Chico, um sedutor

Chico, um sedutor

Tony Bellotto

Ao contrário do que afirma a frase manjada de Carlos Drummond de Andrade (no Google também atribuída a Picasso) – “cansei de ser moderno, agora quero ser eterno” –, Chico Buarque nunca foi moderno e parece já ter adquirido a consciência da eternidade no berço.

É perceptível em sua trajetória uma recusa em fazer parte de grupos e movimentos, guardando sempre uma saudável distância de ondas e modismos. Ninguém classifica Chico como músico de bossa nova, apesar de ele ser contemporâneo e parceiro de dois de seus maiores ícones, Tom e Vinícius.

Chico também nunca se filiou às estripulias estéticas e antropofágicas dos tropicalistas, embora tenha composto canções e gravado discos com Gil, Caetano e Bethânia, e nunca capitulou ao canto de sereia dos Beatles. Seus cabelos jamais chegaram aos ombros! Nesse sentido, ele se aproxima de Benjor, que sempre andou sozinho, mesmo frequentando todas as corriolas.

Na minha juventude de roqueiro iconoclasta, sempre considerei a obra de Chico menos sedutora que as de Gil e Caetano, e hoje tenho de andar por aí, me persignando pelos cantos, tentando me livrar dos pecados da mocidade (esse não foi o único…).

Chico conseguiu criar um estilo próprio e sempre soa como Chico, independentemente de quantos parceiros colaborem com ele. Ainda que o samba e os ritmos brasileiros clássicos sejam o seu esteio, não se compreende a música de Chico sem a inclusão de pitadas da canção europeia, do jazz e até do blues e do rock, isso sem contar o rigor poético, único na MPB (estou aqui provavelmente cometendo uma injustiça com Vinicius de Moraes. E notem que Vinicius chegou a ostentar um rabo de cavalo no fim da vida, como um velho, alegre e bêbado
hippie despirocado, que com prazer mandou a eternidade às favas).

Como se não bastassem todas as insígnias acima, Chico ainda conseguiu a façanha de ser uma espécie de Roberto Carlos sofisticado, um ídolo pop carregado de “conteúdo” intelectual e atitude política. Não vou nem falar de seu trabalho literário, deixo para a ciência o estudo desse fenômeno de múltiplos talentos artísticos num homem só, bonito ainda por cima.

Simplicidade

Não é fácil, portanto, aos 40 e muitos anos de carreira, gravar um disco novo com todo esse robusto sucesso por trás, assombrando a retaguarda do artista como uma quimera ou uma tempestade de muitos verões.

Aí entra a “eternidade” de Chico, a virtude que se contrapõe à modernidade pela modernidade e faz dele um simples e muito eficiente compositor popular, na acepção que se aplicaria a Noel Rosa.

Pois é o que se depreende desse Chico (Biscoito Fino), o recém-lançado CD de Chico Buarque de Holanda: a simplicidade de um artista no exercício de seu ofício. E a excelência desse exercício. Ou desse ofício. Ou ainda desse orifício, se me permitem a citação meio sacana, pois o que ouvimos aqui é um homem apaixonado, falando do amor de maneiras diferentes e sempre paradoxalmente originais, mesclando certa estranheza com um sabor de nostalgia, como a que sentimos ao ouvir velhas músicas no rádio.

Numa das mais belas canções do disco, “Barafunda”, Chico diz assim: “E salve a floresta, salve a poesia / E salve este samba antes que o esquecimento / Baixe seu manto / Seu manto cinzento / Era Aurora / Não, era Barbarela / Juro que eu ia até o Cazaquistão atrás dela / A vida é bela / É Garrincha, é Cartola e é Mandela”.

Preciso dizer mais alguma coisa?

Tony Bellotto é músico e escritor

(27) Comentários

  1. Era 1967…
    ” A gente vai contra a corrente…”
    A partir dessa data eu iniciei a cantarolar Chico Buarque e nunca mais parei.
    Parabéns Bellotto! Antes tarde…
    Abraços.

  2. Tony Bellotto fala em admiração tardia de Chico Buarque, é o oposto do meu caso, que tive uma desadmiração tardia mas ainda presente. Não deu para conciliar, impossível gostar de alguém que é petista, mesmo sabendo de todas as falcatruas petistas, preferi deixar de gostar do músico de quem gostava muito, a gostar de um petista.

  3. Compartilho da opinião do Tony. Realmente o Chico consegue ser ele mesmo sempre, tanto que as vezes isso até irrita.

    Só preciso urgentemente fazer uma correção, Bethânia nunca foi ligada ao movimento tropicalista. Inclusive recusou gravar o que talvez tenha sido o maior sucesso do tropicalismo e de Gal Costa, a canção Baby, que aliás foi escrita por Caetano a pedido dela. Porém é um erro inserí-la nesse movimento.

    Do mais o disco novo do Chico é muito bom!

  4. Como é bom poder ver “em vida” o reconhecimento de um gênio. Ainda mais quando este fato ocorre através de um músico genial. Crescí vendo a Banda passar. E esta Banda continua falando coisas de amor. Com certeza esta Banda já ficou para a posteridade. Parabéns Bellotto

  5. Impressionanate como o Tony definiu o Chico , ele é “paratodos”, é inclassificavel , o Ney tbem é.E como faz bem aos nossos ouvidos , corações , ouvir um Chico de corpo e alma , com afeto e com carinho.Parabéns ao Chico , e ao Tony também.

  6. Vê-se que o Bellotto não conhece a obra do Chico ao dizer que ele não é moderno. Uma obra toda voltada para o cotidiano e que cotidiano, pricipalmente durante a ditadura. Agora o fim mesmo é dizer que Chico é um Roberto Carlos sofisticado, é demais. Bellotto vai tocar guitarra, meu que seu negócio é outro.

  7. “Preciso dizer mais alguma coisa?”
    Não Tony, não precisa.Meu caro amigo,depois deste artigo seus pecados de juventude foram perdoados.Estou deixando este comentário porque eu não queimarei no fogo dos infernos,não por este, tenho absoluta certeza que não.Carregava comigo uma fita cassete com as músicas do Chico.Meus filhos foram criados ouvindo.Grande abraço!

  8. Sou da geração em que o lançamento de uma obra de Chico Buarque, na época LPs, era esperado com ansiedade. Era a nossa voz, pois não podíamos ter voz, pois estávamos na ditadura. Após a abertura e redemocratização perdeu a importância nesse quesito, mas o artista vinha se esforçando, ainda, para dar alguma contribuição na área política e social. No disco “Cidades” falava da emigração brasileira (Iracema voou para américa) e política (Injuriado, que fez para FHC, comentando uma entrevista em que o ex-presidente dizia que Chico não tinha mais importância). No último falava de drogas, numa bem cunhada frase em que sonha num país em que as drogas são vendidas na drogaria. O atual lançamento se mostra um autor diletante, visita a si mesmo, revivendo temas da primeira fase lírica e burlesca. Temos de volta algo parecido como a Banda, Carolina e Realengo. São melodias deliciosas, frases como “cabelo cor de abóbora” (que remete à Morena dos Olhos d’água, de forma contrastante, pois na época falava da dor e da submissão feminina, hoje revela o colorido e a alegria de ser mulher). Na década de sessenta tornou-se imensamente popular, agora os tempos são outros. Do Chico questionador sobrou apenas “Sinhá”, que ouvidas fora do contexto atual, revela apenas uma canção sobre a escravidão, vinda de um filho de historiador. Mas quando toca em temas como o cristianismo e a violência do homem de olhos azuis, pode ter antevisto o ressurgimento do neo-nazismo, materializado no homem dos olhos azuis da Noruega.

    Marcos Valério Rocha
    Luziânia – Go.

  9. Desenvolvi um desprezo tardio, pois este que foi um ícone na luta contra a ditadura tornou-se um pelego em defesa da corrupção de seu governo, inclusive com troca de favores (prêmio jabuti) por declaração em horário eleitoral…

  10. Tony, muitos roqueiros brasileiros sofreram influência do Chico, sem perceberem. Algumas músicas dos Titãs são verdadeiras crônicas urbanas, como mostra o disco “Cabeça de Dinossauro”. Chico mostrou para a turma do rock que o protesto, a irônia, e muitas vezes, a verdade explícita, poderiam ser cantadas dentro de um limite entre o bom gosto e o sucesso. Talvez, muitos de sua geração não tenham percebido isto, mas, acredito que a maioria percebeu. As novas bandas de rock dizem que sofreram influência do Rock anos 80, que escutaram muito Renato Russo, Cazuza, Titãs, Paralamas, Cássia Eller, Lobão etc. Mas, a turma dos anos 80 escutaram o quê? Caetano, Chico, Gil, Tim Maia, Ben Jor e outros. Fico feliz com o novo disco do Chico e sei que a nova geração irá reconhecê-lo, mesmo que tardiamente, porque a música de Chico já é para a eternidade. Um abraço, sou seu fã. Joaquim.

  11. Belloto o teu comentário foi o mais sano até agora sobre o novo CD do Chico. Tu não fizestes como Veja que tirou uma parte de um verso da canção Meu Querido Diário, para tripudiá-lo por questões ideológicas. Separastes com propriedade o artista do cidadão. Parabéns. Dilson-Araújo

  12. No coração do homem está o seu tesouro.
    Obrigado por estar aqui convivendo com ele e com voce Bellotto.
    Sem comentarios.
    Até a próxima.Como chicletes, presos ao gosto das palavras.

  13. Pois é, Toni, nunca é tarde, já dizia a minha avó (ainda que seja preciso prestar atenção à entonação, pois muitas vezes, nunca é mesmo muito tarde, e a vaca já foi brejo, dizia ela também) mas, você é jovem, inteligente, é também multitalentoso, bonito, e estará sempre aprendendo. Chico é Chico porque sempre quis ser Chico e a frase supra-citada não é bem assim, antes bem ao contrário, e é do Drummond, num dos poemas mais significativos do também enigmático, capaz de dominar todos os paradoxos, genial, poeta, comunista e funcionário público do governo Vargas, revolucionário e erótico, crítico da modernidade, da mídia (cuidado com o google), e eterno… mas pra seu próprio desgosto. Assim é que, mais uma vez fica provada a tese: ‘se a alma não é pequena… a vida é grande’.

    Eterno
    Carlos Drummond de Andrade

    “E como ficou chato ser moderno.
    Agora serei eterno.

    Eterno! Eterno!
    O Padre Eterno,
    a vida eterna,
    o fogo eterno.

    — O que é eterno, Yayá ?
    — Ingrato! é o amor que te tenho.” (veja lá no quasesertao.com

  14. Nunca ninguem se expressou assim(que eu me lembre)sobre Chico Buarque, alias um poeta intocavel e nao digno de comentarios….
    Eh exatamente isso….
    Parabens….pra voce e pra todos os TITAS….que felizmente vao de encontro a todas as modalidades musicais, parcerias inusitadas…valorizando nossa cultura com bom gosto rumo, claro a eternidade…num tom essencialmente pra la de moderno!!!!

  15. Tony Bellotto chega à maturidade artística e de quebra revela (pelo menos pra mim) bom domínio da redação. Essa é a trajetória dos bons. Mas não vá me desfalcar os Titãs, por favor.

  16. Sou fã apaixonada do Chico e acredito ser esse o melhor comentário dos ultimos tempos sobre sua obra.ADOREI !!

  17. O Toni tambem é multi talentoso!!!
    O Chico realmente é inconfundivel, inexplicavel e multi sensacional !
    Adorei o CD, leve, suave, poetico e lhe toma como uma manha de outono ouvindo um sol e musica.

  18. Antes tarde do que nunca! Belloto talvez agora mais maduro e munido de uma vontade critica, sintetiza um lado mais conhecido do Chico, este cara sem rótulos ou bulas….
    Chego a pensar que Chico se tornará adjetivo num futuro próximo! O problema será explicar este adjetivo, que qualifica o que é mais que bom, sem se prender em conceitos.

  19. O Chico, o Gil, O Caetano, são gigantes, e não se discute a altura de gigantes, assim, não vejo muita contribuição nesses comentários que sempre cotejam as obras de uns e outros. Eu sempre gostei mais do Caetano e do Gil, mais em função do retrato da vida que eu tenho para minha referência, mas sempre comprei todos os discos de vinil e depois os cds do Chico, e sempre os escutei com muita atenção. Gosto muito do Chico, sua passagem pela musica brasileira já está eternizada, mas para que diminuir a obra de outros autores? Além disso, Belotto, será que você jovem não era melhor critico do que você é hoje?

  20. Parabéns, só um artista para definir com perfeição este ícone que é o Chico Buarque, e você conseguiu. Em tempo, se é injustiça com Vinicius de Moraes, compartilho contigo quanto ao rigor poético, mas convenhamos, isto não desmerece em nada o Vinicius.

  21. Chico Buarque de Holanda é fenômeno raro. A Grécia arcaica teve o aedo Homero, nós, brasileiros, temos o aedo Chico! Considero-o como um dos mais notáveis dentre os poetas brasileiros: a força da poética de Chico Buarque rompe e supera com a dicotomia existente entre letras de música e autêntica poesia. Parabéns pelo belo texto-depoimento, Bellotto!!

    abs do Sílvio Medeiros
    São Paulo, é inverno de 2011.

  22. Precisa, Belloto! Citar os ‘affaires’ dele com o PT de Lula, participando de campanhas políticas, inclusive de Dilma. Ou será que a nomeação da atual ministra da cultura foi apenas uma coincidência? Parece que é assim que se “vai levando” e “dourando essa pílula” através dos tempos, mesmo com “toda façanha e toda campanha…”

    Mas, como diz o próprio Caetano, que o Chico é “f”, disso ninguém tem dúvida. Contudo, chega de sacralização e dessa chicolatria besta!

  23. Tenho 57 anos e, desde que me entendo como ser pensante, nunca deixei de apreciar a obra do Chico (que sempre fico esperando, assim como um inédito do Rubem Fonseca). Nunca vi incoerência nos atos dele, como também nos de Ney Matogrosso.

    Gilson Marinho Luz – Itaocara(RJ)

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