Como se a linguagem não mais existisse

Como se a linguagem não mais existisse

“… depois da possibilidade da palavra vem a voz de uma música,
a música que diz o que eu simplesmente não posso aguentar”.

(Clarice Lispector)

“Crise do drama” e “teatro pós-dramático” são expressões usadas correntemente nos dias de hoje por atores, diretores, dramaturgos e pesquisadores de teatro em referência ao esgotamento formal e estilístico do gênero que durante muito tempo foi tratado como uma expressão canônica, sendo confundido com o próprio fenômeno teatral. Que a modernidade crítica destituiu o gênero dramático de sua posição dominante não resta dúvida. Basta observarmos as mais variadas manifestações das chamadas teatralidades contemporâneas para comprovar que elas enunciam a crise de alguns dos elementos essenciais sobre os quais o drama instituiu seu modus operandi, sobretudo, as categorias de fábula, personagem e diálogo.

Significando em grego “ação”, o drama, segundo a concepção de Hegel, é o gênero “que reúne em si a objetividade da epopeia com o princípio subjetivo da lírica”, na medida em que nele se apresentam fatos e ocorrências do mundo objetivo mediados pela interioridade dos sujeitos. Ocorre que, por se constituir uma forma fechada, apartada de tudo aquilo que lhe seja externo, o drama convocaria a plateia a experimentar com o que acontece no palco uma relação essencialmente passiva, de pura contemplação das ações descortinadas à frente dos seus olhos, que demandariam do espectador uma entrega absoluta ao mundo dos sentimentos encenados.

Entretanto, a despeito das inúmeras conquistas obtidas pela renovação da linguagem teatral nas últimas décadas, é preciso admitir que a forma dramática continua estabelecendo uma comunicação instantânea com o público, exercendo sobre ele uma fascinante atração especular, movida, sobretudo, pelo enfoque psicológico nas relações pessoais e familiares – combustível que ainda funciona no teatro como uma espécie de segunda natureza, capaz de acionar, sim, a consciência crítica pela via da subjetividade.

A nova temporada de Dançando em Lúnassa (o espetáculo foi produzido pela primeira vez em 2004, cumpriu duas temporadas em São Paulo e viajou depois para o interior do estado), do dramaturgo irlandês Brian Friel, montada pela Cia. Ludens, com direção de Domingos Nunez, é um ótimo exemplo de como a forma dramática pode ainda constituir uma excelente experiência teatral. A peça narra a história das cinco irmãs Mundy – Kate, Maggie, Agnes, Rose e Chris – que vivem com muita dificuldade na pequena cidade irlandesa fictícia de Ballybeg durante o verão de 1936, às vésperas do festival em homenagem ao deus pagão da colheita, Lugh (nome do qual se origina o título do texto). Quem rememora os acontecimentos daqueles dias é Michael, o filho que Chris teve sozinha, “fora dos laços sagrados do matrimônio”. Cindindo sua narração entre o presente e o passado, Michael se recorda do misterioso retorno a Ballybeg do padre Jack, seu tio, mandado de volta da África (para onde fora em missão evangelizadora) muito provavelmente por não ter correspondido no continente africano à ortodoxia católica. Lembra-se também das duas visitas que Gerry, seu errático pai, faz a Chris, prometendo-lhe coisas que nunca chegará a cumprir. E evoca ainda a importância do primeiro aparelho de rádio adquirido pelas irmãs, responsável pelo clima de festa e alegria ao qual as cinco mulheres procuravam constantemente se entregar a fim de fugir da dura realidade que as espreitava.

Considerado o dramaturgo de língua inglesa mais importante ainda em atividade, Brian Friel explora em Dançando em Lúnassa (o texto foi escrito em 1990) conteúdos essencialmente dramáticos – voltados à relação problemática dos indivíduos consigo mesmos e com os outros –, que se projetam sobre uma moldura épico-lírica, cuja intenção é a de realçar a relação do narrador, Michael, com a memória histórica e social da Irlanda.

Domingos Nunez, tradutor do texto em português e especialista na dramaturgia de Friel (é dele o primoroso texto de apresentação da peça, editada pela Hedra), extrai da montagem ora em cartaz no Viga Espaço Cênico alentadas doses daquela mistura de intensidade, delicadeza e humor que somente grandes autores conseguem atingir ao escreverem dramas. Podemos dizer que Dançando em Lúnassa é uma verdadeira aula de direção, seja pela concepção geral do projeto, pelo ritmo preciso do espetáculo, pela condução dos climas e das nuances estabelecidos em cena, seja ainda pelo excelente rendimento dos atores, que merecem obviamente destaque especial.

A temática geral, o estilo dos diálogos e a natureza dos personagens fazem com que a dramaturgia de Brian Friel se assemelhe muitíssimo à de Anton Tchekhov, exigindo atores que transitem na corda bamba das emoções mais sutis, dispostos a realçar os subentendidos e as meias-tintas dos quais se extraem os devidos efeitos de força e de delicadeza. A despeito do competente trio de atores masculinos que está em cena, Dançando em Lúnassa, como quer mesmo o texto de Friel, é um espetáculo para que atrizes brilhem. No caso, aqui, para atrizes em estado de graça.

Denise Weinberg imprime à centralizadora Kate a necessária aspereza, sem com isso cair na tipologia fácil. A atriz procura a todo momento compreender a dureza de sua personagem, identificando nela uma dimensão humana da mais absoluta dignidade. Vale destacar a portentosa presença física da intérprete, cuja voz igualmente potente está a serviço, ora da intensidade dramática, ora da ironia ferina. Sandra Corveloni cria sua Maggie com uma vibrante vivacidade, responsável pelos momentos mais engraçados e deliciosamente lúdicos do espetáculo. Clara Carvalho dá a Agnes a devida interioridade, assumindo uma máscara de resignada amargura bastante comovente. Isadora Ferrite confere à problemática Rose um tom patético e lírico ao mesmo tempo, sabendo extrair da personagem um comportamento físico e vocal confrangedor. Por fim, Fernanda Viacava constrói sua Chris com uma sensualidade bastante franca, meia-irmã do mais atilado dos romantismos. Nota-se ainda a bela figura feminina que a intérprete encarna em cena.

Um texto cuja dedicatória se dirige à “memória daquelas cinco mulheres corajosas de Glenties” não poderia mesmo ser igualmente generoso com o elenco masculino. Entretanto, os três intérpretes do espetáculo defendem seus personagens muito bem. O Michael de Bruno Perillo é tão discreto na caracterização do menino quanto veemente na figura do narrador. O vacilante padre Jack de Mário Borges é um tipo que transita com muita segurança entre o misterioso e o risível. Já o Gerry de Renato Caldas, levemente caricatural, reforça na medida certa a opacidade dos personagens masculinos frente a mulheres tão fortes.

Nas mãos de outro autor, o material narrativo de Dançando em Lúnassa poderia soar puro maneirismo sentimental. Entretanto, Brian Friel não perde de vista em nenhum momento de sua longeva carreira a austera musa irlandesa, que sempre procurou converter a linguagem do sentimento romântico na expressão realista das sondagens psíquica e ontológica. Não à toa, Michael se lembra das tias com amor e admiração, não obstante sinta-se feliz por abandoná-las ao final da narrativa. Não à toa também nenhum dos intérpretes se entrega ao naturalismo mais estrito e exclusivo. Todos eles, antes, entram no jogo das convenções naturalistas e dele saem com muita desenvoltura, oscilando entre a realidade mimética e o lirismo crítico.

A força do texto – que diretor e atores souberam compreender tão bem – advém das sinuosas conexões que as palavras estabelecem com as emoções. Uma vez que a linguagem verbal cristalizada em discursos racionalizados não é digna de confiança, somente resta àquelas mulheres se conectarem com suas emoções mais profundas por meio da música e da dança.

Ao final do espetáculo, o público é tomado por um sentimento de prazer e entusiasmo em razão do convívio com esses personagens tão luminosos em sua crepuscular ficcionalidade. Diante de uma cena contemporânea mergulhada em toda sorte de mediações críticas, a montagem de Dançando em Lúnassa triunfa sobre as limitações do próprio gênero dramático, embora não saibamos ao certo justificar esse desafiador anacronismo.

Dançando em Lúnassa
Onde: Viga Espaço Cênico  – Rua Capote Valente, 1323 – Pinheiros
Quando: até 10 de abril – quartas e quintas-feiras às 21h
Quanto: R$30,00
Info.: (11) 3801-1843

welingtonandrade@revistacult.com.br

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