Choque de aparências

Choque de aparências

Marcos Soares

Após os conflitos recentes na Grécia e na França e o ressurgimento de discussões a respeito da “alternativa europeia” ao capitalismo norte-americano, é oportuno o lançamento da tradução de Os Embaixadores (1903), um dos romances mais difíceis de Henry James (1843-1916). O assunto é típico das preocupações do escritor: a suposta diferença entre a “verdadeira experiên-
cia” (o mundo artístico europeu) e a banalidade que ameaça a vida (o mundo dos negócios norte-americano). É o enquadramento e a análise das consequências dessa ideologia que vão ocupar as quase 600 páginas do romance.

O principal centro de consciência do livro, aquele que guiará o olhar do narrador, é fornecido pelo personagem Louis Lambert Strether, o primeiro embaixador do romance. Sua função é ir a Paris para trazer de volta aos Estados Unidos o herdeiro da fortuna dos Newsome, Chadwick, que deve assumir os negócios da família. A origem exata da fortuna jamais é revelada: eles são donos de fábricas, mas o produto, assim como tudo associado diretamente ao dinheiro, é fruto de constrangimento. Contudo, quando chega à Europa, sua convicção vacila. Em Paris, tudo é “diferente” e “extraordinário”: as longas caminhadas pela cidade – vistas por um olhar que em tudo enxerga as névoas estetizantes do impressionismo –, a visita ao Louvre e o encontro com artistas “geniais”, o sentimento da história e da experiência verdadeiras, tudo, enfim, dá a ver “outra coisa”, de uma beleza até então insuspeita. O próprio Chad transformou-se numa “outra pessoa”, de posse de um sentimento de liberdade criativa que a volta para o mundo dos negócios pode aniquilar.

Questões em aberto
A observação mais atenta da mente investigativa de Strether começa a vislumbrar o lado mais propriamente questionável desse contraste inicial. Pois o tempo livre do qual depende o desenvolvimento dessa “nova sensibilidade” depende, por sua vez, do dinheiro dos Newsome, que pode ajudar a criar a aura de importância ao redor de Chad. Com base nessa constatação inicial, as perguntas de Strether começam a se multiplicar. O que, de fato, constitui a nova qualidade de Chad? Será que o convívio com a experiência da “arte” afasta as pessoas da vida real, que só a volta para os fatos duros dos negócios pode reavivar? Ou será, por outro lado, que o verdadeiro brilho da vida artística lhe seja dado pelo cintilar das moedas?

A vontade de Strether de descobrir a verdade é genuína e sua honestidade investigativa é enfatizada pelo contraste com uma galeria de outros personagens, mais “planos” e menos interessados na elucidação do mistério. De outro lado, porém, sua fidelidade é dupla: deve obediência tanto à nova descoberta europeia, que lhe devolve a vontade de viver, quanto à matriarca da família Newsome, de quem suas condições financeiras dependem em grande parte.

À dificuldade de enunciar e responder as perguntas relevantes corresponde uma abstração da própria linguagem, que a todo momento resvala em formulações vagas e abstratas (“outra coisa”, “extraordinário” etc.). A suspeita de que as aparências do mundo são ilusórias e de que a verdade deve ser buscada em algum outro lugar que não seja o da racionalidade burguesa aproxima o romance das experiências modernistas com o registro do devaneio, que, por sua vez, depende de uma teoria do inconsciente, a qual Freud já tratava de sistematizar. Em suma, Strether é um leitor hábil dos fatos da vida, mas tem capacidade limitada de decodificação, oferecendo diversos elementos do teorema em formulação muitas vezes imprecisa, deixando ao leitor a tarefa mais árdua (e estimulante) da interpretação.

O desafio técnico é de dificílima execução: trata-se de mimetizar as incertezas nebulosas do centro de consciência que delimita a voz narrativa ao mesmo tempo em que se estabelece um conjunto de pistas muito bem delineadas que permitem ao leitor interessado avançar em relação à visão restrita dos personagens tomados individualmente. Uma das conquistas do romance é justamente esse trabalho atento de ourives que Henry James executa extraordinariamente. A edição brasileira ajuda na tarefa, tanto pela tradução notável de Marcelo Pen (a leitura do romance no original é difícil até para quem domina a língua inglesa), que captura a sutileza precisa do registro ambíguo e da ironia do romance, quanto pela presença de dois ensaios no posfácio, um do crítico Ian Watt e outro do tradutor, que auxiliam no desvendamento do enigma proposto por James.

Marcos Soares é professor do Departamento de Letras  Modernas da USP

Os Embaixadores
Henry James
Tradução e notas:  Marcelo Pen
Cosac Naify
608 págs. – R$ 99

(2) Comentários

  1. Uma integração capitalista passa necessariamente pela integração dos valores culturais , fenômeno lento mas que conta com a prodigiosa ajuda da comunicação instantânea da internet. É a globalização cultural, pré condição para um capitalismo mais democrático.

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