As ilusões perdidas

As ilusões perdidas

 

Fernando Marques

A história dos embates sociais no Brasil tem sido marcada, desde sempre, pela expectativa de mudanças que jamais se realizam, mas, ao contrário, se vêem teimosamente proteladas. As promessas feitas aos pobres, muitas vezes aliados à classe média na grita por divisão da renda e por democratização das decisões políticas, servem para dissipar conflitos, sendo, depois, esquecidas. O carnaval dos pés-de-chinelo, por aqui, invariavelmente deságua na quarta-feira das elites. É monótono e perverso, mas tem sido assim há séculos.

Poeta capaz de ligar as questões sociais às mais altas temperaturas líricas, Chico Buarque escreveu quatro textos de teatro, entre 1967 e 1978, com parceiros ou isoladamente. Nessas peças, o fio da meada tem sido justamente o quanto, na história brasileira, tudo muda para permanecer como está, tudo se altera para que não se altere coisa alguma – ainda que as formas e enfoques com que o autor trabalha esse tema geral sejam os mais diversos. As peças não se reduzem, diga-se logo, a ilustrá-lo e, conforme o caso, Chico mobiliza verso ou prosa, ou ambos; recorre a estrutura épica, fragmentária, como em Calabar, ou a atmosfera cerradamente dramática, embora não estritamente realista, como em Gota d´água; ou, ainda, repassa os esquemas da comédia musical na Ópera do malandro.

Em Roda viva, sua primeira peça, que estréia em janeiro de 1968 no Rio, sob a direção furiosa de José Celso Martinez Corrêa, o mote das ilusões políticas perdidas já se anuncia, mesmo limitado à figura do cantor Benedito Silva e às relações deste com o mercado de shows e discos, potencializado pela jovem e já onipresente televisão – mercado que consagra o artista e, depois, o descarta.

As 50 laudas que constituíam a comédia foram transformadas pelo diretor José Celso num espetáculo obediente à tese do “teatro da crueldade”, teoria devida ao francês Antonin Artaud, refeita à moda da casa: “Para um público mais ou menos heterogêneo que não reagirá como classe, mas sim como indivíduo, a única possibilidade é o teatro da crueldade brasileira – do absurdo brasileiro –, teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos. Cada vez mais essa classe média que devora sabonetes e novelas estará petrificada e no teatro ela tem que degelar, na base da porrada”, dizia José Celso em entrevista.

João Antônio Esteves, ator e professor de artes cênicas da Universidade de Brasília, assistiu à montagem paulista de Roda viva em 1968 e recorda: os atores passeavam em meio à platéia, instalavam-se no colo dos espectadores, sujavam de sangue as suas roupas – como na cena em que devoravam pedaços de fígado cru, alusiva à voracidade com que a televisão e sua audiência comem o coração dos ídolos. João Antônio informa que as respostas às provocações eram as mais distintas, mas parece possível identificar duas atitudes básicas, extremas: a de rejeição ou, pelo contrário, de aceitação cúmplice do espetáculo. “Tinha gente que se incomodava profundamente e saía do teatro, indignada”; e havia “os que ficavam, que era quem compactuava”, porção majoritária.

A história composta por Chico Buarque não exigia, como tampouco proibia, o tratamento dado pelo diretor à peça, em trabalho fora dos limites do Oficina, grupo a que Zé Celso estava ligado. Pode-se resumir o enredo conforme os seguintes passos, distribuídos em dois atos: o cantor Benedito Silva, que ainda não conhece o êxito, encontra-se com o Anjo, figura caricata de empresário, que cinicamente o transforma em Ben Silver, decalque dos astros norte-americanos.

Aliado ao Capeta, representante da imprensa de escândalos, o Anjo conduz a carreira de Silver até que o rapaz, em crise de consciência – seu amigo Mané o condena, aos palavrões, por seu comportamento inautêntico –, embriaga-se e é flagrado em pleno porre pelo jornalismo venal. O Anjo opera nova metamorfose, fazendo de Ben Silver o telúrico Benedito Lampião e levando-o a cantar no exterior, onde exibirá nossos mais puros e valentes valores musicais. Novos ataques ao músico, vindos agora de nacionalistas irritados com o fato de ele, “depois de defender a reforma agrária”, ter ido “receber dólares dos americanos”, obrigam o Anjo a destiná-lo à morte não apenas artística, mas física, substituindo-o por Juju – a viúva do ídolo, fantasiada de hippie, nova protegida do empresário. Com todos esses saltos, característicos de farsa, Chico satirizava os vários tipos – o cantor de iê-iê-iê, o compositor de protesto – em voga nas telas e nos palcos em 1968.

A temporada de Roda viva em São Paulo envolveu episódio melancolicamente famoso: o espancamento de atores e técnicos pelos delinqüentes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, que invadiu o Teatro Ruth Escobar em 17 de julho. O ataque levou Nelson Rodrigues a comentar, consternado, em crônica publicada poucos dias depois do incidente: “Desde a Primeira Missa, nunca se viu, aqui, indignidade tamanha.”

Seis anos mais tarde, Chico admitiria que “Calabar é um trabalho bem mais elaborado” que o texto de estréia. Escrito em parceria com Ruy Guerra, em 1973, Calabar, o elogio da traição teve problemas com a censura e só chegaria à cena em 1980. Os autores reeditavam tema histórico, que foram buscar no Brasil do século XVII. As lutas entre portugueses e holandeses pelo controle do açúcar em Pernambuco forneciam o ponto de partida para discutirem, de maneira bem-humorada, as noções de fidelidade e infidelidade política, numa fase, o início dos anos 70, em que a propaganda oficial impunha o dilema: “Brasil, ame-o ou deixe-o.”

Calabar, o suposto traidor, teria escolhido o lado menos ruim, o dos flamengos. O príncipe Maurício de Nassau, déspota com tintas renascentistas, chega a estas terras e promove mudanças benéficas à população nativa, mas, afinal, será apeado do poder: a seus financiadores de além-mar pouco interessavam as melhorias realizadas por ele na colônia.

A peça mistura procedimentos épicos e dramáticos, com predomínio dos primeiros. As letras podem destinar-se a revelar tendências ou a armar cenários, mas podem ainda, como acontece em Tira as mãos de mim, valer como diálogo. Nesse caso, Bárbara, falando a Sebastião do Souto, compara Calabar, já morto, a Souto, afirmando a inferioridade deste: “Ele era mil, tu és nenhum, na guerra és vil, na cama és mocho…”.

Deve-se notar a fragilidade de Calabar, compensada em parte pela beleza lírica ou bem-humorada das canções. O texto, em certas passagens, assume o tom de discurso indignado, exortando o espectador a agir na modificação do real. É fato que isto se dá sem simplificações excessivas. Trata-se de panfleto de bom nível; a ênfase pode, contudo, fazer baixar e não elevar a tensão dramática – ou épica.

A própria questão da empatia se torna problemática: Bárbara, no primeiro ato, é vista por três vezes, mas em funções de narrador ou de sujeito lírico, antes do momento importante em que interpela três militares de algum prestígio, ligados aos portugueses, o negro Dias, o índio Camarão e o pobre Souto. A moça questiona com energia a atitude pragmática, avessa a escrúpulos, adotada pelos três. Contudo, para que acreditemos em sua possibilidade de fazê-lo, temos de nos identificar com ela – e o texto não nos dá grandes chances nesse sentido. A peça, em seu recorte épico, deixa à personagem – isto é, à atriz que a representa – a tarefa de se impor junto à platéia. Bárbara canta a perda de seu homem, exorta-nos a prestar atenção às próximas cenas e censura o castigo dado a Calabar – rebeldes provenientes da elite nem sempre encontram a morte, diz ela. A intérprete precisará afirmar-se muito eficientemente para, dessas intervenções puramente líricas ou épicas, retirar a força dramática necessária à inquisição posterior, feita a Dias, Camarão e Souto.

A bela Gota d´água, escrita em parceria com Paulo Pontes, aparece no Rio em dezembro de 1975, depois de algum temor quanto à atitude da censura, que acabou por liberá-la. Com base remota na grega Medéia e inspiração imediata no caso especial criado por Vianinha, que adaptou a trama clássica para a televisão, situando-a nos subúrbios cariocas, o texto aborda a capacidade que o capitalismo brasileiro, tomando impulso nos anos 70, tinha de empregar “os mais capazes”, enquanto continuava a excluir a maioria. O sambista Jasão, com seu oportunismo, constitui emblema dos poucos indivíduos ou setores da classe média, ou mais raramente das camadas pobres, a serem convidados para a festa dos ricos.

O drama não exclui lances de humor. Um desses momentos surge na forma de canção interpretada em coro, “Flor da idade”. O contexto é o de uma cena de bar a que Jasão comparece, depois de discutir com mestre Egeu; este exerce autoridade moral no ambiente que Jasão está prestes a abandonar, assim como abandonou a mulher, Joana. Ela coleciona motivos para se queixar da condição feminina e prepara a vingança, convicta de que “não se pode ter tudo impunemente/ A paz do justo, o lote do ladrão/ Mais o sono tranqüilo do inocente”. O tom dominante, naturalmente, nada tem de leve ou alegre; o humor atenua passagens dolorosas, mas também pode acirrá-las, por contraste.

O texto comove quando se aproxima do argumento de Medéia, contemplando os embates entre Joana e Jasão, o ódio que ela sente, as disposições de Creonte, convertido aqui em dono do conjunto habitacional onde se passa a história. A emblematização política, para voltarmos ao tema do recrutamento dos mais capazes, relaciona-se ao fato de que, enquanto Jasão ascende por meio do casamento com a filha do poderoso local, à exasperada Joana não sobra sequer a possibilidade de continuar a viver no conjunto, de onde é expulsa. Os excluídos, no entanto, podem ir à forra. A sólida estrutura dramática de Gota d´água valoriza-se com os versos que combinam metáfora, ritmo e linguagem coloquial. A peça aproxima-se da obra-prima, é uma das maiores da dramaturgia brasileira.

Em Ópera do malandro, que estréia no Rio em julho de 1978, o tema das mudanças operadas de modo a que nada se altere no essencial liga-se à “modernização autoritária” que se dá em 1945, com a generosa abertura do mercado local aos norte-americanos, novos senhores do mundo. Processo similar, sob certos aspectos, já se verificara na época da Revolução de 30, quando os círculos do poder abriram vagas para a burguesia industrial, seduzindo também os trabalhadores com a fixação de direitos elementares – mantendo-se o comando, no entanto, nas mãos paternais de Getúlio Vargas. As personagens cômicas e as canções, várias de fino labor lírico, traduzem de modo lúdico a passagem da ditadura à democracia. O picareta estabelecido Fernandes de Duran associa-se, a contragosto, ao picareta emergente Max Overseas, pela via do casamento de Max com a filha de Duran, Teresinha, mulher de visão que antecipa as oportunidades oferecidas pelos novos tempos. A invasão legal das praias brasileiras por produtos e capitais estrangeiros beneficiará os mesmos gatos-pingados de que, em Gota d´água, Corina, amiga de Joana, fala ao dizer: “Parte, Jasão, pro banquete da meia dúzia”.

A estrutura da Ópera do malandro assemelha-se à do musical americano: canções intercaladas ao enredo que, no entanto, segue lépido e somente se detém para nos deliciar com as melodias e letras. O efeito hipnótico que os números cantados produzem, nos filmes de Hollywood, não se repete na Ópera, texto empenhado em fazer pensar, capaz de usar a ironia sem parcimônia… Ou não? A distância que separa a peça de Chico ou a Ópera dos três vinténs de Brecht e Weill, de um lado, e os musicais da Broadway, de outro, pode ser apenas convencional, aparente, uma ilusão devida à boa vontade política do observador. A pergunta a ser feita a esta altura alcança as outras peças do poeta-dramaturgo: qual é a vigência desses trabalhos, que papel podem exercer, se o objetivo declarado, mais do que embalar a platéia, é o de refletir o país?

As peças musicais escritas por Chico Buarque, especialmente o burlesco Calabar, o drama em verso Gota d´água e a Ópera do malandro, comédia pontilhada por canções, são bons modelos a partir dos quais se pode rediscutir os rumos do musical brasileiro, sobretudo o de vocação política. Tarefa a se realizar, ao que parece, sem o auxílio do escritor e compositor: ele declarou recentemente que seus projetos imediatos têm pouco a ver com o teatro. Ligado, como letrista e músico, a tantos espetáculos – entre os quais está Cambaio, de 2001 –, torna-se difícil acreditar na demissão do mestre. Se a disposição for para valer, será de se lamentar, mas nada grave. Lúdicas ou líricas, leves ou densas, sempre bem-escritas, ficam as peças.

Fernando Marques
Jornalista, doutorando em literatura brasileira na Universidade de Brasília com projeto de tese sobre teatro musical. Publicou Retratos de mulher (poemas, Varanda), é autor das canções do show Samba do amor omisso (2001) e das peças Últimos e .

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