Estante Cult | Grande humanista e pensador das culturas, Edward Said foi a voz mais lúcida da questão palestina

Estante Cult | Grande humanista e pensador das culturas, Edward Said foi a voz mais lúcida da questão palestina

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Poucos intelectuais da segunda metade do século passado foram tão influentes como Edward Said. E duas décadas depois da morte dele, o interesse pela sua obra não arrefeceu. Refiro-me principalmente a dois livros que se tornaram clássicos contemporâneos: Orientalismo (1978) e Cultura e Imperialismo (1993), ambos decisivos para a criação de uma disciplina das humanidades: Estudos pós-coloniais.

Em seu conjunto, a obra vasta e diversa de Said inspirou centenas de teses e dissertações, e, sem dúvida, milhares de ensaios. Recentemente saiu uma notável e densa biografia de Timothy Brennan: Places of Mind — A Life of Edward Said. Mas o pensamento, a escrita e a vida desse corajoso intelectual ativista provocaram inúmeras polêmicas e receberam críticas ásperas, inconsistentes — com raras exceções — e sem fundamentação teórica. Said foi também difamado por intelectuais e jornalistas, e não apenas ultraconservadores… Alguns de seus detratores diziam que ele não era palestino; os mais agressivos o chamavam de “professor do terror”, mas foram esses extremistas que incendiaram o escritório dele na Universidade Columbia.

Said foi também um pianista talentoso e estudioso de música clássica; suas conferências e artigos foram reunidos em dois volumes: Music at the Limits (Música nos limites, ainda inédito em português) e Elaborações musicais. Um terceiro volume sobre música será publicado nos próximos meses: Said in Opera, uma coletânea de artigos publicados no The Nation. Em parceria com seu amigo, o maestro e pianista argentino-israelense Daniel Barenboim, publicou Paralelos e paradoxos; ambos fundaram a orquestra Divã Oriental-Ocidental, formada por jovens israelenses e árabes. O nome da orquestra, além de homenagear o belíssimo livro de poemas de amor de Goethe, alude à atitude universalista do grande escritor alemão, que, na década de 1810, fascinou-se pela cultura islâmica, leu o Corão e poesia persa, notadamente Hafiz. Essas leituras inspiraram os poemas do Divã ocidental-oriental (1819). Vale lembrar que esse mesmo poeta persa também inspirou um dos mais belos poemas de Manuel Bandeira: “Gazal em louvor a Hafiz”.

Goethe teceu então uma ponte cultural, literária e afetiva entre dois mundos: o do Oriente islâmico e o da Weimar europeia. Poucos anos depois, ele criou uma concepção universalista de todas as literaturas, a que nomeou literatura do mundo (Weltliteratur). Segundo Said, essas literaturas, em seu conjunto, formariam um todo sinfônico, mas sem jamais desconsiderar as circunstâncias históricas de cada país, nem as particularidades da língua e do estilo de cada escritor(a). Nesse sentido, a literatura universal não é algo abstrato nem absoluto: ela se constitui num determinado tempo histórico e através da escrita da história, individual e coletiva.

Para Said, a visão utópica de Goethe fundamentou o que viria a ser o campo da literatura comparada. Mais de um século e meio depois de Goethe, Said e sua esposa Maire (Mariam) traduziriam para a língua inglesa o ensaio “Filologia e Weltliteratur”, de Erich Auerbach, que exerceu uma enorme influência na obra do autor palestino-americano. Como se sabe, Auerbach escreveu livros notáveis de filologia e crítica literária, incluindo o monumental Mimesis, em que são analisadas obras de autores canônicos do Ocidente, da Antiguidade grega ao modernismo. Said considerava Mimesis a maior e mais influente obra humanista-literária do último meio século. Na década de 1950, a leitura das obras de Auerbach, bem como das de Leo Spitzer, Ernst Robert Curtius e outros grandes mestres da filologia e da estilística fizeram parte da formação intelectual de Said. Na academia norte-americana daquela década, e pelo menos até os anos 1960, a literatura canônica era a Ocidental, europeia.

Para escrever Orientalismo, Said se muniu de uma parte da erudição desses grandes filólogos, o que se pode notar na amplitude narrativa do livro, que inclui diferentes modalidades de discurso, a combinação de uma enorme quantidade de textos, análises de obras de autores franceses e ingleses do século 19, muitas citações e uma impressionante bibliografia.

Em Cultura e Imperialismo, o leitor depara com essa mesma amplitude narrativa, mas com uma dupla perspectiva. A primeira é uma análise de uma visão de fora: ou seja, do discurso do império sobre uma parte do mundo colonizado. A segunda é uma visão de dentro: como os intelectuais, escritores e ativistas políticos de países colonizados resistiram e responderam à dominação imperial.

Convém lembrar que em nenhum de seus escritos Said desmereceu, atenuou ou relativizou o imenso valor literário de clássicos do Ocidente. Ao contrário: seus cursos na Columbia sempre versavam sobre literatura de língua inglesa e literatura comparada. Mas, para ele, era necessário examinar as formas de representação europeias no âmbito da literatura e do discurso político, e criticar — em um contexto histórico — o que nelas havia de preconceituoso sobre o oriental árabe e islâmico.

Estudioso de música clássica e pianista talentoso, Said usou técnicas de composição musical (variações e contrapontos) para pensar na estrutura de Cultura e Imperialismo, um livro que me parece, sob vários ângulos, mais claro em seus objetivos e mais maduro que Orientalismo.

Ele ressalta que muitos historiadores da cultura e estudiosos da literatura deixaram de observar uma “anotação geográfica importante: o mapeamento e levantamento teórico do território que se encontra por trás da ficção, da historiografia e do discurso filosófico do Ocidente no século 19”.

A ênfase de Said na geografia foi inspirada na leitura dos “Cadernos do cárcere”, de Antonio Gramsci. Nesses Cadernos, Said percebeu uma espécie de “mapa da modernidade, onde ocorrem lutas contínuas nos territórios”.

Ele usa a expressão “hierarquia de espaços”, segundo a qual “o centro metropolitano e, aos poucos, a economia metropolitana são vistos na dependência de um sistema ultramarino de controle territorial, de exploração econômica e de uma visão sociocultural”.

Said se refere à expansão imperialista do século 19, mas o leitor atento percebe uma conexão dessa expansão com a ocupação e espoliação de territórios palestinos por colonos e militares israelenses. Em várias passagens desse livro complexo e rico, é admirável como, a partir de uma “anotação geográfica” pouco explícita no texto, ele analisa o significado histórico e ideológico em vários romances europeus, relacionando-os à natureza do empreendimento colonial.

Enquanto crítico-escritor, Said foi fiel a um compromisso ético, inseparável de sua mirada também ética de leitor. Aliás, um leitor fora do comum, com um olhar dotado de um incrível senso de descoberta, capaz de detectar detalhes significativos e, assim, ampliar o sentido histórico e político do que estava oculto, dissimulado ou aparentemente apagado no texto de ficção. Ele fez isso na leitura crítica de vários romances: Mansfield Park (Jane Austen), O estrangeiro (Albert Camus), Kim (de Rudyard Kipling) e Coração das trevas, de Conrad, cuja obra, analisada na tese de doutorado de Said, resultou em seu primeiro livro, ainda inédito em português: Joseph Conrad and the fiction of autobiography (1966). A análise de romances, contos, cartas e textos ensaísticos de Conrad é recorrente nos livros de Said, incluindo o ensaio “Reflexões sobre o exílio”, uma pequena obra-prima publicada no volume homônimo.

Em contraponto com esses e outros romances europeus, ele examinou obras de ensaístas, poetas e romancistas da África, das Antilhas e do Oriente Médio — como Aimé Césaire, Frantz Fanon, Tayeb Salih, Naguib Mahfouz, Wole Soyinka, Elias Khoury, Mahmoud Darwich, García Marquez e Neruda, entre tantos outros, sem deixar de comentar a ação política de revolucionários como Amilcar Cabral e Patrice Lumumba.

Esse empenho em analisar e divulgar uma parte relevante da literatura não ocidental vai ao encontro da concepção da literatura do mundo, de Goethe. E é fundamental que se tenha em mente que a produção intelectual de Said — eu diria de um obstinado e notável tecelão intelectual — é inseparável de sua luta pela justiça e pelos direitos humanos, não apenas na Palestina ocupada. Por isso, ele foi um exemplo de grande intelectual humanista, em seu sentido pleno e verdadeiro. Ele nos lembra que o humanismo não deve se limitar a uma elite (religiosa, aristocrática ou educacional) confinada num clube austero com regras que excluem a maioria das pessoas. Para ele, o humanismo é um ideal educacional e cultural que não deve ser conformista, passivo, seletivo nem elitista, mas sim crítico, secular e democrático, com plenos direitos à cidadania participativa. Algo semelhante nós lemos no belíssimo e famoso ensaio “O direito à literatura”, do também grande humanista, professor e crítico literário Antonio Candido.

A obra de Said não apenas corrigiu as antigas dicotomias e distorções nos discursos do Ocidente sobre o Oriente como também realizou uma crítica integradora entre o condicionamento histórico, político e social e as obras literárias e ensaísticas. Ele nos parece dizer o tempo todo que as culturas não são puras nem cristalizadas, e sim ligadas historicamente por vasos comunicantes. De modo análogo, ele nos diz que o humanismo é baseado num senso de comunidade, de autoconhecimento, de pertencimento e de diálogos interculturais. Ou seja, não há humanismo isolado.

Além disso, seu incansável empenho por um mundo mais justo, sua defesa ao mesmo tempo refletida e passional por uma Palestina livre da opressão e sua profunda convicção de que judeus e palestinos podem e devem viver e conviver num Estado laico e com direitos iguais fez dele um representante dos mais elevados valores éticos e intelectuais do mundo.

Livros de Edward Said publicados no Brasil: Reflexões sobre o exílio (Companhia das Letras); Fora do lugar (Companhia das Letras); Paralelos e paradoxos: reflexões sobre música e sociedade, com Daniel Barenboim (Companhia das Letras); Representações do intelectual (Companhia das Letras); Freud e os não-europeus (ed. Boitempo); Elaborações musicais (ed. Imago); e A pena e a espada: diálogos com Edward Said, por David Barsamian (ed. Unesp).

 

Milton Hatoum estudou arquitetura na USP e estreou na ficção com Relato de um certo Oriente (1989), vencedor do prêmio Jabuti. Seguiram-se Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008). Em 2017, lançou A noite da espera, primeiro volume da trilogia O Lugar Mais Sombrio. Em 2019 saiu o segundo volume, Pontos de fuga. Sua obra de ficção, publicada em 14 países, recebeu em 2018 o prêmio Roger Caillois (Maison de l’Amérique Latine/Pen Club-França).


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