Covid leva à cova: sobre “Esquifes”, de Dario Vellozo
(Arte: Revista Cult)
I. Pandemônio pandêmico
- Depois de um curto período de diminuição de casos, a variante ômicron volta a exigir de todos medidas restritivas de contato e confinamento social.
- Durante esse tempo, o Brasil avançou razoavelmente na vacinação, apesar das abomináveis forças contrárias, e diminuiu consideravelmente internações e mortes.
- Contudo, tal alívio temporário motivou o risco de relaxamento num momento de crise, como o que estamos experimentando agora.
- Um conjunto de dados graves é menos conhecido e refletido do que deveria. O Brasil continua com a segunda maior quantidade de mortes em números absolutos por covid-19 no mundo, atrás apenas dos EUA.
- Segundo a estatística atual do site Our world in data, que compara centenas de países, no total de número de mortos por milhão de habitantes, o Brasil se encontra em 14º lugar, na frente da maior parte dos países mais populosos e de mais circulação, incluindo os EUA.
- Os países com situação mais crítica que o Brasil, como Peru, Bulgária e Hungria, possuem uma população bem menor. Boa parte deles dispõem de um sistema de saúde inferior ao SUS.
- Vários países com grande população ou com alta circulação possuem mais casos atuais de covid-19 que o Brasil (Israel, França, Portugal, Itália, Espanha, Argentina, EUA, Reino Unido e Alemanha). Contudo, em termos de internação e mortes, estão muito abaixo na estatística. Não se deve descartar que em tais países há abundância de testes, ao contrário da subnotificação daqui. Na porcentagem de casos graves, o Brasil tem estado atrás de Rússia, Egito e México, mas na frente de todas as nações com elevado número de casos.
- Em outras palavras: Brasil é um dos países mais arriscados do mundo, em tempos de pandemia. Mesmo com um sistema de saúde considerado eficiente e uma população bem menos resistente à vacinação do que em outros países, o brasileiro não tem noção do quanto se compromete quando relaxa no confinamento e no uso de máscara.
- Especialmente aqui, covid leva à cova.
II. Exumar os enterrados
- Finalmente atingimos o tão esperado ano do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922.
- Em meio ao esforço de reformulação do cânone literário nacional, vários críticos têm apontado o quanto a construção valorativa da vanguarda dos paulistas como a única digna de consideração é enganosa.
- Ela serviu como forma de apagamento de uma série de obras e autores hoje quase esquecidos, que devem ser redescobertos.
- Certamente um dos movimentos mais injustiçados da história da literatura brasileira é aquele que tornou possível as vanguardas posteriores, inclusive a paulista: o simbolismo.
- Curitiba, por exemplo, se tornou um centro radiante do movimento nos anos de 1890. Um de seus autores mais fecundos foi Dario Veloso (1869-1937; na grafia antiga, talvez ainda a mais usada, Dario Vellozo).
- A publicação dele que considero mais impressionante se chama “Esquifes”, de 1896. É um dos primeiros livros nacionais de um peculiar gênero de fronteira entre prosa e poesia, o poema em prosa, que pertence ao decadentismo do fim de século, momento da chamada “crise de vers”.
- A palavra esquifes possui dois sentidos: caixão funerário e embarcação de pequeno porte que comunica o navio ao porto. Enquanto título, as duas acepções se imiscuem: é como se a sepultura fosse uma espécie de barco que atravessa a morte e como se o bote fosse um caixão que protege o navegante de seu afastamento da terra.
- Como a palavra está no plural, subentende-se que o conjunto dos poemas em prosa são o “cemitério das Ilusões perdidas”, “delicados cadáveres das Esperanças mortas”. Dario Veloso produziu todo um livro que transita na ambiguidade entre morrer e atravessar o sobrenatural; sepultar a crença, recusar os engodos do mundo e viver no recolhimento meditativo.
- Por isso, “Esquifes” me parece uma obra nomeadamente indicada para refletir sobre o nosso momento atual.
III. Sacralização expressiva da desilusão
- Um dos poemas se chama “A última esperança”. Um coveiro, “velho sacerdote das Ilusões perdidas”, atende ao narrador que visita o cemitério. Este lhe pergunta:
— Dize-me, bom velho, onde o modesto sarcófago de minhas fanadas esperanças?
— Ali, — desditoso, — ali, sob a esquiva ramagem daquele solitário arbusto, assinalado do pranto dos Bardos e das Julietas. […]
Por sua vez, o coveiro lhe indaga:
— Onde o cadáver que sepultar desejas?
— Na corola desta flor.
- Contrariando o pendor habitual de se esquivar de frustrações, o narrador quer se defrontar com o perecimento das ilusões e depositar a carcaça das certezas na minúcia da beleza natural. A metáfora cadavérica para o desencantamento, realçada pelo artifício alegórico, traduz o sentimento da angústia (perda de algo irreconhecível) com o do luto (perda de algo reconhecível).
- O coveiro situa, para o narrador, o lugar de sua desventura; o narrador responde, enquanto “bardo”, que o sepultamento se dá não no álgido caixão, mas na doce delicadeza da corola, “nesta frágil violetazinha”. A debilidade da flor, a “derradeira lágrima da mulher que amei”, é “a minha última esperança”. Na singeleza da flora germinante, e não da pretensão de fundamento, ele aposta todas as fichas.
- Em outro poema em prosa chamado “Meditação”, evidencia-se a opção do protagonista pelo recolhimento espiritual:
Desde que a Fatalidade o fulminou, Otávio não mais transpôs os carunchosos umbrais semi-ruídos da estreita cela, úmida e fria, de cenobita desalentadoramente votado ao esquecimento. Vivia só, — muito só, acompanhado apenas da lívida coreia das tristezas mais ínfimas e pungentes, evocadas ao fúnebre entoar místico do réquiem religioso das recordações…
- Estamos não diante de uma ascese religiosa, mas de uma ascese niilista. Há, no decadentismo de Dario, aparentado ao de Cruz e Sousa, algo que dificilmente vai se repetir de forma tão nítida e, ao mesmo tempo, estará na base de muitos aspectos do modernismo. Trata-se do peculiar embaralhamento entre os campos do sagrado e do profano, do tradicional e do moderno. Os traços de tradição religiosa fornecem lastro à inovação moderna e a inovação moderna transgride a tradição religiosa.
- O protagonista é um “monge” da melancolia que vive de remoer a “coreia das tristezas” com “lamentos de anacoreta” pelo seu passado. Ele imerge na sacralização expressiva da desilusão, entoadora do “réquiem” do vazio, habitante de uma “estreita cela”.
- Em “A última esperança”, ele se precipitou na fragilidade da corola. Agora esclarece o beco sem saída existencial:
E é por isso que o mal-aventurado se familiariza com a Morte. É que a Morte é a única esperança que o não ilude e desampara…
— Feliz o que não é eterno! […] Só a Morte não ilude; só ela!
- Se a “coreia” de Dario está no desencanto e o remédio não é outro senão a meditação na morte, ele é um anacoreta do desencantamento; isto é, um sacerdote da arte de se anular. Completa contradição: a morte não pode comportar esperança. Contudo, contém a promessa do desconhecido. Tal monge se acostuma com o seu fim, assenta-se no epílogo da existência. Familiarizar-se com a morte é irmanar-se com o desconhecido.
- Já nossa “Fatalidade” é a covid, nossa “estreita cela” são os apartamentos, nossas “recordações” estão mais estampadas nas telas digitais do que na memória. O que pouco ocorre, na atualidade, é o momento de meditar tanto sobre o luto dos 622.000 mortos quanto na angústia de viver sob incerteza e ameaça. O que nos falta é assumir corporal e espiritualmente o confinamento. O que o monge do nada tem para nos ensinar é a afirmação do negativo, a opulência do empobrecimento. Não parece nada convidativo. E, no entanto, é: contém a esperança do sem esperança, equilibra-se na instabilidade, abre horizontes dentro da cela, o “claustro em trevas” contém “esse Infinito maior que todos os Infinitos, a que a linguagem dos homens batizou de impossível”.
IV. Coveiro de esperanças
- “Feliz o que não é eterno”: a melodia sinuosa da frase do poeta, prenhe de fartas adições de adjetivos e complementos, alonga o fôlego e desafia o leitor.
- Seu ponto final está do outro lado do horizonte, muito distante. A dinâmica do sentido contém um excesso de ideias e sugestões.
- Dario Veloso é, inegavelmente, da família de Mallarmé. Borbulha conteúdos imprecisos prostrados ao vazio.
- Ele parece querer eternizar o rumorejar poético para melhor o esgotar morto e vencido. Eis sua perversão verbal. Eis sua satisfação.
- Por outro lado, para nós, a pandemia não termina. Ela, infelizmente, encurta o que não é eterno e estende o que deveria ser provisório.
- Dario Veloso não seria, então, o “bom velho”, o coveiro dos nossos tempos de covid?
- Não é ele que nos indica o modesto sarcófago de nossas fanadas esperanças?
V. Adendo: bibliografia comentada
- A obra de Dario Veloso foi lançada nos anos 1960 e não ganhou reedição desde então, que eu saiba. Sugestão aos editores: relançar “Esquifes” com atualizações críticas.
- VELLOZO, Dario. “Esquifes”. In: Obras II. Curitiba: Instituto Neo-Pitagórico, 1969, p. 35-86.
- Dario foi um personagem fundamental da história da literatura paranaense e é mais estudado no sul do Brasil. Há teses importantes, geralmente vindas da UFSC, de cunho mais histórico. Estudos de crítica literária sobre sua obra são, entretanto, extremamente escassos. Cito uma tese, que recomendo:
- VASCONCELOS JÚNIOR, Gilberto Araújo de. “Dario Veloso e o apogeu da analogia”. In: O poema em prosa no Brasil (1883-1898): origens e consolidação. 2014. 301f. Tese (doutorado) Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014, p. 196-210.
- Vinni Gennaro dirigiu um documentário lindíssimo chamado “Dario Vellozo, o filho das estrelas”, de 2016, que pode ser assistindo aqui.
Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.