Coletes Amarelos: a luta continua

Coletes Amarelos: a luta continua
O movimento dos coletes amarelos é um movimento de protesto iniciado com manifestações na França em outubro de 2018 (Reprodução)

 

Macron está furioso que os “coletes amarelos”, em grande maioria, não só se recusaram a participar do “grande debate”, mas também em se organizar de forma política. Em um partido, por exemplo, para poderem participar, através de representantes, do processo de reorganização social e política da nação que ele, sob pressão, prometeu. Promessa que não manterá – já está anunciando que o resultado do “grande debate” não será comunicado antes de alguns meses… Considera, todavia, a recusa de organização como um insulto à forma democrática do Estado e a define como um rompimento para a definição popular do discurso político da nação.

Os “coletes amarelos” consideram, por sua vez, radicalmente manipulada, distorcida e enganosa aquela participação. Agora, parece que o consenso (sempre além dos 50%), que os “coletes amarelos” ainda reúnem, está largamente ligado a esta recusa de representação constitucional – talvez até mais que a adesão às radicais reivindicações salariais e de reequilíbrio fiscal que apresentam. As duas coisas – a crítica fiscal e a recusa à participação – caminham juntas na consciência pública francesa: todos compreendem, de fato, que o Estado neoliberal de Macron (representativo e constitucional) está destruindo as políticas públicas de bem-estar social, o “comum” dos franceses, e que o faz de forma democrático-representativa e que não pode fazer diversamente, apesar de toda reflexão tardia ou arrependimento. Os “coletes amarelos” representam assim uma proposta de reformas democráticas radicais que não permitem destruir o “comum” de que os franceses desfrutam e que, ao contrário, incidem sobre uma produção/organização de riqueza mais democrática. A “democracia direta” que reivindicam deve ser lida neste sentido, isto é, como instrumento político (nacional e/ou europeu – isto está em questão) para afirmar juntos salários sociais e uma governança democrática desde baixo – trata-se, em suma, de “democratizar a democracia”.

Consideremos o que aconteceu até agora nestes três meses de luta. Os “coletes amarelos” são reconhecidos como um contrapoder, que não quer ser absorvido, ou, em qualquer caso, tornar-se orgânico à máquina e aos instrumentos de neutralização do Estado soberano, mas querem funcionar no terreno social para opor àquela máquina um contrapoder.

Para melhor compreender, deixemos por um momento a crônica destes últimos três meses de luta para nos perguntarmos, em geral, o que significa contrapoder. Significa, em primeiro lugar, construir instituições que desestabilizem o poder político e desarticulem sua capacidade de comando da sociedade. O contrapoder é uma capacidade organizada de resistência, de desobediência, uma potência negativa de ordem legítima. A manifestação do dia 9 de março, repetida 18 vezes até agora, é uma instituição de contrapoder. Em segundo lugar, o contrapoder se apresenta como capacidade de desconstruir a estrutura econômica do país. Os “coletes amarelos” atacaram até agora, sobretudo, a circulação de mercadorias. Os sábados de luta no centro da metrópole prejudicam o mercado. E como a produção, circulação e reprodução passaram a ser funções de um ciclo contínuo, os danos causados pelo ataque à circulação são relevantes para a quantificação do PIB. O gancho com os sindicatos que os “coletes amarelos” parcialmente estabeleceram e a organização de lutas autônomas também nos setores diretamente produtivos que eles começaram a promover, a implantação da “luta de sábado” com novas práticas de greve, estão permitindo, assim, ao movimento dos “coletes amarelos” de se apresentar também como contrapoder econômico. Os sindicatos – a base da CGT (Confederação Geral do Trabalho) em particular – parecem gostar e convergir em suas manifestações. Em terceiro lugar, contrapoder quer dizer construir organização alternativa àquela da política e da representação existentes. Um trabalho efetivo neste sentido é aquele que as assembleias, as associações, as “assembleias das assembleias” estão realizando, em resumo, aquela série de nós que agora estão começando a coligar no território as tramas da resistência.

Mas fica claro que a alternativa construída pelos “coletes amarelos” apenas se tornará real quando, com o aperfeiçoamento dos mecanismos de organização interna ao movimento (ou seja, com a construção de um mecanismo de decisão adequado), o movimento começará a inventar, a experimentar e produzir também um modelo – necessariamente “outro” – de organização do poder estatal.

Estamos neste momento? Não. Mas é a primeira vez que uma ampla tomada de consciência – a um nível verdadeiramente massificado – da necessidade de “democratizar a democracia” aparece em um país certamente não subdesenvolvido do ponto de vista do funcionamento do aparato público e do governo representativo. Esta “tomada de consciência” foi mantida ao longo dos três meses de luta dos quais saímos, apesar das ferozes calúnias e provocações (antissemitismo, fascismo etc.) a que o movimento foi submetido e malgrado o nível de violência que foram submetidas as manifestações, sob injunção do governo e legitimação de uma nova estrutura legislativa.

Esta “tomada de consciência” será acentuada pela rejeição das reformas (Radicais? Efetivas? Ou somente propagandísticas?) que ao fim do “grande debate” (sempre que não seja, como é provável, prolongado para combiná-lo com a campanha eleitoral para a Europa) Macron declarou em 15 de março. Não haverá resposta às principais questões levantadas pelos “coletes amarelos” – sobre o “custo de vida”, as desigualdades sociais, os imposto, os salários. O movimento dos “coletes amarelos” então se aprofundará. Macron sabe disso. Agora ele começou um idílio com a direita para reconquistar uma plateia de apoio. A repressão continuará e se aprofundará. Se a resistência e a luta dos “coletes amarelos” contra as políticas neoliberais continuarem, elas merecerão, aos olhos do poder, um passo adiante no autoritarismo e na violência governamental.

Eu penso que, neste ponto, a tarefa dos “coletes amarelos” seja desenvolver um contrapoder, surgido da resistência, a ponto de constituí-lo como um “poder-duplo” – isto é, como um programa de lutas e de instituições que se oponham radicalmente ao poder existente.

Proponho-o, sabendo que em sua maioria os “coletes amarelos” não aderem hoje a palavras de ordem radical, que tenham um valor revolucionário. Estou convencido de que, mesmo que o nível político tenha se desenvolvido imensamente nestes meses de luta, na maioria dos casos, os “coletes amarelos” reivindicam o bem estar desfrutado antes da grande crise e um desenvolvimento relativo àqueles anos de relativa felicidade, ao invés de esperar por mudanças e conquistas revolucionárias. E penso também que os grupos substanciais que se movem desde hipóteses radicais de democratização da democracia são, de todo modo, marginais com relação à maioria dos “coletes amarelos”.

Contudo, há marginalidades e marginalidades, e aquela dos grupos radicais dos “coletes amarelos” está bem estabelecida na multidão. As recusas de Macron, a rigidez da máquina estatal e o aprofundamento da crise levarão a uma radicalização do enfrentamento e ao fortalecimento dos grupos até então considerados marginais e, provavelmente, à sua hegemonia. De qualquer modo, mesmo agora, a demanda por colocar o Estado a serviço das reivindicações materiais e democráticas que eles expressam já vem acompanhada da postulação por sua modificação, para que possa, verdadeiramente, ser posto a serviço da multidão em luta – o que requer uma reforma radical.

Não se trata propriamente tanto de “tomar o poder”, mas de exercê-lo “de maneira diversa”, quer dizer, preencher esse “domínio” de formas e de conteúdos que redefinem o poder. As formas da nova democracia, de democracia direta que se formam no processo de luta e de organização do contrapoder, requerem ser refletidas na “tomada do poder”, na dissolução do Estado soberano e na construção de uma organização federal dos territórios e das metrópoles. Organizar, portanto, um contrapoder neste sentido, passando ao exercício de um “poder-duplo” para organizar uma democracia direta – este é o germe dentro deste movimento excepcional.

O caminho indicado pelos “coletes amarelos” é muito sábio e forte. Cediço que, nas discussões e práticas que se desenvolveram após 2011 entorno do problema da organização dos movimentos, e após as experiências dos OWS (“Occupy Wall Street”) e dos “Indignados”, não prevaleceu a linha de organização hoje sustentada pelos “coletes amarelos”. Ao contrário, as propostas tradicionais dos partidos foram expressas e impostas: uma “parte” deve organizar-se para organizar “todo” o movimento, para atuar como um guia estratégico na conquista do poder. É a velha via socialista (vanguardista) ou burguesa (“leaderística”): mas esta via não parece querer ser percorrida (nem parece percorrível) pelos “coletes amarelos”. Até agora, eles descartaram qualquer solução partidária e tem denunciado aqueles que a propõem como inimigos do movimento. Nem parecem ter simpatia pelo outro caminho que foi experimentado: aquele de ser organizado, não por um grupo externo, mas por uma vanguarda nascida de dentro do próprio movimento. Isso deveria explicar aos participantes da aventura multitudinária do movimento a necessidade de uma convergência estratégica e propor a sua gestão. O princípio é justo e respeita o refrão que sempre esteve presente nos movimentos vencedores: a estratégia para o movimento, e a tática para o partido. Mas o temor que esta saudável formulação possa ser mistificada e derrubada é forte e – por enquanto – barra que esta via possa ser percorrida. Existem muitos exemplos para que a impeçam.

Considere, por exemplo, a experiência do “Podemos”. Ele seguiu o caminho da “vanguarda”. Tinha grandes possibilidades e as percebeu. Madrid, Saragoza, Barcelona, Valencia foram as cidades conquistadas pelo “Podemos”, para além de uma expressiva representação nacional. O “Podemos” foi o formidável produto do 15M, uma construção multitudinária na forma de partido. Todavia, hoje, está em crise, produzida justamente por ter-se tornado partido. Um enfrentamento e oposição de vértices, repetindo as velhas patologias políticas, mostraram também, neste caso, como a forma “partido” é inadequada para corresponder (organizar e dirigir) a um movimento social de classe em luta, contra a estrutura composta pelo capitalismo e pelo poder, do Estado e do neoliberalismo. A solução populista de esquerda (neste caso, um golpe de força, uma escolha “de cima” pela forma de organização “partido” da parte dos dirigentes do “Podemos”), contrastada profundamente desde o início pelos movimentos autonomistas (que constituíam a maioria do 15M), mostrou-se impotente assim que a luta se tornou decisiva. Em outras palavras, quando as elites de centro e de direita espanholas quiseram acabar com a anomalia que o “Podemos” representava, eles conseguiram pelo modo antigo, metendo seus líderes uns contra os outros… os mesmos que, com absoluto cinismo, na ilusão da autonomia do político, desvincularam a forma partidária de qualquer relação com a luta de classe – bem, hoje, devem considerar este caminho um erro estratégico que deixa resquícios perigosos.

Qual foi a única maneira construtiva para aqueles que queriam ser leais ao 15M? Era confiar na autonomia de classe, e hoje é reconstruir com os movimentos aquele pacto que a constituição do partido havia cancelado. Aqui está um exemplo – o melhor exemplo – do que acontece quando movimentos potentes como o 15M, ou o que poderia acontecer com movimentos ainda mais fortes como os “coletes amarelos”, são incluídos em uma estrutura partidária do século 19. Para a multidão de trabalhadores, o partido é agora um aparato de dissolução quando não uma máquina de corrupção.

No 18º sábado (9 de março), milhares de companheiros marcharam pelas cidades francesas. Em 9 de março as mulheres de espartilhos fúcsia abriram o desfile em Paris. Muitos sindicalistas de base estiveram na procissão. O comitê de Commercy teve uma reunião com representantes dos milhares de grupos constituídos na França, em abril, em Saint-Nazaire, num centro operário metalúrgico. A luta continua.

Artigo originalmente publicado no EuroNomade


Tradução de Augusto Jobim do Amaral, professor dos Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS

 

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