A crise existencial da Barbie
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São poucos os sonhos que ficam registrados na memória depois de mais de 30 anos… Já é difícil lembrar do que sonhamos na noite passada! Um dos poucos sonhos da infância que me marcaram foi um em que ganhei pilhas infinitas de caixas da Barbie e seus adereços. Lembro daquele tom de rosa-choque tão intenso. Lembro de como eu fiquei feliz, e lembro também da minha decepção depois, ao acordar e assimilar que tudo não passava de um sonho de menina.
Sou de uma geração que se deslumbrou com a Barbie, aquela boneca loira e esbelta da Estrela com a qual meninas brincavam de ser mulher. A grande diferença da Barbie em relação às outras bonecas é que geralmente elas são bebês, ou crianças pequenas, enquanto a Barbie é uma mulher adulta. Do cuidado com as bebês das quais nos imaginamos mães passamos a projetar nossos sonhos de futuro numa boneca: do fazer condicionado, passamos ao Ser-Outra. Em O segundo sexo, Simone de Beauvoir fala sobre o papel pedagógico que as bonecas desempenham na vida das meninas, que assim “treinam” para a única função que o patriarcado reserva às mulheres: procriar, cuidar dos filhos e da casa. Para Beauvoir, a menina é tratada como uma “boneca viva”, enquanto os meninos brincam dos mais diversos jogos, lutas, desafios, sobem em árvores, usam muito mais o corpo nas brincadeiras, na medida em que são educados para a violência e para a aventura. A menina é um pouco boneca, e assim como os contos de fada, a boneca faz parte da construção social da passividade feminina. “Mas é um erro pretender que isso se trata de um dado biológico” — diz a filósofa — “Na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade”. Neste prisma, a boneca é, ao mesmo tempo, seu duplo e sua filha. Mas o que diria Beauvoir quando a boneca é adulta?
Assim eu introduzo minha crítica do filme Barbie, dirigido por Greta Gerwig, com o roteiro coescrito com Noah Baumbach, lançado no Brasil na última quinta-feira (20/7). O filme me parece um acerto de contas, uma retratação em relação ao papel nefasto que a boneca desempenhou na educação lúdica das meninas, que tinham na Barbie estereotipada um modelo do que seria uma mulher perfeita. Hoje podemos falar de outras Barbies que não a estereotipada, mas para quem cresceu nos anos 1980 no Brasil era difícil encontrar uma Barbie que não fosse loira de olhos azuis, magérrima, toda maquiada e de pernas espichadas. Assim as meninas assimilavam o espinhoso padrão de beleza. Até tinha uma Barbie de cabelos castanhos, mas não vendia muito.
Em 1960, só um ano após a criação da primeira Barbie, a Mattel lançou a “colored Francie”, que tinha a pele mais escura, mas traços caucasianos. Em 1968, ano em que o ativista negro Martin Luther King foi assassinado, foi criada Christie, a primeira boneca negra da Mattel, mas não a chamavam de Barbie. Só em 1980 surgiu oficialmente a primeira Barbie negra, assinada pela designer Kitty Black Perkins. Mas em 1982, quando a Barbie foi lançada pela Estrela no Brasil, ela não chegou às nossas prateleiras. A protagonista do filme é a Barbie estereotipada, interpretada por Margot Robbie, a loirinha em quem todo mundo pensa quando se fala em Barbie. Ela vive na Barbieland, um mundo aparentemente perfeito e matriarcal, onde todas as bonecas são felizes, e todas atendem pelo nome de Barbie. Até que a Barbie estereotipada entra em crise com o próprio corpo e passa a ter medo da morte, instaurando o conflito de seu arco dramático.
A crise é antecipada logo no início pela cena em que meninas quebram bonecas, em um ato de fúria e catarse coletiva. Não se tratam de Barbies, só de bonecas. Parodiando uma cena de 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, o mundo sucumbe em um caos quando uma Barbie gigante aterrissa em um deserto habitado por meninas que brincam de boneca. A chegada da Barbie liberta as meninas de brincar de casinha, o que se materializa na imagem poderosa de meninas quebrando bonecas, como quem estraçalha seus próprios grilhões. Após este prelúdio em tonalidades mais escuras de cinza e marrom, entram os créditos de abertura e, desde então, somos aturdidos por uma avalanche de rosa-choque.
Estamos em Barbieland, a terra da Barbie, um universo utópico paralelo onde as mulheres são apresentadas como livres e independentes. Em Barbieland são as mulheres que dominam o mundo: são elas as presidentes, as médicas, as CEOs, as vencedoras do prêmio Nobel, as ministras da Suprema Corte. O filme joga com papéis de gênero, tanto da Barbie como do Ken. O Ken (Ryan Gosling) é designado a ser um acessório da Barbie. Assim como no livro de Beauvoir a mulher é tratada como a sombra do homem, a Outra ou o Ser-para-Outro, a existência do Ken está subordinada à Barbie. Barbieland é apresentada como um patriarcado às avessas, tudo no inverso do que as coisas são no mundo real.
Não só a corporalidade das atrizes que interpretam as bonecas é mecânica, mas suas falas são infantis na medida em que representam o imaginário de crianças em corpos de adultos, no ato de brincar de Barbie. O humor é o pastelão estadunidense, ou como eles chamam de slapstick humor, baseado no excesso caricato, que suscita mais o estranhamento do que o riso. O excesso constitui uma linha e uma perturbação, um insólito familiar que se instaura num mundo de plástico, bom demais para ser verdade. O live-action dá corpo ao faz-de-conta e remete aos brinquedos e acessórios da Barbie, como a casa, o carro, a praia etc. Somos introduzidos às várias Barbies, desde a primeira boneca de 1959 com seu maiô listrado e bem comportado até as versões mais contemporâneas e diversificadas, como as Barbies negras, a Barbie gordinha, e inclusive uma Barbie médica interpretada pela atriz trans Hari Nef, que causou um alvoroço entre os espectadores mais conservadores, que chamam um boicote ao filme por conta disso e da tônica feminista que o filme endossa.
O que fazer de seu medo da morte é um gatilho que desencadeia uma crise existencial da boneca, da qual decorre o surgimento de celulite e um súbito achatamento dos pés arqueados da protagonista. Ela então vai ao mundo real em busca da menina que brinca com ela, para tentar dissuadi-la dessas ideias soturnas em torno da morte. A celulite funciona como signo de uma humanização da boneca, que adquire traços humanamente imperfeitos que caracterizam aquilo que a Barbie estereotipada não pode ser.
A cena da chegada de Barbie e Ken à passarela da Venice Beach com suas roupas fosforescentes provoca risos dos jovens à sua volta. O estranhamento dos transeuntes delimita o choque entre dois universos. Mas logo percebemos que eles não são tão diferentes assim, ao ver as mesmas cores nos tênis e acessórios das pessoas na passarela. No primeiro momento Barbie e Ken parecem perdidos na cidade, sem noção de dinheiro, sem traquejo social e sem saber para onde ir. Enquanto os agentes da Mattel perseguem a Barbie e tentam colocá-la de volta à sua caixa, Ken fica fascinado com o patriarcado e com os privilégios de ser homem. Barbie se depara com um mundo hostil às mulheres, sendo alvo de machismo por trabalhadores de construção civil. Ela descobre que as mulheres a odeiam, sobretudo Sasha (Ariana Greenblatt), uma pré-adolescente latina, cheia de ideias feministas e questionadoras, que não gosta de boneca, e tem uma repulsa pela Barbie. Ela logo a chama de “cocota profissional”, por promover um estilo de vida irrealista e um corpo convencionalmente perfeito, que faz com que as meninas cresçam infelizes com seus corpos por décadas.
Mas sua mãe Gloria (America Ferreira) tem o referencial de uma geração anterior, e dedica um apreço pela boneca que fizera parte de sua infância. Sasha e Gloria a ajudam a escapar dos agentes paspalhões da Mattel. Sua odisseia à Barbieland é catastrófica, uma vez que Ken teria introduzido o patriarcado entre os bonecos, objetificando e submetendo as Barbies aos seus respectivos Kens. Essa súbita conversão do Ken, da submissão a uma masculinidade tóxica, pode decorrer de um ressentimento há muito recalcado por ser um acessório da Barbie.
No universo de Ken, o filme brinca com os tropos de uma hipermasculinidade, e com os tropos do queer, na medida em que a performance dos Kens apresenta uma performatividade fluida, na linguagem corporal, no magnetismo e nos afetos. Mas queer não é o mesmo que gay. Não se pode presumir uma homoafetividade entre os Kens. Alan é um ponto fora da curva. Ao não se encaixar nos padrões instituídos de masculinidade, ele se junta às Barbies. Se na Barbieland toda noite era “noite das meninas”, na Kenland toda noite passa a ser “noite dos meninos”. A ex-presidente da Barbieland passa a servir bebidas aos Kens na praia. As Barbies ministras da Suprema Corte viram cheerleaders com seus pom-pons. A inversão de Barbieland para Kenland é uma paródia do mundo patriarcal, do mundo real.
A Barbie conta com a sororidade de suas novas amigas latinas do mundo real. Barbie não tem pretensões de ser a white savior (salvadora branca) que promete libertar todas as mulheres, como afirma Sasha em uma de suas patadas. É o esforço coletivo entre as mulheres e bonecas de todos os biotipos que vão de uma em uma, no trabalho de base, despertando a consciência das bonecas para derrubar o patriarcado. No lugar de restituir a Barbieland da maneira como tudo era antes, elas criam um mundo que envolve todos, com suas diferenças, imperfeições, medos e angústias.
A meu ver, a cena mais impactante do filme é o encontro entre criadora e criatura, quando Ruth Handler encontra Barbie numa espécie de éden todo branco e iluminado, e ela pede à Barbie para lhe dar a mão. Ao segurar a mão de sua criadora, ela a transmite telepaticamente flashes de meninas e mulheres em suas vidas cotidianas. Trata-se de um ato que ritualiza sua humanização, completando a obra de Handler. Este despertar para a consciência entre mulheres que se inicia nesse ato solene não só coloca uma mulher criadora no lugar do divino, reforçado pela iluminação que se excede, mas sela a aliança entre mulheres de diferentes gerações, algo que constatamos com a parceria entre Gloria e Sasha, mãe e filha, seja quando elas abrem a porta do carro para a Barbie em fuga, ou depois, quando elas atravessam o portal para a Barbieland para ajudar as bonecas.
Outra cena que me chamou atenção foi o momento irônico, ainda na apresentação das bonecas, em que uma menina pequena corta o cabelo de sua barbie e pinta seu rosto com canetinha, algo que aconteceu com muitas crianças e suas bonecas. Kate MacKinnon dá corpo a esta boneca, uma Barbie punk, com os cabelos curtos espetados e o rosto riscado. Mais tarde no filme ela se torna uma das Barbies mais determinadas no esforço coletivo pela emancipação de Barbieland do patriarcado.
Divertido e nostálgico, o filme livra a boneca Barbie do fardo que ela desempenhou na vida de meninas e mulheres de muitas gerações. Assim como a Barbie do filme evolui, a boneca, que completou 64 primaveras, diversificou bastante o espectro da representatividade. Com uma baixa de vendas de Barbies entre 2013 e 2014, em 2015 a Mattel lançou uma linha com 23 bonecas que variam entre 8 tons de pele, 14 estruturas faciais, 22 penteados, 23 cortes de cabelo e 18 cores de olhos, coleção que levou o nome de Barbies Fashionistas.
Em 2019, a Mattel lançou Barbies com deficiências físicas, como cadeirantes, carecas (em alusão a quem faz tratamento de quimioterapia), com vitiligo, com prótese na perna e com aparelho auditivo. O reconhecimento de que a representatividade desempenha uma função pedagógica positiva para o imaginário (principalmente) infantil vem fazendo com que a indústria do audiovisual voltada para este público (mas não apenas) passe a dedicar maior cuidado e atenção para que as crianças possam se identificar com os protagonistas. A velha jornada do herói passou por abalos sísmicos, ampliando suas paletas de cores, bem como formas e contextos. Isso também encontra ressonância na indústria de brinquedos.
Por um lado, isso é resultado de décadas de lutas dos movimentos negro, feminista, LGBTIAP+ etc. Não obstante, isso se dá também porque a Mattel descobriu que a diversidade se mostrou bastante lucrativa. Se bem que os brinquedos continuam com preços salgados, inacessíveis a uma parte considerável das crianças do nosso planeta. Até onde eu sei, ainda não lançaram uma versão pobre da Barbie.
Na mesma pegada do mea culpa das loirinhas, a Xuxa já lançou dois episódios de Xuxa, o documentário, dirigido por Pedro Bial, no qual ela se retrata e reflete criticamente sobre o papel que ela e as paquitas desempenharam na vida de meninas e mulheres brasileiras, que cresceram insatisfeitas com a própria imagem. Imagem esta que Xuxa e as paquitas não as devolvem. Seus trajes fetichizados hipersexualizam crianças. Com efeito, as loiras também figuram em muitas revistas de moda entre os anos 1980 e 1990, quando as capas nos dão a impressão de estarmos na Escandinávia, e não no Brasil, por exaltar um padrão de beleza nórdico, que tem pouco ou nada a ver com a maioria das brasileiras. Em 2010, a realizadora negra Juliana Vicente lançou o curta Cores e botas, que retrata o sonho de uma paquita negra. Hoje me parece que muitas fissuras se abriram neste sentido, através de lutas sociais e novos entendimentos que dão margem a outras semioses e devires.
Ainda temos muito chão a percorrer, mas filmes como este dão esperança, por alcançar, inclusive, um público ao qual o feminismo tem pouco acesso. Em menos de 24 horas de seu lançamento, Barbie já quebrou o recorde de Avatar 2 nas bilheterias, só perdendo para Os vingadores. No Brasil, malgrado os protestos de evangélicos pentecostais de extrema direita que desaconselham os fiéis a assisti-lo dado a sua inclinação feminista e LGBT, o filme teve a segunda maior plateia em dia de estreia. Nas filas das salas de cinema, rosa é a nova tendência.
Marina Costin Fuser é doutora em estudos de gênero e cinema pela University of Sussex com doutorado-sanduíche na U.C. Berkeley, graduada e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. É pós-doutoranda no Instituto de Estudos Avançados da USP e professora da escola de cinema do IEMA.