rende, diversos dividendos à população.

Papel fundamental

Andando pelas ruelas movimentadas de Paraisópolis, é fácil constatar que a Becei possui dois papéis fundamentais para a região. O primeiro é o de ser uma ilha dedicada à reflexão em meio a um lugar dos mais agitados, com gente lotando as ruas praticamente 24 horas por dia e com casinhas espremidas umas nas outras que estatisticamente refletem uma das maiores densidades populacionais da cidade de São Paulo. Diante de tanta inquietude, a sala de leitura da Becei é uma calmaria. Abriga pessoas como Jussara Carvalho, uma moça de 24 anos, atualmente desempregada, cujo último trabalho foi como operadora de telemarketing. Sentada na sala de leitura, ela tem a seu lado três versões de As Mil e Uma Noites, além de uma edição de Vale Tudo, versão impressa de uma notória novela global dos anos 1980 que, além do famoso assassinato de Odete Roitman, traz ainda mais três possíveis finais que não foram ao ar. Jussara utiliza as dependências tranquilas da Becei por um motivo comum aos frequentadores de lá: “Não dá para ler em casa, sempre é muito movimento, muito barulho”, ela conta. Sua diversão, então, é ir para a biblioteca e pesquisar temas para depois transformá-los em histórias ou poemas que, posteriormente, ela publica em seu blog, o
www.euescrevolivros.zip.net.

O segundo papel fundamental que a Becei exerce na região é o de ser um catalisador de boas intenções. Nesse sentido, ela atua para abrandar o estereótipo cultivado pelas classes mais abastadas de que os bairros mais humildes são redutos marginais. É precisamente esse segundo aspecto que volta e meia resolve os problemas financeiros e estruturais da instituição, uma vez que faz com que a biblioteca ganhe visibilidade, atraindo o olhar da mídia. Mas, se existem crises cíclicas, podemos dizer que há também contribuições que chegam na hora exata. Assim, Cabral, com a ajuda da Associação de Alunos da Escola Graduada, há dez anos, conseguiu ampliar a biblioteca que estava “entulhando” a sala de estar da casa de sua mãe, dona Gessi. Com o apoio, foi erguida uma casa nova, fazendo com que a casa de madeira que antes ocupava o terreno, viesse abaixo para dar lugar a uma edificação de concreto. “Agora a biblioteca fica embaixo e a casa de minha mãe em cima”, conta orgulhoso.

Como se fosse uma corrente, uma ajuda sempre vem entrelaçada a outra. No período da construção, Cabral e sua família tiveram de ficar um ano inteiro sem casa própria, o que também não foi problema, pois uma ex-patroa de sua mãe lhes cedeu um apartamento vazio que tinha no bairro do Morumbi. Assim, por um ano, Cabral, que nasceu no interior pernambucano e chegou a São Paulo aos 4 anos de idade, indo parar direto em Paraisópolis, viveu numa das áreas mais valorizadas da capital paulista. “Foi muito bom. Era uma tranquilidade… O problema é que para fazer tudo precisa ter carro, a padaria mais próxima ficava a quilômetros de distância. Aqui pelo menos tudo fica do lado”, conta rindo.

Filiais

Mesmo com dificuldades, Cabral ainda encontra tempo para expandir sua biblioteca e levar seu know-how a outros locais. Convidado pela ONG Vagalume, ele viajou recentemente para a Amazônia e contribuiu para a construção de dez bibliotecas na região. Outro feito, previsto para 2010, será a construção de uma filial da Becei no morro Dona Marta, favela que está sendo urbanizada na zona sul do Rio de Janeiro. As negociações com a prefeitura local estão adiantadas e muito em breve o morro deverá receber uma biblioteca nos moldes daquela que há 14 anos se encontra em Paraisópolis. Um local erguido por vontade própria, por uma iniciativa independente de ONGs e incentivos públicos, uma vontade que inspira outros sempre que se faz presente. “Não sei bem o que acontece. Parece que, quando se tem boa vontade, quando se realiza algo para o bem público e não para o bem individual, isso contamina outras pessoas. Todos querem ajudar. É uma coisa muito forte, porque se apresenta como algo autêntico.” Uma boa vontade que, desde a primeira vez em que apareceu na mídia, transformou Cabral numa espécie de embaixador cultural do bairro. Para ele, a biblioteca já viveu, sim, grandes apuros, já esteve lá embaixo, mais precisamente espremida no canto de uma pequena sala de um barracão de madeira, porém o auge parece ainda um lugar no futuro. Se na época da visita de Lily Marinho, quando ele foi questionado por ela sobre o que estava precisando, sua resposta foi “um computador”, hoje ela seria “uma verba de 600 reais para poder pagar as contas atrasadas, manter as duas funcionárias e fazer a manutenção do espaço para ele não se depreciar”. Uma ajuda que, pelo histórico, em breve estará a caminho. Resta saber pelas mãos de quem.

Os livros mais retirados 

Com mais de 10 mil livros emprestados somente neste ano, a biblioteca Becei já recebeu em suas dependências mais de 620 mil pessoas. Confira abaixo os dez livros mais retirados em 2009:

Harry Potter – J.K. Rowling (Rocco)

O Menino do Pijama Listrado – John Boyne (Companhia das Letras)

Crepúsculo – Stephenie Meyer (Intrínseca)

Marley e Eu – John Grogan (Prestígio)

O Segredo – Rhonda Byrne (Ediouro)

O Monge e o Executivo – James C. Hunter (Sextante)

GomorraRoberto Saviano (Bertrand Brasil)

A Sombra do Vento – Carlos Ruiz Zafón e Marcia Ribas (Suma de Letras)

Trilogia da FraternidadeNora Roberts (Bertrand Brasil)

O Caçador de Pipas – Khaled Hosseini (Nova Fronteira)

Biblioteca Escola Crescimento Infantil (Becei)

Rua Melchior Giola, 36, Paraisópolis, São Paulo (SP)

Horário de funcionamento: 2ª a 6ª feira das 10h às 22h; sábados, domingos e feriados das 10h às 18h. Contato: (11) 3507-7531

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