“Como ser gay”, o novo livro de David Halperin

“Como ser gay”, o novo livro de David Halperin

‘How to be gay’, de David Halperin, traz ar fresco para um debate totalmente centrado na identidade gay, lembrando-nos de entender como é sentir-se gay.

 

A cultura gay está morta. E já vai tarde: surgida como uma forma de defesa por parte de uma minoria marginalizada, ela já não tinha mais função em uma sociedade cada vez mais acolhedora para os gays. Com a progressiva superação da homofobia, não precisamos mais ser gays clichê, afetados, purpurinados e adoradores de divas. Somos basicamente idênticos a homens heterossexuais, exceto por nossa vida afetiva e sexual.

Essa opinião é muito frequente dentro e fora do Brasil. E, no entanto, ela parece bater de frente com a constatação empírica de que a cultura gay tem muitos adeptos de todas as idades. Se precisamos de um atestado simples disso, basta olhar para os números de audiência do reality show Ru Paul’s Drag Race – um espetáculo sobre drag queens, divas pop, maquiagem e homens seminus –, que alcançou um milhão de espectadores em seu centésimo episódio, exibido pela Logo TV.

Para que, por que e como, então, é possível falar em cultura gay? A quem ela interessa? Nós ainda precisamos dela? Não seria ela um tesouro empoeirado de bichas velhas misóginas colecionadoras de antiguidades, talvez saudosas de suas juventudes? E se é assim, por que rapazes gays de vinte anos ou menos têm opiniões tão calorosas sobre a vitória da drag queen Alaska Thunderfuck em uma das temporadas da Drag Race? David Halperin, um professor da Universidade de Michigan, procura responder essas perguntas em seu livro How to be gay (Harvard University Press) – ainda sem tradução no Brasil –, que é o objeto desta resenha.

Homossexuais heteronormativos e heterossexuais viados: a insuficiência da política identitária

O que queremos dizer quando dizemos que somos gays? A intuição que a maior parte de nós teria hoje ao tentar definir um homem homossexual provavelmente partiria do pressuposto de que se trata de um homem que se sente atraído sexualmente por outros homens.

Essa intuição, embora pareça natural, é historicamente nova, e decorre de um processo que, digamos, destilou a essência do que é ser um homem gay até reduzi-la propriamente à homossexualidade, isto é, à atração sexual por outros homens, separando-a do conceito de identidade de gênero e especificamente dissociando-a da feminilidade. Trata-se de um fenômeno político que Halperin atribui, insistentemente, ao movimento de liberdades civis que nasceu com os Stonewall riots, a rebelião começada em junho de 1969 em Nova York e que é identificada com o início do movimento gay moderno. A conquista dos direitos civis pelos gays pós-Stonewall foi intensa e resultou, em boa parte do Ocidente, pela primeira vez em dois mil anos, na possibilidade de expressão pública da homossexualidade, consolidando-se na apropriação de institutos heterossexuais, como o casamento, bem como regras antidiscriminação e na própria descriminalização da homossexualidade. A estratégia desse movimento centrou-se na construção de um conceito novo na história da homossexualidade, que é o de identidade gay. Por meio dele, ser gay reduziu-se a ser homossexual, uma característica comum (a única) a todos os indivíduos que pudessem ser identificados como gays. Desse modo, ser gay tornou-se algo neutro, e por isso facilmente assimilável à sociedade heteronormativa.

O primeiro problema dessa abordagem é que ela incorpora mal pessoas gays que não são culturalmente neutras no que diz respeito à expressão social de sua sexualidade. Embora homens masculinos e “discretos” tivessem pouca dificuldade com a estética inaugurada com Stonewall, as bichas afeminadas, as que são espalhafatosas e exageradas e óbvias quanto à sua viadagem viram-se marginalizadas não só pela sociedade heteronormativa, mas pela comunidade gay também. A ética identitária olhava com desconforto, vergonha ou até ódio para os gays que ainda tinham essa estranha necessidade de se apegar a clichês antigos, os mesmos que foram tantas vezes usados contra nós pelos homofóbicos.

O segundo problema – e me parece que esse seja um dos argumentos mais fortes de Halperin no livro todo – é que nossa identidade política não dá conta de explicar a subjetividade gay. Dizer que gays são homens que gostam de homens não diz nada sobre o que é sentir-se gay, sobre o que fazemos enquanto homens gays. A verdade inconveniente é que muitos daqueles clichês tão maldosamente usados pelos homofóbicos nos descrevem relativamente bem em nossa existência social. Muitos gays são cabeleireiros, muitos outros são designers de moda, de interiores, bailarinos e arquitetos. Temos uma relação com sexo bem diferente da que têm os heterossexuais. Temos mais parceiros sexuais, mesmo depois que a promiscuidade chegou ao mundo heteronormativo, sobretudo com aplicativos como o Tinder. Gostamos de ópera, de divas, de musicais, de novelas, de gatos e de poodles, e muitos de nós nos sentimos confortáveis com isso. Para muitos de nós, tudo isso é muito natural e faz parte de nossa identidade, de uma maneira que A Identidade Gay (com iniciais maiúsculas para denotar a uniformidade do conceito) não consegue refletir.

Halperin parte daí para propor uma investigação da subjetividade gay. Sua hipótese é que ser gay é uma prática estreitamente vinculada à homossexualidade, mas diferente dela. Como prática social, é algo que pode ser aprendido e ensinado, o que significa que nem todo homossexual será culturalmente gay (basta que ele não tenha passado por nenhum processo de iniciação); por outro lado, algumas pessoas heterossexuais poderão ter, como de fato têm, uma grande identificação com a cultura gay, significando que elas se apropriam de uma certa sensibilidade e de um conjunto de práticas culturais. Há homossexuais que não são gays, e heterossexuais que o são, pelo menos culturalmente.

Bichas más, bichas loucas e o camp

Para identificar em que consiste a cultura gay, Halperin se propõe ao estudo de suas formas. Não é surpresa, portanto, que boa parte do livro se debruce sobre manifestações da cultura gay.

O conceito central que Halperin usa é o de camp, um termo em inglês de difícil tradução, que pode funcionar como adjetivo ou substantivo. O dicionário Michaelis traz como significado do substantivo camp (no sentido aqui empregado) “paródia, imitação burlesca”, e como significado do adjetivo, “afeminado, exagerado, afetado”. Outros dicionários oferecem definições menos pejorativas. O Webster’s define camp, grosso modo, como estilo e uma sensibilidade que denota a apreciação do extravagante, do dramático e do exagero de estilo, e fá-lo, embora não de forma exatamente irônica, sem pretensão de completa seriedade. É algo diferente de kitsch: quando chamamos algo de kitsch – um vaso de flores de plástico, por exemplo – colocamo-nos numa posição de inequívoca superioridade; reconhecemos o mau gosto e a falta de estilo do objeto e afastamo-nos dele dizendo que é kitsch, brega e, em última análise, feio. O camp não adota essa posição, porque a relação entre o sujeito e o objeto não é de desdém; ao contrário, é de reverência. Quando homens gays brasileiros dançam uma música da diva brasileira Inês Brasil em uma festa ou uma boate, geralmente o fazem com a consciência de que se trata de uma música pouco refinada, de pouco estilo, interpretada por uma cantora medíocre, mas nenhum deles dança com desdém pela Inês. Alguns deles a veneram.

Um exemplo recorrente no livro é o de drag queens que Halperin chama de Fire Island Italian Widows. São homens gays que vão a um festival LGBT nos Estados Unidos, chamado Fire Island Festival, vestidos em drag com roupas pretas que cobrem todo o corpo, em imitação de viúvas de certas regiões da Itália que adotam essa indumentária como expressão de luto pela morte de um ente querido, geralmente seus maridos. Tomada fora de contexto, essa atitude parece mera chacota de uma prática social revestida de grave seriedade, que é a expressão do luto, como se as drags estivessem zombando das viúvas. Ocorre, entretanto, que as “viúvas” são homens que de fato perderam pessoas queridas, geralmente amantes, para a AIDS. Ter esse fato em conta opera uma ressignificação da prática, que, embora não perca seu caráter de não-seriedade e leve ironia – afinal, as drags não são viúvas italianas e nem são mulheres, e não são socialmente vistas nem com gravidade nem com seriedade ao vestirem seus robes negros –, perde seu ar de chacota, afinal a dor que elas experimentam é completamente real. É, por isso, uma expressão do camp.

O camp é algo poderoso cultural e politicamente, porque expõe a artificialidade de formas sociais usadas para marginalizar homens gays, já que revela papéis sociais como encenações. Nada é autêntico na cultura gay, que subsiste de performance e dramatização. As viúvas drags de Fire Island não sofrem – “sofrem”, sempre entre aspas. Não haveria sentido em levar a sério seu próprio sofrimento porque a sociedade não levaria – essa sociedade que ignorou a epidemia de AIDS por anos e depois justificou-a como ira divina –, então elas o encenam, e como tal expõem como encenação outras formas sociais. Do mesmo modo, ao venerarmos, mesmo que sem seriedade plena, figuras femininas histéricas, barulhentas e exageradas (pense na glorificação pelos gays brasileiros de mulheres como Gretchen, Xuxa, Suzana Vieira e Inês Brasil), a cujo comportamento a sociedade heteronormativa reserva apenas desdém, colocamos em xeque a posição hierárquica do homem heterossexual que lhe permite olhar para essas mulheres – e, na verdade, também para os homens gays – de baixo para cima.

Essa índole performática de muito do que nós, gays, fazemos, ataca a própria pretensão de autenticidade das formas sociais, de que elas dependem para sobreviver. Isso se aplica, por exemplo, à ideia de masculinidade. Quando um homem heterossexual pratica, por assim dizer, sua heterossexualidade, manifestando comportamentos que são atribuídos à heterossexualidade masculina, ele o faz com pretensão de autenticidade, não como se houvesse uma tentativa de parecer heterossexual e masculino, mas como se sua masculinidade fosse uma expressão de sua essência. A performatividade do comportamento gay procura dizer que nada do que é social é essencial e que tudo é performance; que a masculinidade é tanto dramatização quanto uma drag queen com a cara cheia de maquiagem; que o sofrimento de uma viúva italiana não é mais nem menos sério do que o de um homem gay cujo amante morreu de AIDS. Nesse aspecto, a cultura gay é profundamente democrática, não por afirmar pretensiosamente que os gays têm direito ao respeito que é reservado aos homens heterossexuais e às viúvas italianas, mas por, digamos, nivelar por baixo, afirmando que ninguém merece a seriedade que pretende ter.

Bichas para sempre

A recepção de How to be gay passa longe de ser unanimamente positiva. Ele foi acusado de ser simplista e autoritário, reduzindo uma multiplicidade de “culturas gays” à cultura de seu autor. Entretanto, parece-me que o livro é um marco para aqueles que se interessam aspectos culturais e políticos do que é ser um homem gay.

Sua perspectiva traz ar fresco para um debate totalmente centrado na identidade gay, e seu maior mérito é nos dizer que estamos esquecendo algo muito importante: entender como é sentir-se gay. Se Halperin estiver certo, o movimento gay brasileiro precisa repensar suas estratégias, bem como o espaço que ele dá para o humor e para a ironia. Deveríamos repensar, ainda, nossa relação com os estereótipos, e em que medida negá-los totalmente não é dizer uma mentira que oprime muitos de nossa própria comunidade. Deveríamos refletir se reduzir a viadagem à homossexualidade, sem incluir todo o resto que estereotipicamente a compõe, não é uma reação transfóbica ao medo de que nos considerem efeminados. E deveríamos pensar tudo isso à luz de uma constatação empírica, que é a resiliência da cultura gay em uma sociedade que tem casamento gay, mas também tem uma legião de fãs de Ru Paul’s Drag Race.

E ainda que acreditemos que a cultura gay depende de uma situação de marginalização para existir, não decorre daí que nossa cultura está desaparecendo, porque é muito leviano afirmar que a homofobia está em vias de superação. É difícil explicar, por exemplo, os inúmeros assassinatos homofóbicos que ainda acontecem – em 2015, foi notificado quase um por dia no Brasil, onde casamento gay é uma realidade. Também não é fácil entender por que, se nossa sociedade é tão acolhedora para os gays, adolescentes LGBT cometam suicídio tão mais frequentemente que seus pares das maiorias sexuais.

Creio que o discurso de que a cultura gay está sumindo porque a homofobia está desaparecendo esbarra na obviedade de que a homofobia não está desaparecendo. A despeito das inegáveis conquistas das últimas décadas (talvez mais frágeis que imaginamos), a discriminação que sofrem os LGBT, inclusive homens gays, continua a causar impactos imensos, às vezes letais, para suas vidas. Se a cultura gay depende disso, então ela infelizmente perdurará por muito tempo ainda.

How to be gay não é um livro exauriente a respeito cultura gay – em certo sentido, ele é mesmo bastante limitado – mas é eficaz para aduzir as suas conclusões. Como Halperin admite, dando um belo panorama do que ficou de fora:”Tenho consciência das limitações de minha abordagem. Gostaria de tê-la estendido de modo a cobrir muitas facetas da cultura gay masculina e escrever outros capítulos sobre elas. (…) Ópera, cultura pop, moda e estilo, arquitetura e design, impressão, pintura e as belas artes; o apelo gay da cultura britânica, da cultura francesa, da cultura árabe, da cultura japonesa; divas; dishing, bitching e camping; urbanidade, cortesia e sagacidade; até ter bichos de estimação (…) E sexo, o que dizer do sexo? Pegação, modificação corporal, relacionamentos abertos, festas de nicho, baladas, pornografia, relacionamentos entre gerações, amizade, e a distinta combinação entre promiscuidade e solidão, entre intensidade erótica e austeridade, esteticismo e asceticismo (…)”

Temos muito a aprender com Halperin sobre o movimento gay, mas sobretudo sobre nós mesmos. Ser gay não vem com manual de instruções, e o livro How to be gay não é um, mas ele nos ensina que somos uma cultura além de uma identidade, e que talvez devêssemos dedicar mais energia a construí-la e explorá-la.

Arthur Cristóvão Prado é Advogado da União, atuando perante o Supremo Tribunal Federal. Formou-se em direito em 2015 na USP, com passagem na Universidade Livre de Berlim. Foi coordenador do Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade, também na USP

How to be gay
David M. Halperin
Harvard University Press
560 págs. – R$ 66,33 (livro); R$ 49,09 (e-book na Amazon)

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