Como se não tivesse havido linguagem

Como se não tivesse havido linguagem
Fotos Bob Sousa

 

“Entre todas as diferentes expressões que podem traduzir um de nossos pensamentos, há somente uma que é boa. Nem sempre a encontramos ao falar ou escrever: contudo, é verdade que ela existe”.

La Bruyère, citado por Jean Paulhan; tradução de Paulo Neves.

Os realistas, de Will Eno, parece estabelecer incontestáveis pontos de contato com a dramaturgia de Anton Tchekhov (1860-1904), Samuel Beckett (1906-1989) e Edward Albee (1928). A situação básica dos dois casais que se conhecem por serem vizinhos em um condomínio campestre, afastado das atribulações da cidade grande, e que criam, meio por acaso, algum vínculo de amizade – talvez estimulados mais pela solidão do que propriamente pelo velho sentimento grego da philia – soa à primeira vista por demais tchekhoviana, seja pelo fato de o quarteto estar confinado à vida no campo, onde o tempo distendido e volátil convida ao exercício de certa interioridade, seja em virtude de eles se distraírem, jogando, literalmente, conversa fora, ação esta em que os sucessivos turnos de diálogos mal dissimulam a escassez dos fios narrativos enredados na trama geral a que os quatro personagens estão ligados e a consequente precariedade de suas histórias de vida. Mas a natureza de tais diálogos também corteja a prosa dramatúrgica do autor de Esperando Godot, disposta a evidenciar – pela via de um irônico paradoxo – o fracasso da comunicação entre os indivíduos e a falência de seus discursos. As quatro figuras de Os realistas não se furtam a uma obstinada “tentativa de comunicação onde toda comunicação é impossível e não passa de vulgaridade simiesca”, fazendo ecoar um dos mais conhecidos impasses beckettianos, apresentado pelo autor em seu célebre ensaio sobre Marcel Proust. Por fim, a história delineada por Will Eno remete ainda a pelo menos três das fabulações teatrais de Edward Albee: a da disputa de casais de Quem tem medo de Virgínia Woolf?; a do assalto à sensibilidade do homem comum de A história do Zoo e a da irrupção estranha e incontrolável do mal-estar nos corpos modernos de Equilíbrio delicado.

Expostas dessa maneira, tais ideias nos levam a pensar que a peça de Will Eno nada mais é do que uma forma anacrônica, devotada ao passado, talvez subjugada pelo excesso de reverência a esses três mestres da dramaturgia ocidental. Entretanto, elas funcionam somente como portos de passagem por meio dos quais é possível compreender as potencialidades desse belo texto que constitui Os realistas – desdobrado, por sua vez, no belo espetáculo dirigido por Guilherme Weber, de cujo elenco fazem parte Debora Bloch, Emílio de Mello, Fernando Eiras e Mariana Lima, estreado em São Paulo, no Teatro Porto Seguro, no último dia 2 de abril. Em que pese a gratuidade do adjetivo que se flexiona a partir dela, a beleza aqui pode ser entendida pelo conceito de “expressão bem-sucedida” de que fala Benedetto Croce em sua Estética, convertido ainda em “expressão pura e simples”.

Os realistas é daqueles textos dominados por admirável fluência e naturalidade, estabelecendo com o público uma empatia imediata. Se se satisfizesse somente com esse recurso – uma bem-vinda calibragem de elementos artísticos sedutores –, a experiência seria frustrante, porque estaria reduzida ao modus operandi da indústria cultural com suas generosas doses de fascinação inócua e vazia. Entretanto, a grande qualidade da peça – e do espetáculo também, como se verá a seguir – é sair da esfera desse registro mais vibrante, próximo ao espetaculoso, digamos assim, no qual a inventividade se transforma rapidamente em convenção, e ousar atingir camadas mais densas. E, mesmo quando se mostra incapaz de tanger a densidade, Os realistas é uma obra de expressão bem-sucedida, a falar com inegável franqueza e vivacidade do homem contemporâneo e dos tempos ocos e superficiais que o circundam.

O texto de Will Eno coloca em cena quatro personagens comuns às voltas com seu direito inalienável à expressão pessoal e à comunicação. (Todos em maior ou menor medida são muito eloquentes; hábeis nos discursos; às vezes, até mesmo rebarbativos). Se atentarmos para o fato de que na raiz latina do verbo communicare estão implícitas as ideias de “partilhar”, “pôr em comum”, “deixar agir o comum”, essas figuras nada extraordinárias estão fadadas aos únicos compartilhamentos que lhes cabem realizar: os das matérias ordinárias que as tocam de perto e as irmanam. A comunicação que eles almejam estabelecer entre si talvez seja a do intercâmbio de experiências complexas, mas o resultado acaba apontando quase sempre para a inescapável vivência de trocas meramente fáticas. Eles fazem parte de uma ampla e indiferenciada vizinhança, que podemos chamar não sem pouca ironia de comunidade dos semelhantes, e parecem se satisfazer com isso. Os realistics Joneses (infelizmente as nuances semânticas presentes no título original se perdem na tradução para o português) não aspiram mais à transcendência; a eles basta o pragmatismo. Da vida ao ar livre; dos diálogos corriqueiros; das coisas sem ênfase

Entretanto, há um elemento de disrupção que surge paralelamente às conversas mantidas e com elas estabelece um poderoso jogo de emulação. Trata-se da doença rara, estranha, enigmática que acomete os dois personagens masculinos – moléstia esta que, embora descrita e examinada no nível da logicidade reinante, faz a atmosfera geral privar, de tempos em tempos, de um caráter ilógico, misterioso, irracional. Ambos os Jones (o equivalente para nós seria “os Silva” de que as tradutoras fizeram acertado uso), comuns até não poderem mais, são acometidos por uma doença rara. Assim, a raridade da moléstia os conecta entre si tanto quanto o ordinarismo de seus comportamentos. Seria essa uma anedota pós-moderna, equivalente ao “Nada é mais engraçado do que a infelicidade” que a Nell beckettiana profere em Fim de partida?

É a partir desse momento de disjunção que o texto de Eno solicita dos atores bem mais do que a reprodução treinada de diálogos espirituosos, vivazes e brilhantes – fundamental ponto de viragem que a direção de Guilherme Weber sabe muito bem explorar. Debora Bloch, Emílio de Mello, Fernando Eiras e Mariana Lima conferem às suas performances a habilidade técnica e os eflúvios criativos que deles se pode mesmo esperar, mas não se amoldam aos contornos de uma performatividade previsível. Ou acomodada. Ou autorreferente. Embora calcado em ritmada eloquência, o texto deixa de dizer muitas coisas, e nesses intervalos é que os intérpretes se sobressaem. Cada um deles, a seu modo, constrói sua figura em cena colocando-se (ou colocando-a) também à margem das palavras com as quais Will Eno os veste. E esse desnudamento garante momentos especiais. Quando a palavra fracassa na transmissão de referenciais concretos, ou mesmo quando os elementos cômicos são por demais evidentes, a energia corporal-sinestésica de cada um dos atores recusa-se a se conformar com as platitudes, procurando roçar o horizonte do inefável.

Mariana Lima é a atriz que deixa emanar a aura mais trágica em cena, palmilhando lentamente a encosta da consternação e fazendo expressivo uso de sua voz sob a forma de instabilidade e hesitação. Contraste interessante estabelece o trabalho dela com o de Debora Bloch, mais afeito à construção de uma bem dosada exterioridade, que ora se precipita em humor, ora denuncia pateticamente a impossibilidade da introspecção. Contraponto semelhante ocorre na atuação do par de intérpretes masculinos. Emílio de Mello transita do tipo eloquentemente seguro ao indivíduo surpreendido pela própria vulnerabilidade, lançando-se a uma rara densidade de nuances em cena; ao passo que Fernando Eiras aposta mais na solenidade algo caricatural de seu personagem – senhorial, combalido, hierático, claudicante.

No espetáculo da estreia paulistana, a sempre generosa plateia de convidados procurava locupletar-se constantemente de histrionismo e excitação. Entretanto, o espetáculo – entenda-se a visível afinação que há entre a direção e os atuadores – não lhe adulou o gosto, mantendo-se firme em seu propósito de trilhar o caminho muito mais do nonsense, de que ele se vale o tempo todo, do que o da comicidade espontânea e desabrida da qual ele mantém calculada distância. A frustração que podermos vir a ter, ao reconhecermos que o texto de Will Eno não priva do mesmo lirismo sublime de O jardim das cerejeiras, do mesmo lirismo paródico de Dias felizes e do mesmo lirismo dramático de Equilíbrio delicado, converte-se paulatinamente na revelação de uma percepção surpreendente: impossibilitado de empunhar a mesma pena de Tchekhov, Beckett e Albee e não de todo imune à sensaboria da arte e da cultura pós-modernas, Eno em Os realistas é capaz de captar um sentido novo, raramente objetivado em cena com tal envergadura, criando um atraente exercício para torná-lo acessível às plateias contemporâneas.

Alguma coisa de intangível segue seu curso enquanto assistimos a todas aquelas cenas com enfático interesse. Mas, a despeito de esse interesse também poder se revelar meramente fático, Os realistas quer ousar mais, procurando desinstalar em nós a ilusão objetivista, por meio da aposta na elipse e na oclusão. Não é pouco para uma peça que chega a São Paulo tangida pela dinâmica do teatro comercial. O resultado maior do espetáculo é fazer vibrar nossos sentidos e nosso sentimento, esteja este, como queria Maurice Merleau-Ponty, conectado ao acaso, ao destino ou a nossa liberdade.       

Os realistas
Onde: Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740 – São Paulo)
Quando: até 29 de maio sextas e sábados, às 21h; domingos, às 19h
Quanto: de R$25 a R$100
Info: http://teatroportoseguro.com.br/

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