Como o jornalismo hegemônico contribui para o surgimento de Bolsonaro
(Ilustração: Lori Lipton/Reprodução)
As eleições do final de ano continuam extremamente indefinidas. Não só por conta da expectativa em relação à situação do candidato favorito – Luis Inácio Lula da Silva -, que continua preso e com a elegibilidade fortemente ameaçada, mas também pela extrema dificuldade da direita em articular um candidato viável. É nítida a existência de um vácuo na opinião pública que ainda não foi preenchido hegemonicamente por nenhuma das forças.
Os motivos que levam a esta situação podem ser percebidos nos discursos da maioria: o desencanto com a política, uma tendência de se priorizar o que a pesquisadora Esther Solano chama de “guerras culturais” – a colocação, em primeiro plano, das divergências em relação à agenda da diversidade (posta pelos movimentos negros, feministas e LGBTQI+) e a temática da luta contra a corrupção em detrimento da discussão da política econômica.
Com, isto surgem algumas aberrações político-ideológicas: uma é a essencialidade da agenda da diversidade dissociada das estruturas sócio-econômicas. Há, assim, uma fragmentação da agenda política, transformando a defesa dos direitos destes setores oprimidos em busca de privilégios destes mesmos setores. A sociedade da inflação das informações que temos tratado aqui favorece esta situação: a luta pela visibilidade midiática se confunde com presença no poder. Daí que reivindicações de maior presença midiática não são articuladas em uma dimensão crítica mais geral da estrutura dos meios de comunicação (que refletem, por sua vez, as estruturas econômicas e sociais do país) mas como deformações comportamentais. Ao personificar os conflitos da agenda da diversidade, o cenário de guerras culturais se fortalece.
A segunda aberração político-ideológica é o deslocamento dos conflitos das classes e segmentos sociais para a de “governo contra cidadãos”, razão pela qual os problemas do país se devem a excesso de impostos, de mordomias, corrupção e outros problemas que levam a um verdadeiro preconceito contra os que ocupam cargos públicos (algumas vezes, estendendo-se aos funcionários), situação que é aproveitada pelos defensores do “Estado mínimo”. Porém, ao mesmo tempo em que se há este universo de críticas, a esmagadora maioria da população defende a educação pública, a saúde pública, é contra a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários.
Esta aparente contradição – uma crítica a excessos do governo tanto por conta das corrupções e do excesso de impostos, e a exigência de serviços públicos de qualidade – reside na tecnicização e despolitização das discussões econômicas, usadas e abusadas nas reportagens da mídia hegemônica. Isto é, o discurso tecnicista da economia é utilizado para justificar as restrições nas políticas públicas, e o caráter assertivo desta narrativa não dá margem para que se reflita que decisões econômicas são de caráter político. Estabelece-se, aqui, o que Freud chama de uma “mente infantil” quando critica aqueles que têm aversão à investigação empírica que possa, eventualmente, contrariar suas concepções de mundo.
É muito interessante que os órgãos de mídia hegemônica, tão defensores dos estudos empíricos e pesquisas quantitativas (os dados destas enquetes costumeiramente viram manchetes) nunca fazem estudos e/ou pesquisas que meçam o impacto de medidas como a Emenda Constitucional que congelou os gastos públicos por 20 anos; o contingenciamento de verbas na educação e saúde; entre outros. Exemplo disto foi a proposta governo estadual de São Paulo de “reorganização das escolas estaduais”. Os jornais da mídia hegemônica apoiaram a proposta vista como uma “racionalização” do sistema, que implicaria uma “otimização” dos recursos. O movimento das ocupações de escolas pelos secundaristas acabou não só desmoralizando o projeto, mas evidenciando problemas: dificuldade de mães e pais que têm filhos de várias faixas etárias em levá-los para escolas distintas; risco para adolescentes e jovens de bairros diferentes com rivalidades de grupos criminosos entre si em estudar na mesma escola, entre outros. E, diante da desmoralização do projeto governamental, o argumento de um editorial da Folha de S. Paulo foi que não houve uma correta e eficiente comunicação do governo estadual com a população.
A esta infantilidade da arrogância da mente de que fala Freud, soma-se o “desamparo”, presente nas narrativas de crítica destrutiva contra políticos, Estado, crime, violência e até os “privilegiados da agenda da diversidade”. Fruto de uma percepção de que o “esforço pessoal, o andar na linha, respeitar as leis” não traz automaticamente a “felicidade”, sensação imposta autoritariamente nesta sociedade da inflação das informações. Daí o sentimento de desamparo adquirir uma conotação moral, ressentida, de mágoa com o outro.
Outra contradição. O jornalismo surge, na modernidade, como uma atividade de expansão da esfera pública, na perspectiva do esclarecimento do cidadão. Este, impregnado de uma razão esclarecedora, torna-se apto para participar do debate público e, assim, construir o que Rousseau chama de “contrato social” – uma pactuação centrada na dimensão da racionalidade.
O jornalismo hegemônico no Brasil passa ao largo disto. Contribui para a construção deste sujeito com essas aberrações cognitivas e políticas. Por isso, corre-se o risco de, por meio de um processo democrático, instituir no poder uma pessoa abertamente autoritária e antidemocrática como Jair Bolsonaro. Por mais que os órgãos da mídia hegemônica objetam esta figura política, seu surgimento e fortalecimento é produto de aberrações políticas e cognitivas que a mídia hegemônica ajudou a construir.