Deixe de moda
Apesar da respeitabilidade de Yves-Saint Laurent, o vestido criado por ele nunca será neoplasticista, como o neoplasticismo de Mondrian nunca será um vestido tubinho
Desde a Revolução Industrial, estabeleceu-se um suposto divórcio entre o que é academicamente concebido como arte visual, ou plástica, e arte aplicada, decorativa – e, ainda, para muitos, menor. Em breve, tudo o que não fosse pintura ou escultura (e seus tantos desdobramentos até a atualidade) estaria na categoria de arte aplicada, sobretudo a arte do vestuário (a indumentária) e absolutamente todos os componentes que sustentam a feroz e imbatível indústria da arquitetura de interiores, e.g., móveis, prataria, louças etc. Motivo de excessiva discussão, publicações, simpósios, essa proposta tem-se mostrado insatisfatória e incoerente.
A insatisfação deriva principalmente do fato de sermos compelidos a criar uma terceira categoria para arquitetura e paisagismo. Como se não bastasse, ter de acreditar que isso é possível. A incoerência é evidenciada na medida em que esse princípio só ocorre em teoria, na medida em que as duas, ou três, artes nunca existiram separadas, na medida em que elas se justapõem e coexistem e, sobretudo, na medida em que essas artes foram frutos de uma mesma avanguarda, não atuando, portanto, nem como oposição.
A Revolução Industrial na Inglaterra coincidiu com o fim da realeza européia e com o início de uma política colonizadora expansionista. Cabe notar que, apesar dos fortes vínculos da Revolução Industrial com o capitalismo selvagem, e apesar de ela ter nascido no bloco ocidental, isso não significa que tenha se restringido aos novos países capitalistas. Os avanços conquistados pelos soviéticos na indústria têxtil, assim como na bélica, são bons exemplos do expansionismo industrial no bloco oriental do hemisfério norte.
É natural que tantas mudanças conceituais, sociológicas e éticas tenham alterado o curso da história das civilizações e, inevitavelmente, o comportamento destas. O discurso nas áreas de humanidade teve de ser recodificado a fim de atender a essa nova realidade, isto é, os conceitos não eram mais os mesmos e os novos careciam urgentemente de um discurso que os justificassem. Neste momento, deparamos com dois traços paralelos, a arte aplicada e a visual, porém com direções totalmente opostas.
Por um lado, a propagação comunista, por mais irônico que soe, foi logística e conceitualmente fortificada pela própria Revolução Industrial. Tecidos estampados por artistas em voga massificaram a indumentária. Na década de 1920, à Tatlin, autora dos contra-relevos, fora encomendada a “formulação” do “uniforme ideal”, que atendesse às necessidades dos trabalhadores em sua rotina. À Varvara Stepanova, fotógrafa e desenhista casada com Rodchenko, os uniformes olímpicos. Exemplos não faltam para substanciar a intenção dos soviéticos, mesmo que inicial, de hibridizar arte e vida, popularizando a arte. Esse panorama propiciou a evolução do suprematismo e do construtivismo russo em direção ao produtivismo soviético – escola que culminou com o barroco stalinista e na qual o essencial e o ideal suplantavam o desejo e a cultura cumulativa. O produtivismo soviético teve seu correspondente no bloco ocidental com um movimento similar, porém, mais concentrado em itens domésticos, Arts and Crafts, também conhecido como art nouveau inglês, ou estilo Liberty, que teve como um de seus maiores mentores a figura poderosa de William Morris.
Por outro lado, a necessidade de criar um discurso que amparasse e instituísse a emancipação das artes visuais vis-à-vis a outros media resultou em uma série de manifestos que clamavam uma promoção do status quo dos artistas na sociedade, elevando-os ao nível sacerdotal, pois trabalhavam com criação, atividade até então exclusiva de Deus. Com isso, nasce uma nova faculdade, uma nova ciência, quase uma filosofia visual.
O passado não foi apagado. Igrejas deixaram de ser lugares exclusivos de oração, passando a ser uma das maiores fontes da difusão das artes visuais, assim como museus foram obrigados a expandir o leque de suas atividades, passando a expor, além de fósseis e múmias, arte, a fim de não perderem a audiência.
Mesmo sob as reiteradas pressões para uni-las e desuni-las, essas vertentes coexistem há mais de um século, e, mesmo considerando a produção em massa, é inegável que a arte e o artista conquistaram, ou criaram, uma realidade cada vez mais à parte de um mundo utilitarista, como se a arte fosse produto do céu, e a vida, da terra.
Concomitantemente, os media no campo das artes aplicadas, tais como a música, a literatura, a moda e, posteriormente, a indústria cinematográfica, também se beneficiaram com a Revolução Industrial e com os incessantes avanços tecnológicos que a sucederam, à medida que esses produtos passaram a ter mais qualidade e a ser mais acessíveis ao público em geral.
O contraste e a comparação propostos entre artes visuais e moda é pífio e literalmente superficial, pois se restringem aos elementos visualmente comuns perceptíveis, negando com isso toda sorte de estrutura, formalismo, função e intenção que estão na alma dos dois elementos.
Em 1965, quando Yves-Saint Laurent utilizou o neoplasticismo de Mondrian em seus vestidos tubinho, aplicando-o em suas estampas, não houve uma hibridização, e sim uma mera combinação. Apesar de as linhas retas, o quadrado, o retângulo e as cores primárias serem elementos prontamente reconhecíveis como do neoplasticismo, e apesar da popularidade e respeitabilidade da obra de Saint Laurent, o vestido em discussão nunca foi nem o será neoplasticista, como o neoplasticismo de Mondrian nunca será um vestido tubinho. Apesar de os vestidos, enquanto indumentária, serem impactantes, conceitualmente eles não satisfizeram seu fim.
O caminho inverso, isto é, artistas trabalhando, não diretamente com moda, mas com o vocabulário dessa, pode ser ainda mais equivocado, pois o resultado final, a obra, geralmente é impregnado de conotações íntimas, que sempre criam margem a múltiplas, às vezes desastrosas, interpretações, vide uma das partes mais significativas da obra de Beuys, Die Haut [A pele], sempre referida como “macacões de feltro” ou “feltros”. Esses equívocos são justificáveis. As pessoas estão mais familiarizadas com o vocabulário da moda que com o das artes visuais. Ao se confrontar com A pele, de Beuys, as mangas, as pernas e o próprio feltro atingem mais rapidamente a mente do espectador como indumentária que como obra de arte.
Apesar de não ter sido absolutamente a intenção, uma das únicas vezes em que as tentativas de hibridação entre arte–moda geraram um resultado, se não brilhante, peculiar foi a dos Parangolés de Hélio Oiticica.
Por fim, considerando que a história e a teoria que ora regem os vários discursos a respeito da arte visual nos séculos 20 e 21 são cientificamente evolutivas, a despeito da falta de exatidão na sincronia dessa evolução, e considerando que esse princípio também está presente nas artes aplicadas, podemos concluir que os avanços ocorrem sempre simultaneamente, podendo ou até devendo ser considerados reflexo uns dos outros. Voluntária ou involuntariamente, a intenção, a necessidade de expressão que resulta no gesto ou no ato da criação são geradas pela mesma força motriz, pelo mesmo desejo, tornando-se impossível a distinção entre os media de artes visuais e aplicadas. Com isso, concluímos que não há a disjunção entre arte e moda, mas que há, sim, a conjunção arte e moda, arte com moda, arte da moda e arte na moda.
Então, deixe de moda.
Charles Cosac
mestre em História e Teoria da Arte pela Universidade de Essex, na Inglaterra. Em 1993, fundou a primeira coleção compreensiva de arte latino-americana na Europa, University of Essex Collection of Latin American Art (UECLAA). Retornou ao Brasil em 1997, fundando a editora Cosac & Naify, que publica monografias sobre artistas, arquitetos e estilistas, além de títulos sobre história e teoria das artes visuais nos séculos 20 e 21.