Cidadão cultura
Gabriela Longman
No terceiro andar da sede administrativa do Sesc, no bairro do Belenzinho, na Zona Leste paulistana, Danilo Santos de Miranda está em sua sala trabalhando – dá e recebe telefonemas, assina papéis, toma notas. E é em meio a livros, um amontoado de discos, um quadro de Mira Schendel na parede e uma escrivaninha cheia de papéis de toda espécie que a entrevista transcorre por quase duas horas. A ideia é, sim, falar do Sesc-SP, instituição a que ele está vinculado desde 1968 e que dirige desde 1984, mas também desvendar o lado pessoal do gestor cultural e sociólogo fluminense.
“Algo pessoal… Já sei, você quer saber quem é esse cara, de onde ele vem, qual é a história dele. Sei bem…”, ironiza.
E então fala, alternando memórias com amplas reflexões sobre a realidade brasileira, o mundo moderno e a política. Gesticula com as mãos, arregala os olhos, enfatiza as palavras. Por meio de uma fala sincopada, doce, mansa, saem as opiniões mais contundentes.
“Cultura, do jeito que eu entendo, é educação – educação permanente. Eu defendo uma sociedade em que o componente educativo e cultural seja colocado no centro e não o componente econômico, político ou social isolado. E essa é uma briga que a gente [o Sesc] leva com muito entusiasmo.”
Haja entusiasmo. Danilo é hoje o responsável por uma instituição reconhecida pela qualidade de seus serviços, com 32 unidades no estado de São Paulo e com um grande plano de expansão pela frente: a construção das unidades de Sorocaba, Jundiaí, Birigui, Guarulhos, Osasco, Limeira, Franca e Marília – sem contar as unidades que estão sendo erguidas ou reformadas na capital.
As 67 anos, ele supervisiona tudo e, quando fala, deixa ainda escapar um pouco do sotaque carioca de quem nasceu em Campos (RJ). “Na verdade eu me sinto muito brasileiro. Nem tanto fluminense, paulista ou mineiro… mas brasileiro, isso sim, no sentido de que eu sou muito o resultado dessa mescla. (…) Gosto dessa expressão do Chico, de pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro. Me identifico muito com essa mensagem e sinto arrepios profundos quando vejo qualquer tentativa de separação, isolamento, acirramento baseado nessa questão de Rio, São Paulo, Minas, Sul, Norte, como de resto qualquer tipo de rixa: rico, pobre, branco, preto, azul, amarelo, não importa. Eu acho tudo isso uma fonte de frustração, de violência, de preconceito e de terrível mal-estar para as pessoas.”
Mas até mesmo sua “brasilidade” profunda é relativizada para dar lugar a uma concepção mais ampla: “Eu acho que cada vez mais vou me sentir cidadão do mundo. Eu me identifico a cada dia com a chamada ‘comunidade destino’, do [filósofo francês Edgar] Morin. O que é a comunidade destino? É o compromisso que você tem consigo mesmo e com todo mundo à sua volta, independentemente de cor, sexo, origem, o escambau”. E continua: “Comunidade destino, meu amigo, estamos juntos nesta nave, solta num universo perdido. Nós somos um planeta periférico da mais extrema e afastada das galáxias. A gente vive num cantinho perdido e acha que está com essa bola toda”.
Esse “cantinho perdido” chamado mundo Danilo conhece bem. Já viajou por África, Ásia, Europa e América procurando estabelecer ou solidificar as relações do Sesc com artistas ou instituições lá de fora. No ano passado, o papel de “embaixador cultural” ganhou peso maior, quando assumiu o cargo de presidente do comissariado brasileiro do Ano da França no Brasil. “Procurei ser um interlocutor crítico e não ficar entusiasmado com tudo que era oferecido. ‘Ah, que maravilha, tragam tudo que quiserem.’ Nada disso. Nós questionamos, nós discutimos, nós discordamos.”
Com base na experiência e na proximidade que tem com a cultura francesa, Danilo compara diferentes modelos de financiamento para a cultura. Apresenta, discute, toma posição. “A França pega uma parte substancial de seu orçamento e aplica na cultura. Nós fazemos o quê? Uma parte substancial do nosso orçamento para cultura vem da contribuição das empresas, sobretudo pelas leis de incentivo, que utilizam recursos públicos. Nós corremos o risco de usar o recurso público numa lógica privada, embora exista um esforço do governo no sentido de tentar rever tudo isso. Eu prefiro que o imposto seja pago e usado de forma adequada para o interesse público nacional do que dar incentivo para as empresas e seu marketing, entende? Foi o caminho que nós encontramos para mobilizar as empresas, mas agora precisamos realmente evoluir”, diz.
Mas como, afinal, “evoluir”? A questão se coloca e traz a conversa de volta para o binômio educação-cultura como pilares fundamentais da ação ética. Nesse sentido, faltaria, segundo ele, um pouco mais de responsabilidade no comportamento das elites dirigentes – políticos, empresariado, escola, líderes – e sobretudo dos meios de comunicação.
“O compromisso de todas as redes de televisão e todas as emissoras de rádio nesse país tem de estar ligado a essa perspectiva educativa. Dizem que ‘é só entretenimento’. Não é verdade. Pela manhã uma emissora mostra uma visão antecipada da sexualidade da criança. À noite essa mesma emissora denuncia a prostituição infantil no Brasil. Sinto muito: essa visão deseducativa da manhã não pode ser corrigida com a denúncia da noite. Eu tenho de ter uma perspectiva educativa desde a manhã e provavelmente à noite vou poder dar outras notícias.”
Trata-se de um conceito de lazer e ocupação do tempo livre que passa longe da ideia – tão difundida – do entretenimento puro. Inspirando-se, entre outros, no pensamento do sociólogo italiano Domenico de Masi, Danilo explica que o chamado ócio tem no fundo muito a ver com a criação.
“Sou um homem ligado a toda essa reflexão sobre o tempo livre, sou ligado a uma instituição que propugna, que propõe, que prega, que incita as pessoas a ocuparem adequadamente seu tempo livre, seja com um lazer produtivo ou não. Ocupar o tempo de lazer para ganhar informação, para desenvolver ideias, para participar de grupos. Mesmo o chamado ‘não fazer nada’ é ativo – estamos pensando, refletindo ou lembrando”, diz Danilo, cujo pouquíssimo “tempo livre” é dedicado aos jogos do Fluminense, a pequenas fugas para a Serra da Bocaina, aos passeios com a cachorra pelas ruas do Pacaembu. E aos discos e livros, sem dúvida.
“Atualmente estou lendo uma biografia excelente do Padre Cícero, escrita pelo jornalista Lira Neto. É diversão? É lazer? Para mim é lazer, mas é um lazer meio incorporado numa perspectiva de entender esse país um pouco melhor. Sou também um apaixonado por jazz e música instrumental. Meu iPod tem pelo menos umas 10 mil músicas, tudo desorganizado. Entra uma ópera, depois entra um samba. E eu adoro isso mesmo, a mistura.” Embora se defina como “uma topeira cibernética”, é no iPod que (des)organiza suas músicas e é no bloco de notas do iPhone que esse senhor de barba e cabelos brancos anota tudo que tem para fazer. “Acabei virando um escravo dessa trolinha. Aqui tem gente para quem eu preciso ligar, gente que me ligou, coisas que me vieram à cabeça, um remédio para comprar na farmácia.
Seminário e nouvelle vague
Danilo fala do complexo processo de sua formação pessoal, um grande caldeirão em que se mesclaram “educação religiosa, família tradicional, visão de mundo variada, gente de esquerda, professores, momentos diferentes, a instituição, a relação com o empresariado via Sesc”. Ele deixou a cidade natal (que, pelo caráter litorâneo e “de antigamente”, faz lembrar a Ilhéus de Jorge Amado ou algumas passagens de José Lins do Rego) para seguir o irmão Gilmar no seminário dos jesuítas em Friburgo. Gilmar foi em 1954; Danilo, em 1955.
Como aluno interno no colégio de padres, ele cantou no coral, participou de um grupo de teatro e assistiu a filmes da nouvelle vague francesa. Fez política estudantil, estudou grego e latim, leu os clássicos. Num segundo momento, já no oficiado dos jesuítas, em Itaci, fez uma preparação espiritual baseada no recolhimento e na introspecção. Mas abandonou a formação religiosa para estudar filosofia e, logo depois, ciências sociais. A vida mudou de rumo e Danilo, segundo suas palavras, “saiu para o mundo”. Embora não frequente mais a igreja, é crente, acredita em Deus e nos princípios da religião católica. “Vejo como um grupo de pertencimento. Sei que faço parte de uma comunidade, de uma cultura.”
Recém-chegado à São Paulo dos anos 1960, sem experiência de trabalho, arrumou um emprego como selecionador de pessoal numa agência de empregos. Era inteligente e sabia conversar com as pessoas. Logo, porém, foi atraído por uma vaga para orientador social no Sesc. Rapaz bem informado (ou “news adicto”), foi passando uma a uma pelas muitas fases do concurso. Entrou em 1968 e nunca mais saiu. Fez parte de um projeto social itinerante, trabalhou com recursos humanos no Senac e, em 1984, virou diretor-geral do Sesc-SP.
“Foi aí que eu pude mergulhar de fato naquilo que mais profundamente me tocava: a cultura como aquilo que perpassa toda a criação humana. A língua que você fala, a comida que você come, a roupa que você veste… O ar que você respira não é cultura, mas a maneira como você respira é.”
Respirando o ar paulista, paulistano, brasileiro, francês, multirracial, multinacional e multicultural, ele segue pregando uma sociedade menos centrada no acúmulo e mais na relação efetiva que o ser humano pode desenvolver com seu entorno, com o meio ambiente, com as pessoas à sua volta, consigo mesmo. Danilo é um homem que sabe onde quer chegar e caminha sem pressa. Diz que ainda tem muito que fazer pela frente. Seria o próximo ministro da Cultura, em 2014? “Nunca fui convidado. Se um dia me convidarem, eu vou pensar”. Antes disso, ele tem uma série de tarefas pela frente. O iPhone – ou sua “trolinha” – não para de lhe chamar.